sexta-feira, 25 de julho de 2008

Tendências

Construir outro mundo, em meio à tempestade*

Immanuel Wallerstein

No momento em que nos aproximamos da próxima década, é possível antecipar grande turbulência em duas frentes – a arena geopolítica e a economia mundial, com o relativo declínio do poder geopolítico norte-americano, agora percebido por quase todos, e que nem mesmo um Obama presidente será capaz de reverter.
Estamos caminhando para um mundo verdadeiramente multipolar, em que o poder de Estados relativamente fracos tornou-se subitamente muito maior. O Oriente Médio atual é um exemplo. A Turquia agencia a retomada de negociações entre Síria e Israel, congeladas há muito. A Autoridade Palestina retomou negociações com o Hamas. E o governo paquistanês entrou numa trégua de fato com o Taliban nas zonas fronteiriças ao Afeganistão. O significativo destas estas ações é que os Estados Unidos se opuseram a todas elas e foram simplesmente ignorados – sem nenhuma conseqüência séria para qualquer dos atores.

Além os EUA, União Européia e Japão há agora a Rússia, China, Índia, Irã, Brasil – como líder presumido do bloco sul-americano – e África do Sul – líder presumido do bloco sul-africano.


Há um imenso terreno para alianças, com debates internos sobre parceiros ideais e ampla incerteza sobre o que decidirão. A situação geopolítica é claramente distinta de todas que o mundo viveu há um bom tempo. Não é a anarquia total, mas certamente desordem geopolítica maciça.


Esta desordem geopolítica está acompanhada por incertezas agudas sobre a economia mundial. Há, antes de mais nada, o tema das moedas. Vivemos, pelo menos desde 1945, num mundo estabilizado pelo dólar. O declínio dos Estados Unidos, em particular como locus dominante da produção mundial, combinado com a ultra-expansão de sua dívida, causou um sério declínio do dólar, cujo patamar final ainda é obscuro, mas será provavelmente inferior ao atual.


O dólar poderá ser substituído como reserva monetária mundial? O candidato óbvio é o euro. Mas não se sabe ainda se ele poderá cumprir este papel, ou se os governos europeus estão dispostos a promovê-lo a tal condição – embora não seja impossível que o processo os atropele.


Muitos países grandes viveram amplo aumento tanto de produção quanto nos níveis de consumo. BRIC – Brasil, Rússia, Índia e China – abrigam cerca de 60% da população mundial. Alguma coisa vai acontecer. Pode haver uma grande onda mundial de inflação, se os preços de todas as commodities continuarem a disparar, alimentados pelo crescimento da demanda e pela especulação. Uma conseqüência não-descartável seria o protecionismo maciço: governos limitando fortemente as exportações, para proteger seu abastecimento interno.


As experiências anteriores mostram que isso pode criar círculos viciosos erráticos. Ou pode haver enormes desabastecimentos localizados, resultando em altos índices de mortalidade e sérias catástrofes ambientais.


Os governos atingidos por quedas na receita, e pressionados a não compensá-las via aumentos de tributos, poderiam cortar despesas nas áreas-chaves de Educação, Saúde e Previdência. Mas são terrenos que, como parte da democratização do mundo nos dois últimos séculos, transformaram-se nas expectativas mais importantes das sociedades em relação a seus governos. Dirigentes incapazes de assegurar a manutenção destas três formas de redistribuição social da riqueza perderiam legitimidade abruptamente, com resultados incertos em termos de levantes civis.


Na batalha entre esquerda e direita, a primeira viveu um ascenso vertiginoso nos últimos duzentos anos – especialmente no século 20. A esquerda mobilizou apoio em grande escala e com muita eficácia. Houve um momento, no pós-II Guerra, em que isso parecia ocorrer em toda parte e de todas as maneiras.


Então, vieram as grandes desilusões. Os Estados onde os movimentos anti-sistêmicos chegaram ao poder, de uma ou de outra maneira, estiveram na prática muito distantes daquilo que as forças populares esperavam deles. E a irreversibilidade destes regimes mostrou-se outra ilusão. No início dos anos 90, todo o triunfalismo da esquerda mundial tinha sido varrido – e substituído por uma letargia generalizada, freqüentemente uma sensação de fracasso.


Porém como sabemos, o sentimento de vitória da direita evaporou-se igualmente – de modo ainda mais espetacular quando afundou a aposta dos neoconservadores, que apostavam numa permanente dominação imperial norte-americana. Da rebelião zapatista em 1994 aos protestos bem-sucedidos que inviabilizaram a reunião da OMC em Seattle, em 1999, e à fundação do Fórum Social Mundial (FSM), em 2001, em Porto Alegre, uma esquerda reacesa e transformada emergiu na cena mundial.


Vivemos num ambiente mundial caótico e é difícil enxergar com clareza. É mais ou menos como tentar seguir adiante numa grande tempestade de neve. Os que quiserem sobreviver precisam examinar tanto a bússola — para saber em que direção caminhar — quanto o terreno alguns centímetros à frente – para não despencar em algum precipício. Debatamos o rumo da bússola, ignorando os Estados e os objetivos nacionais. Assumamos, porém compromissos com ambos no curto prazo, para evitar os abismos. Desse modo, teremos uma chance de sobrevivência, uma chance de construir o outro mundo possível.


*Publicado originalmente pela Yale Global Magazine, do Centro de Estudos sobre a Globalização da Universidade de Yale
. Extraído de Le Monde Diplomatique Brasil. Para ler o artigo completo clique em Diplomatique

2 comentários:

Anônimo disse...

Excelente artigo!!! Leva a uma reflexão intensa!

Anônimo disse...

Que venha o caos! É o que de melhor poderiamos esperar: a multipolarização do poder. Bom artigo. Simone