quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Vinícius de Moraes

Cem anos de poesia


Celso Evaristo Silva*




Entrevista de Vinicius de Moraes, concedida, em sonho meditativo, ao monge tibetano radicado em São Paulo, Rampar Singar






RS: Por que Vinicius?
Vinicius: O lançamento, em português, no ano do meu nascimento – 1913 – do ‘Quo Vadis’, do escritor polonês Henryk Sienkiewscz, cujos personagens protagonistas eram Vinicius e Lígia. O velho Clodoaldo, meu pai, mandou ver.

RS: Marcus Vinicius da Cruz de Melo Moraes. Nascido na . . . ?
Vinicius: Gávea, onde passei a primeira infância. Depois fui pra Ilha do Governador. Nasci na Gávea, mas sou botafoguense por causa do Garrincha, embora goste do Flamengo . . . no fundo, no fundo, sou Flamengo também.

RS: Você sempre múltiplo !? (risos)
Vinicius: É . . . O Stanislaw Ponte Preta, nosso querido cronista Sérgio Porto, ao conversar com um amigo comum, disse que estivera comigo em Niterói, dois ou três dias atrás, ao que o outro ponderou: “Mas conversei com ele em Paris, semana passada!” . “Meu caro”, disse o Sérgio, “Vinicius de Moraes é plural; se fosse um só, seria Viniciu de Moral.”

RS: No início, meio místico, meio cósmico . . .
Vinicius: Estudei língua e literatura inglesa em Oxford, o que foi muito importante na minha formação. Ao voltar ao Brasil, entrei, por concurso, para a carreira diplomática. Meus primeiros livros tinham preocupações místicas e transcendentais: “O Caminho para a distância”, “Forma e exegese” e “Ariana, a mulher”. Me achava um grande poeta – loucuras da mocidade. Depois veio a preocupação com as questões sociais e o tema central da sensualidade e do amor, no sentido mais cósmico e profundo do termo.

RS: Poetinha, você é um excelente poeta!
Vinicius: Certa vez, o maravilhoso poeta e escritor, e amigo, João Cabral de Melo Neto, disse que se juntássemos a disciplina dele com o meu lirismo, finalmente o Brasil teria um grande poeta.(risos). Eu já desistira dessa coisa de ser o maior ou o melhor. Ele com aquela enxaqueca . . . aquela exigência consigo mesmo. Sei lá; preferi ir tocando do meu jeito. Foi a minha recusa à poesia não vivida. Drummond chegou a dizer ser eu o único da turma a ter vivido como poeta. Exagero amigo.

RS: As mulheres, claro, sempre presentes.
Vinicius: Sempre. A mulher é a ligação mais profunda e direta com a vida. Nove casamentos e algumas aventuras, tudo vivido mui intensamente enquanto durava; porém, sem jamais decifrar o mistério do eterno morrer na cruz dos seus braços. É . . . as mulheres são muito estranhas . . . muito estranhas.

RS: E os parceiros musicais ? Fale um pouco deles.
Vinicius: A parceria é como um casamento sem sexo. Há ciúmes, brigas, curtições, muita amizade e cumplicidade. O Tom Jobim, eu conheci no bar/restaurante Villarino, que fica próximo à Academia Brasileira de Letras. Fomos apresentados porque eu precisava de um arranjador para a peça ‘Orfeu da Conceição’(adaptação do drama da mitologia grega ‘Orfeu e Eurídice’ à realidade de um morro carioca). Ele, numa pobreza franciscana danada, foi logo perguntando se rolaria um dinheirinho (risos). Daí por diante, a parceria rendeu os frutos conhecidos e a garota mais famosa do mundo.

Depois veio o Carlinhos Lyra, com quem fiz o musical “Pobre menina rica”.
Com Baden Powel, foram os afro-sambas. Passamos 15 dias trancafiados no meu apartamento compondo “Berimbau”, “Canto de Ossanha”, “Tristeza e solidão”, entre outros.

RS: Você teve outros parceiros.
Vinicius: Francis Hime, Edu Lobo, Chico Buarque, João Bosco e, claro, o Toco.

RS: Toquinho foi especial, correto?
Vinicius: Muito. Há quem atribua a ele o milagre da minha profissionalização enquanto artista – se é que isto realmente ocorreu. Compusemos muita coisa boa. Foi uma nova fase. Eu entrava com uma certa malandragem e experiência acumuladas; ele, com o vigor da juventude e o virtuosismo de violonista. Estouramos com “Tarde em Itapoã”, depois vieram outras músicas: “Regra três”, “Samba da volta”, “Na Tonga da Milonga”; “Como dizia o poeta”. Poxa, foram tantas!

RS: Vinicius, você conheceu e conviveu com muita gente. Você gostava de gente. Uma pessoa incrível, na sua opinião?
Vinicius: Alfredo da Rocha Viana Júnior, o Pixinguinha. Pra esse eu tiro o chapéu. Não sei de onde ele tirava tanta sabedoria e bondade. Fizemos sambas juntos: “Mundo melhor e “Lamento”. Fui algumas vezes até sua casa, no subúrbio de Ramos, pra ouvi-lo tocar piano e sax. Além de chorinho, ele adorava Bach: ‘Vinicius, em Bach, está tudo de música!’. Outra figura fantástica foi o Paulinho Soledade, meu parceiro em “Poema dos olhos da amada”, “São Francisco”. Companheiro de copo e longos papos esotéricos na banheira.

RS: Quais os tipos mais irritantes?
Vinicius: Detesto fascistas e gente fiteira, afetada; quem não paga pra ver. A vida é uma só, meu caro. Duas mesmo que é bom ninguém vai me provar muito bem provado a não ser com certidão passada em cartório do céu e assinado embaixo: Deus. Com firma reconhecida. A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida.

RS: Sua demissão do Itamaraty.
Vinicius: Foi em 1969, por ordem direta do então presidente Costa e Silva. No despacho vinha: “Ponha-se esse vagabundo para trabalhar!”. Chorei um dia inteiro, mas senti alívio depois.

RS: Uma música.
Vinicius: Ih, irmãozinho, foram tantas ! Nature boy’, de Éden Ahbez. Eu era do Itamaraty e fui designado vice-cônsul nos EUA, em Los Angeles, quando essa música nasceu, no final da década de 40. Marcou muito.

RS: Existiu alguma cobrança quando você largou a chamada ‘alta literatura’ pra se dedicar mais à música popular?
Vinicius: Sim, houve muita crítica. Sempre achei isso tudo uma grande bobagem. Veja o Pixinga, o Villa-Lobos. Eles transitavam do popular ao clássico sem nenhum drama de consciência. Uma forma alimentava a outra. A minha poesia não ficava mais fácil ou se descomplicava quando escrevia letras de música popular. Via essa cobrança como puro preconceito elitista de quem não conhece a fundo a riqueza da cultura popular. O Baden tocava qualquer suíte clássica para violão com destreza irretocável. Será que Andrés Segovia ou Tarrega, criadores do violão erudito, tocariam um samba como o Baden?

Eu tinha vergonha de cantar até João Gilberto me dizer: “Vina, todos têm o direito de cantar!”. Eu nunca mais esqueci essa frase dita por ninguém menos do que o João.

RS: Bom de poesia, copo e . . . polêmicas. (risos)
Vinicius: Nem tantas. As principais foram em São Paulo e Belo Horizonte. Estava numa boate em São Paulo, tentando, em vão, ouvir a voz e o piano do Johnny Alf, mas a turma estava mais interessada em fofoca e negócios do que em música. Aí eu me irritei e gritei pro Johnny pra ele parar de tocar porque o pessoal não dava bola pro seu talento, pois São Paulo era o túmulo do samba.

RS: E em Minas?
Vinicius: Eu chegara pro show, direto da casa de um amigo lá de Minas cuja amizade era tensa e meio competitiva. Lá pelas tantas, saiu a pérola: “Eu quero que a tradicional família mineira vá pra P#*@+!”. Quase apanhei (risos). O diplomata passou a ser o Toquinho (risos). Teve também uma rusga com um americano palpiteiro. Ele questionou meu verso “é melhor viver do que ser feliz”. Segundo ele, o certo seria: “é melhor viver e ser feliz”. O cara não entendeu nada.

RS: Poeta, quando ela chegou, foi mesmo a sua mais nova namorada?
Vinicius: Eu e o Carlinhos Lyra tomávamos chope no Barbas’s (bar do Nelsinho, filho de Nélson Rodrigues), quando fomos abordados por uma jovem jornalista, foquinha, que disparou em minha direção: “Vinicius, você tem medo da morte?” Eu, que já estava nos acréscimos, respondi, com serenidade, que o que tinha era saudades da vida. O querido Rubem Braga fez uma crônica linda sobre minha partida.

RS: Pra finalizar. Você começou místico, virou materialista e (Saravá, meu pai!) terminou compondo músicas para crianças. Por curiosidade, o que vem depois da . . .
Vinicius: Isto é um sonho, esqueceu?

E depois disso, ao mestre Rampa Singar, nada mais digo.

*Administrador e sociólogo

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

Mercado X sustentabilidade

Obsolescência planejada:
armadilha silenciosa na sociedade de consumo

Valquíria Padilha
Renata Cristina A. Bonifácio

"É comum um telefone celular ir ao lixo com menos de oito meses de uso ou uma impressora nova durar apenas um ano. Em 2005, mais de 100 milhões de telefones celulares foram descartados nos Estados Unidos. Uma CPU de computador, que nos anos 1990 durava até sete anos, hoje dura dois anos. Telefones celulares, computadores, aparelhos de televisão, câmeras fotográficas caem em desuso e são descartados com uma velocidade assustadora. Bem-vindo ao mundo da obsolescência planejada!”

Na sociedade de consumo, as estratégias publicitárias e a obsolescência planejada mantêm os consumidores presos em uma espécie de armadilha silenciosa, num modelo de crescimento econômico pautado na aceleração do ciclo de acumulação do capital (produção-consumo-mais produção). Mészáros (1989, p.88) diz que vivemos na sociedade descartável que se baseia na “taxa de uso decrescente dos bens e serviços produzidos”, ou seja, o capitalismo não quer a produção de bens duráveis e reutilizáveis. A publicidade é o instrumento central na sociedade de consumo e um grande motivador de nossas escolhas, pois é por meio dela que geralmente nos são apresentados os produtos de que passamos a sentir necessidade. A função da publicidade é persuadir visando a um consumo dirigido. Para aquecer as vendas, trabalha arduamente para convencer o consumidor da necessidade de produtos supérfluos. É o que Bauman (2008) chama de “economia do engano”. Para Latouche (2009, p.18), “a publicidade nos faz desejar o que não temos e desprezar aquilo que já desfrutamos. Ela cria e recria a insatisfação e a tensão do desejo frustrado”.

A obsolescência planejada

Para mover esta sociedade de consumo precisamos consumir o tempo todo e desejar novos produtos para substituir os que já temos – seja por falha, por acharmos que surgiu outro exemplar mais desenvolvido tecnologicamente ou simplesmente porque saíram de moda. Serge Latouche, no documentário A história secreta da obsolescência planejada [1], diz que nossa necessidade de consumir é alimentada a todo momento por um trio infalível: publicidade, crédito e obsolescência.

Planejar quando um produto vai falhar ou se tornar velho, programando seu fim antes mesmo da ação da natureza e do tempo de uso é a obsolescência planejada. Trata-se da estratégia de estabelecer uma data de morte de um produto, seja por meio de mau funcionamento ou envelhecimento perante as tecnologias mais recentes. Essa estratégia foi discutida como solução para a crise de 1929. O conceito teve início por volta de 1920, quando fabricantes começaram a reduzir de propósito a vida de seus produtos para aumentar venda e lucro. A primeira vítima foi a lâmpada elétrica, com a criação do primeiro cartel mundial (Phoebus) para controlar a produção. Seus membros perceberam que lâmpadas que duravam muito não eram vantajosas. A primeira lâmpada inventada tinha durabilidade de 1.500 horas. Em 1924, as lâmpadas duravam 2.500 horas. Em 1940, o cartel atingiu seu objetivo: a vida-padrão das lâmpadas era de 1.000 horas. Para que esse objetivo fosse atingido, foi preciso fabricar uma lâmpada mais frágil.

Em 1928, o lema era: “Aquilo que não se desgasta não é bom para os negócios”. Como solução para a crise, Bernard London propôs, num panfleto de 1932, que fosse obrigatória a obsolescência planejada, aparecendo assim pela primeira vez o termo por escrito. London pregava que os produtos deveriam ter uma data para expirar, acreditando que, com a obsolescência planejada, as fábricas continuariam produzindo, as pessoas consumindo e, portanto, haveria trabalho para todos, que trabalhando poderiam consumir e assim fazer o ciclo de acumulação de capital se manter. Nos anos 1930, a durabilidade começou a ser propagada como antiquada e não correspondente às necessidades da época. Nos anos 1950, a obsolescência planejada ressurgiu com o enfoque de criar um consumidor insatisfeito, fazendo assim que ele sempre desejasse algo novo. Ainda no pós-guerra assentaram-se as bases da sociedade de consumo atual, por meio do estilo de vida norte-americano (American way of life), baseado na liberdade, na felicidade e na ideia de abundância em substituição à ideia do suficiente.

Os tipos de obsolescência

Podemos considerar três tipos de obsolescência: obsolescência de função, de qualidade e de desejabilidade. “Pode haver obsolescência de função. Nessa situação, um produto existente torna-se antiquado quando é introduzido um produto que executa melhor a função. Obsolescência de qualidade. Nesse caso, quando planejado, um produto quebra-se ou se gasta em determinado tempo, geralmente não muito longo. Obsolescência de desejabilidade. Nessa situação, um produto que ainda está sólido, em termos de qualidade ou performance, torna-se gasto em nossa mente porque um aprimoramento de estilo ou outra modificação faz que fique menos desejável” (Packard, 1965, p.51).

Slade (2006) chama a “obsolescência de função” de “obsolescência tecnológica”, que é o tipo de obsolescência mais antiga e permanente desde a Revolução Industrial até hoje, em razão da inovação tecnológica. Assim, a obsolescência tecnológica, ou de função, sempre esteve atrelada a determinada concepção de progresso visto como sinônimo de avanços tecnológicos infinitos. Os telefones celulares e os notebooks são o melhor exemplo disso. A “obsolescência de qualidade” é quando a empresa vende um produto com probabilidade de vida bem mais curta, sabendo que poderia estar oferecendo ao consumidor um produto com vida útil mais longa. Na década de 1930, faziam-se constantes apelos aos consumidores para trocarem suas mercadorias por novas em nome de se tornarem bons e verdadeiros cidadãos norte-americanos. O último e mais complexo tipo de obsolescência é o da desejabilidade, ou “obsolescência psicológica”, que é quando se adotam mecanismos para mudar o estilo dos produtos como maneira de manipular os consumidores para irem repetidamente às compras. Trata-se, na verdade, de gastar o produto na mente das pessoas. Nesse sentido, os consumidores são levados a associar o novo com o melhor e o velho com o pior. O estilo e a aparência das coisas tornam-se importantes como iscas ao consumidor, que passa a desejar o novo. É o design que dá a ilusão de mudança por meio da criação de um estilo. Essa obsolescência pode ser também conhecida como “obsolescência percebida”, que faz o consumidor se sentir desconfortável ao utilizar um produto que se tornou ultrapassado por causa do novo estilo dos novos modelos.

A lógica da sociedade capitalista precisa criar ou renovar estratégias que favoreçam a acumulação do capital (por meio não só da expropriação da mais-valia na produção, mas também pelo lucro obtido na venda dos produtos). Mészáros (1989) nos mostra que a taxa de uso decrescente no capitalismo é um mecanismo inevitável da produção destrutiva do capital. O autor considera esse fenômeno intrínseco ao modo de produção capitalista, o qual precisa estimular a sociedade descartável para perdurar enquanto sistema econômico hegemônico. Ele diz: “É, pois, extremamente problemático o fato de que [...] a ‘sociedade descartável’ encontre o equilíbrio entre produção e consumo necessário para a sua contínua reprodução, somente se ela puder artificialmente consumirem grande velocidade (isto é, descartar prematuramente) grandes quantidades de mercadorias, que anteriormente pertenciam à categoria de bens relativamente duráveis. Desse modo, ela se mantém como sistema produtivo manipulando até mesmo a aquisição dos chamados ‘bens de consumo duráveis’, de tal sorte que estes necessariamente tenham que ser lançados ao lixo (ou enviados a gigantescos ‘cemitérios de automóveis’ como ferro-velho etc.) muito antes de esgotada sua vida útil” (Mészáros, 1989, p.16).

A sociedade do consumo visa atender às necessidades de acumulação do capital mais do que às necessidades básicas de seus membros. Se a satisfação de todos fosse realmente a finalidade do sistema produtivo, os bens seriam reutilizáveis. Mas, como o capitalismo “tende a impor à humanidade o mais perverso tipo de existência imediata” (Mészáros, 1989, p.20), toda a sociedade fica submetida à lógica de acumulação do capital segundo a qual a não aceleração do ciclo produção-consumo se torna um obstáculo. Assim, a obsolescência planejada passa a ser uma estratégia fundamental para satisfazer as exigências expansionistas do modo de produção capitalista. “[...] quanto menos uma dada mercadoria é realmente usada e reusada (em vez de rapidamente consumida, o que é perfeitamente aceitável para o sistema), [...] melhor é do ponto de vista do capital: com isso, tal subutilização produz a vendabilidade de outra peça de mercadoria” (Mészáros, 1989, p.24).

Tudo acaba virando lixo

A obsolescência planejada é uma tecnologia a serviço do capital. Para aumentar a acumulação de riquezas privadas, o capital devasta, destrói, esgota a natureza. O aumento da riqueza do capital é proporcional ao aumento da destruição da natureza. Na sociedade da obsolescência induzida, tudo acaba em lixo. Quanto mais rápida e passageira for a vida dos produtos, maior será o descarte. A publicidade é o motor que faz toda essa dinâmica funcionar. Esse modelo de sociedade baseada na estratégia da obsolescência planejada está sendo determinante no esgotamento dos recursos naturais (que ocorre na etapa da produção) e no excesso de resíduos (que ocorre na etapa do consumo e do descarte). Magera (2012) salienta que a humanidade, que existe no planeta há milhares de anos, conseguiu alcançar a maioria de todos os avanços tecnológicos e informacionais apenas nos últimos duzentos anos. Mas essa sociedade do consumo, que, em nome do progresso, aumenta o volume e a velocidade das coisas produzidas industrialmente, eleva também o volume de lixo. Ao mesmo tempo, os consumidores não são estimulados a se conscientizar sobre a geração de resíduos. O lixo é algo do qual as pessoas querem se desfazer o mais rápido possível e, de preferência, que seja levado para bem longe.

Leonard (2011) apresenta inúmeros dados relacionados à extração de recursos naturais e à produção e geração de resíduos no final do ciclo. Alguns exemplos: para produzir uma tonelada de papel, são usadas 98 toneladas de vários outros materiais; 50 mil espécies de árvores são extintas todos os anos; os norte-americanos possuem cerca de 200 milhões de computadores, 200 milhões de televisores e 200 milhões de celulares; nos Estados Unidos são consumidos cerca de 100 bilhões de latinhas de alumínio anualmente. A autora mostra que todo o nosso sistema produtivo-consumista, potencializado pelas estratégias de obsolescência, produz uma destruição assustadora dos recursos naturais ao mesmo tempo que aumenta consideravelmente a geração de lixo. Com a taxa decrescente do valor de uso dos produtos, tudo o que o sistema consegue é aumentar a acumulação do capital enquanto aumenta a destruição do planeta.

Produção de tecnologias verdes ou programas de reciclagem não resolvem essa gama de problemas. É urgente rever o modelo de crescimento econômico que se sustenta nos pilares da obsolescência planejada.

Decrescimento econômico

Podemos afirmar que a espinha dorsal desta sociedade de consumo atual é a aceleração do ciclo produção-consumo-mais produção-mais consumo, gerando descarte e resíduos. O consumo é visto como o motor responsável pelo crescimento econômico – entendido como algo sempre bom e necessário – com base em um paradigma produtivista-consumista. A publicidade continua uma aliada fundamental para manter acesa a chama do consumo e da taxa decrescente do valor de uso das mercadorias, fazendo dos consumidores vítimas de uma armadilha invisível.

Rever os princípios que norteiam esse modelo de crescimento econômico é necessário. Inspiramo-nos no movimento recente do decrescimento econômico, que tem o economista francês Serge Latouche como um dos principais expoentes. O PIB não pode mais continuar sendo visto como uma taxa que deve sempre crescer. Não é razoável pensar num crescimento infinito quando o planeta é finito. O movimento pelo decrescimento econômico parece-nos uma saída para muitos dos problemas que apontamos aqui. Não se trata de voltar ao tempo das cavernas, mas sim de parar imediatamente com esse modelo de crescimento, de progresso e de felicidade ancorado na sociedade de consumo. O crescimento pelo crescimento é irracional. Precisamos descolonizar nossos pensamentos construídos com base nessa irracionalidade para abrirmos a mente e sairmos do torpor que nos impede de agir. Latouche diz: “A palavra de ordem decrescimento tem como principal meta enfatizar fortemente o abandono do objetivo do crescimento ilimitado, objetivo cujo motor não é outro senão a busca do lucro por parte dos detentores do capital, com consequências desastrosas para o meio ambiente e, portanto, para a humanidade” (2009, p.4). A nova lógica que deverá ser construída é a de que podemos ser felizes trabalhando e consumindo menos. Nesse projeto, não faz sentido falar em desenvolvimento sustentável – mais um slogan da moda que os capitalistas inventaram. Falar em ecoeficiência é continuar na “diplomacia verbal”.

O assunto não se esgota aqui, obviamente, mas é fundamental desvelar o princípio da obsolescência planejada para que possamos renovar nossas utopias de um mundo onde a natureza seja preservada, onde haja mais presença e menos presente, mais laços humanos e menos bens de consumo.

[1] Disponível em YouTube

Referências bibliográficas

BAUMAN, Z. Vida para consumo. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
HAUG, W. F. Crítica da estética da mercadoria. São Paulo: Editora Unesp, 1997.
LATOUCHE, S. Pequeno tratado do decrescimento sereno. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
LEONARD, A. A história das coisas. Da natureza ao lixo, o que acontece com tudo que consumimos. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
MAGERA, M. Os caminhos do lixo. Campinas (SP): Átomo, 2012.
MÉSZÁROS, I. Produção destrutiva e o estado capitalista. São Paulo: Ensaio, 1989.
PACKARD, V. Estratégia do desperdício. São Paulo: Ibrasa, 1965.
SLADE, G. Made to break: technology and obsolescence in America [Feito para quebrar: tecnologia e obsolescência nos Estados Unidos]. Harvard University Press, 2006.

Extraído de Diplomatique

quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Internet

Por um Brasil 2.0*
Mauro Santayana

No novo marco da internet brasileira e no quadro do enfrentamento da espionagem cibernética norte-americana e de outros países anglo-saxônicos, como se descobriu, agora, no caso do Canadá, é preciso tomar cuidado com o que se está falando, fazendo e propondo.

Se pretende ter papel ativo no estabelecimento de um marco internacional para a internet, o Brasil não pode — por açodamento ou desinformação — adotar ou apresentar propostas inócuas, como a de tornar obrigatória a hospedagem, por empresas internacionais, de dados de cidadãos brasileiros em servidores situados em território nacional.

Estejam onde estiverem, os servidores continuarão a ser operados pelas próprias empresas — a não ser que o governo passe a co-administrar o Google, o Facebook ou a Microsoft no Brasil, o que é tão improvável como ilegal. Se a empresa quiser (ou um diretor seu, ou um simples funcionário), bastará repassar os dados requeridos para o governo norte-americano, após recolhê-los em seus servidores instalados em território brasileiro.

Depois, porque esteja dentro ou fora do Brasil, teoricamente qualquer servidor pode ser invadido. Prova disso é que até mesmo servidores do Pentágono e do governo dos EUA já foram “derrubados”, inclusive por hackers brasileiros, que há alguns dias.atacaram servidores da Nasa (por ter sido — pasmem! — confundida com a NSA).

Além disso, surgem (e morrem), todos os dias, milhares de empresas na internet, entre elas redes sociais, que, de um jeito ou outro, terão acesso a informações de brasileiros, pessoais ou não, já a partir do cadastro. Como saber se elas têm ou não contato com o governo norte-americano? Ou se não foram criadas pelas agências de segurança norte-americanas? Como monitorar seu surgimento, e obrigá-las a transferir seus servidores para o Brasil?

Construir uma rede de internet, seja ela de âmbito doméstico, corporativo, nacional ou planetário, é, teoricamente, simples.

Com determinação e dinheiro, qualquer nação, ou uma aliança de países, como o Brics — abordamos a hipótese de uma Bricsnet, há alguns dias — pode comprar, ou desenvolver, se tiver tempo, os servidores, backbones, roteadores, cabos de fibra ótica, satélites, antenas, computadores, tablets, iphones, etc, necessários para isso.

Embora o controle físico de uma rede, ou de parte dela — estamos encomendando satélites, instalando os cabos óticos da Unasul e discutindo o projeto Brics Cable — seja importante, ele de nada vai adiantar se não dispusermos de softwares, que sejam também relativamente seguros, para que essa rede, ou sub-rede, venha a funcionar.

Esses softwares, “open source”, existem. Como possuem código aberto e são aperfeiçoados rotineiramente, de forma voluntária e colaborativa, por gente do mundo inteiro, é mais difícil dotá-los de “armadilhas” e “portas” clandestinas — como ocorre com softwares das grandes empresas de internet — para espionar os usuários.

O governo brasileiro já utiliza software livre em programas ligados ao Estado. E também softwares desenvolvidos pelo próprio governo. Tem que passar a usá-los, exclusiva e obrigatoriamente, dotando-os de criptografia, nas comunicações oficiais, além de instalar sistemas que bloqueiem a utilização de e-mails, redes sociais e sites particulares a partir de computadores da administração pública.

Mas nada disso vai adiantar se esses softwares não puderem ser multiplicados, disseminados e utilizados, por meio de aplicativos, no dia a dia do cidadão comum, o que nos leva a um fator decisivo — o marketing — que nessa discussão não tem sido tratado, até agora, com a devida importância.

Cidadãos de todo o mundo não têm seus dados devassados, apenas porque os EUA sejam manipuladores e “malvados”. Eles são espionados, porque preferem continuar a sê-lo a deixar de usar sites como o Google, o Youtube, o Skype, o Instagram ou o Facebook.

Se essas empresas fossem proibidas de atuar no Brasil, os cidadãos brasileiros continuariam a ter — voluntariamente — acesso a elas e aos seus serviços, bastando para isso conectar-se aos seus computadores, situados nos EUA ou em outros países. Isso, a não ser que cidadãos brasileiros fossem censurados e proibidos de fazê-lo, e mesmo assim — nessa hipótese absurda — eles poderiam burlar o governo através de proxys, VPNs, e muito mais.

Como já fizeram antes com o cinema e a televisão, quando se sentam para decidir que roteiro escrever e produzir, na internet — na hora de escolher que startup apoiar, que tipo de aplicação desenvolver, onde instalar um vírus ou um malware — os norte-americanos agem, também, como o personagem do conto de fadas do Flautista de Hamelin.

Desde a mais tenra idade, nossas crianças são fascinadas pelos seus jogos, se comunicam por meio de seus serviços de mensagem, interagem em suas redes sociais, conversam por meio de seus bate-papos e videochats.

Se — sozinhos ou com o Brics — não soubermos apostar na educação e inovação, no marketing e no entretenimento, para conquistar a atenção de nossos jovens, a sociedade brasileira continuará a ser espionada — mesmo que a presidente passe a usar o novo e-mail dos Correios, ou um dia venha a deixar de “tuitar”.

*Extraído de Jornal do Brasil

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Gestão pública

Gestão Pública no Contexto da Hegemonia do Capital

Novo local do seminário com Mari Lúcia Fattorilli, dia 16 de setembro às 17h na UERJ:


quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Gestão pública

Gestão Pública no Contexto da Hegemonia do Capital

Daniel Roedel

Este é o título do ciclo de seminários que o Programa de Políticas Públicas e Formação Humana - PPFH da UERJ, inicia em setembro. O evento de lançamento acontecerá no dia 16 de setembro às 17:00 horas no Bloco F, 12º andar, RAV 122, no bairro do Maracanã. Maria Lúcia Fattorelli realizará a palestra "A gestão e as políticas do Estado brasileiro orientadas pela concepção e interesses mercantis". A coordenação é do Professor Gaudêncio Frigotto e conta com o apoio do Colegiado.

O ciclo de seminários do PPFH tem como objetivo refletir e propor uma nova gestão pública que possa representar uma contra-hegemonia ao modelo atual, subordinado aos princípios neoliberais.

Maria Lúcia Fattorelli é Auditora Fiscal do Ministério da Fazenda, Coordenadora Nacional da Auditoria Cidadã da Dívida Pública, Assessora Especial da CPI da Dívida Pública da Câmara dos Deputados, e integrante de equipe selecionada que atuou, com sucesso, na auditoria da dívida pública do Equador, levando o país a pagar apenas 30%. É também conferencista internacional. Mais informações sobre o tema auditoria podem ser obtidas em cidadania.

Informações sobre o evento podem ser obtidas em PPFH.


quinta-feira, 25 de julho de 2013

Mídia

A raposa, o furão e o chupa-cabras

Celso Evaristo Silva*

Certa vez, no tempo em que os bichos falavam, ocorreu súbito desaparecimento de grande número de galinhas. O pânico tomou conta do galinheiro. Para desvendar o mistério, o xerife gavião nomeou uma comissão encarregada de apurar os fatos. Os componentes da comissão eram: a raposa, o furão e o chupa-cabras.

Ao final da apuração, o grupo elaborou um relatório conclusivo: “Durante a noite, alguma galinha meio tontinha caíra do poleiro, assustando as demais. Na confusão, a mais afoita delas lançou-se contra a tela de arame e abriu um buraco por onde muitas galinhas escaparam para a mata, onde se perderam para sempre”.

Todos os animais (com exceção, é claro, das desconfiadas galinhas sobreviventes) aceitaram o parecer final do distinto trio, o galinheiro foi remendado e a vida seguiu seu curso na fazenda.

Apesar de chinfrim, essa pequena fábula nos serve de alegoria lúdica para refletirmos sobre o que tem sido, nos dias de hoje, o papel da grande mídia no controle do fluxo e do cardápio das informações sobre as principais questões a serem levadas ao público; mais do que isso, na formação do imaginário coletivo. É...a mídia não mais informa, ela forma e/ou deforma. Tal qual o relatório dos bichos, ela cria pseudo realidades, a partir de recorte autorreferenciado, as quais devemos placidamente aceitar. É engenharia social na veia. E por que isso acontece? Simples. Não há contraditório. As análises sobre as recentes manifestações de rua não deixam dúvidas (pelo menos pra quem ainda arrisca pensar um pouco com a própria caixola) sobre o papel manipulador exercido pela mídia hegemônica.

Uma grande rede de televisão, por exemplo, não divulga notícias sobre protestos contra ela própria. Os defensores empedernidos da livre iniciativa dirão que é assim mesmo – não se deve esperar de nenhuma empresa a contra-propaganda. Bingo. Se a ética da informação deve ser construída sobre tais bases, ou seja, deve ser tratada como business, bem-vinda, então, a concorrência. Sem ela, o contraditório, o leque de opções, a escolha do consumidor ficam comprometidos na essência.

Mas prestem atenção: não basta, no caso específico da informação e do conhecimento, o aumento quantitativo de concorrentes, é preciso haver entre eles variedade qualitativa no trato da comunicação a ser veiculada. Entendido o qualitativo como a combinação de três elementos: eficácia na arrumação de dados, diversidade de pontos de vista na sua análise e honestidade intelectual na construção dos argumentos. A ausência de qualquer um deles compromete o trabalho final.

A existência de grupos midiáticos ideologicamente afeiçoados, mesmo em grande número (não é o caso brasileiro), não é mais do que um “monopólio repartido”; fato indefensável do ponto de vista ético e estético.

Assim como o consumidor tem direito de saber se o produto adquirido no supermercado foi elaborado ou não com transgênicos, se contém ou não glúten, o consumidor da informação deve ter acesso à mesma informação proveniente de fontes ideológicas quantitativa e qualitativamente distintas, para que ele, o tanto quanto possível, possa construir sua opinião sobre este ou aquele assunto. Necessita do contraditório para exercer o papel concomitante de consumidor e cidadão.

Entenda-se: não se trata de discutir sobre a pobreza ou riqueza argumentativa dos debatedores da gênese, desdobramento e implicações futuras de qualquer fenômeno, mas de matutarmos sobre o perfil ideológico dos analistas recrutados pela mídia na análise de qualquer situação, evitando circunscrever o debate a uma única matriz de pensamento.

Para ilustrar, destacamos as recorrentes críticas ao BNDES e o modo como vem atuando nos últimos anos, promovidas de modo sistemático e acrítico pela mídia hegemônica. A revista “ISTO É Dinheiro” publicou, este mês, matéria de capa intitulada “O jogo duvidoso do BNDES”. Difícil para um Paul Krugman – que dirá para um zé-ninguém-em-economia – como este que vos escreve – descrever em poucas linhas o corolário de contradições da matéria assinada pelos jornalistas econômicos (codinome para intelectual orgânico do liberalismo tupiniquim) Luís Artur Nogueira e Paulo Justus. Ambos escorados na argumentação política isenta do deputado César Colnago (PSDB-ES – surpresa?), nas análises econômicas do pragmático (nem neoliberal, nem desenvolvimentista) economista Mansueto Almeida e nos estudos conduzidos pelos pesquisadores Sergio Lazzarini, Aldo Musacchio e Claudia Bruschi, do Insper, Harvard Business School e FGV/SP, respectivamente. Jovens revelações do velho baluarte de instituições representativas do pensamento liberal.

A tese central é velha conhecida: o BNDES empresta muito a poucos ungidos, a juros subsidiados. Sem querer entrar no mérito da questão, por vezes, escolhas são necessárias. Obama as fez ao injetar dinheiro do contribuinte americano nas três grandes montadoras de veículos – Ford, GM e Chrysler. Os liberais e o partido republicano metralharam o presidente taxado de socialista/intervencionista. As três foram salvas da degola.

Na matéria, os articulistas citam mais críticas do Sr. Lazzarini, do Insper, ao BNDES, o qual não vê sentido em se fazer empréstimos a “países amigos”; deveria. Pra quem foi aluno visitante da Havard, deveria saber que não dá pra ser um player mundial sem arriscar e conquistar mercados. Os anglo-saxões e a China também fazem esse tipo de empréstimo. Desbravam, plantam agora pra colher décadas à frente. Os chineses (pouco afeitos à filantropia) investem direto na África.

A matéria de ISTO É proporcionaria interessante debate se o intuito fosse debater, estabelecer contrapontos, buscar alternativas, mas, na engenharia social a que ficou reduzida nossa mídia, a inoculação de memes, modelos mentais na cabeça de leitores e telespectadores desavisados parece ser a estratégia. Conduzir a opinião pública no sentido de apoiar determinados interesses políticos e econômicos sem o menor senso crítico é o objetivo maior. As galinhas que se cuidem.

*Sociólogo e Administrador

quinta-feira, 11 de julho de 2013

República

Choque de vaidades e poderes

Celso Evaristo Silva*

A teoria da separação de poderes está ligada ao nome do escritor francês, barão Charles de Montesquieu (1689-1755), e está manifesta na sua obra O Espírito das leis, de 1748, um clássico do direito constitucional. No capítulo destinado ao estudo da constituição inglesa, a qual ele tem como paradigma de representação política, Montesquieu identifica as três espécies de poder: o legislativo, o executivo das coisas e o judiciário. Ao primeiro caberia a elaboração das leis; ao segundo, sua execução; e a parte de julgamento dos litígios e o cumprimento legal ficariam com o terceiro poder. A garantia da liberdade dos cidadãos (no caso dos ingleses, súditos) dependeria do funcionamento independente de cada um dos poderes em relação aos outros dois. Além do funcionamento autônomo dessas instâncias, no plano individual, uma pessoa não poderia atuar simultaneamente em mais de uma delas, sob pena de quebrar o princípio básico de que “o poder limita o poder”, ocasionando choque imediato de interesses.

Enquanto fato histórico observável, o modelo de Montesquieu nunca ocorreu na íntegra, pelo menos é no que a maioria dos tratadistas do direito público e da ciência política parece concordar. Condicionantes históricos, um certo relativismo de atuação, assimetrias de poder fazem com que as instâncias acabem por invadir a seara uma da outra, gerando atritos. Tal realidade faria da “separação dos poderes” algo mais parecido com o “tipo ideal” weberiano do que com uma construção científica da teoria do direito, como talvez desejassem os positivistas.

Apesar do grau inevitável de subjetivismo envolvendo a questão, a tentativa de se manter o equilíbrio entre os três poderes, através do diálogo, da negociação e do aperfeiçoamento institucional tem demonstrado ser de fundamental importância para a garantia do Estado de direito e da democracia.

Vivemos no Brasil um momento delicado no que se refere ao princípio de independência dos poderes. A aprovação pelos deputados da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), da Câmara, da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) elevou a temperatura política. A proposta trata de alteração na sistemática do controle de constitucionalidade de normas realizado por tribunais e pela Suprema Corte. Ministros do STF manifestaram de forma clara sua objeção à proposta.

Por outro lado, os presidentes da Câmara e do Senado anunciaram que vão recorrer ao STF para que o plenário julgue a liminar concedida pelo ministro Gilmar Mendes, ao PSB, a qual suspendeu a tramitação do projeto de lei que restringe o acesso ao fundo partidário aos novos partidos, bem como o tempo destinado à propaganda no radio e na televisão. O PSB entendeu ser casuísmo da bancada governista o projeto, em face das eleições de 2014. Alguns parlamentares sentem cheiro de retaliação por parte do ministro do Supremo. Seria a conta da PEC.

Ao suspender a tramitação de um projeto de lei na Câmara, o ministro Gilmar Mendes, em nome de uma eventual inconstitucionalidade, adotou procedimento inédito de questionar algo ainda não aprovado em plenário. Lideranças do legislativo acusam a Corte de intervir em questões internas; ao passo que o STF lembra a demora crônica do congresso em avaliar e votar questões importantes. Um lado acusa o outro de “ativismo judicial”, o outro rebate com o argumento de “imobilismo e casuísmo”congressista.

A sensação é que houve uma troca de posições. O legislativo começa a entrar na seara jurídica, sem estar preparado ou “vocacionado” para isso, enquanto o STF parece sofrer um processo acelerado de politização, ou, melhor qualificando, partidarização, desde o julgamento do chamado “processo do mensalão”, tão bem coberto pela a mídia (o quarto poder, inexistente no modelo de Montesquieu, mas determinante nos dias de hoje).

O parlamento, pela origem de representação dos diversos estratos sociais dos seus integrantes, tem por função debater mais aberta e apaixonadamente os temas políticos, lidar com o jogo de interesses e buscar acordos que possibilitem a governança do país, sem excluir nem deixar de reconhecer a importância de uma oposição atuante. Quanto à Corte Suprema, é dela esperado maior temperança, tecnicidade jurídica – principalmente no que tange à constitucionalidade do que lhe é apresentado – e discrição na sua maneira de atuar. A variável política estará sempre presente em qualquer instituição; seria ingenuidade imaginá-la ausente do STF, mas este fato não elide a necessidade de tratá-la com o máximo cuidado e maturidade coletiva.

Porém o que se tem visto ultimamente é a constância com que questões são transferidas do fórum legislativo para serem debatidas e aprovadas na arena do Supremo (não está o legislativo abrindo mão de sua soberania?); e, não menos recorrente, alguns ministros do Supremo virando verdadeiras celebridades globais, ao ponto de uma simples aparição em um restaurante, show ou qualquer evento público, no Rio ou em São Paulo, ser motivo para vibrante ovação por parte dos presentes. Ministros do Supremo dando longas entrevistas, sendo televisados passando pito em magistrados ou posando para capa de revista não contribuem para o cumprimento de sua missão.

A premissa também é válida para deputados mais preocupados em aparecer na mídia do que em trabalhar pela elevação da atividade política. É sempre bom lembrar aos representantes dos três poderes quem lhes outorgou o poder de representação: a soberania popular.

A quem interessa o desgaste dos três poderes? Essa pergunta não pode ser esquecida por ninguém. Em política, “A quem interessa...?” é a pergunta de onde se deve partir para analisar qualquer situação, pessoa, grupo social ou fato.

Sigmund Freud (1856-1939) tinha uma frase maravilhosa sobre o salto alto nosso de cada dia:

"Uma pessoa pode defender-se das críticas; contra o elogio, ela estará sempre indefesa".

Nossos homens públicos deveriam observá-la à risca.

*Sociólogo e Administrador

quinta-feira, 27 de junho de 2013

Gestão social

Políticas sociais e transformação da sociedade[1] - V/V*
Ladislau Dowbor
O social: um poderoso articulador social
Um caminho renovado vem sendo construído através de parcerias envolvendo o setor estatal, organizações não-governamentais e setores abertos do empresariado. Surgem com força conceitos como responsabilidade social e ambiental do setor privado. O chamado terceiro-setor aparece como uma alternativa de organização que pode, ao se articular com o Estado e assegurar a participação cidadã, trazer respostas inovadoras. As empresas privadas ultrapassam a visão do assistencialismo, para assumir a responsabilidade que lhe confere o poder político efetivo que têm. Passa-se assim do simples marketing social, frequentemente com objetivos cosméticos, para uma atitude construtiva onde o setor privado pode ajudar a construir o interesse público.
Onde funciona, como por exemplo no Canadá ou nos países escandinavos, a área social é gerida como bem público, de forma descentralizada e intensamente participativa. A razão é simples: o cidadão associado à gestão da saúde do seu bairro está interessado em não ficar doente, e está consciente de que trata da sua vida. Um pai, associado à gestão da escola do seu bairro, não vai brincar com futuro dos seus filhos. De certa forma, o interesse direto do cidadão pode ser capitalizado para se desenhar uma forma desburocratizada e flexível de gestão social, apontando para novos paradigmas que ultrapassam tanto a pirâmide estatal como o vale-tudo do mercado.
Outro eixo renovador surge com as políticas municipais, o chamado desenvolvimento local. A urbanização permite articular o social, o político e o econômico em políticas integradas e coerentes, a partir de ações de escala local, viabilizando — mas não garantindo, e isto é importante para entender o embate político — a participação direta do cidadão, e a articulação dos parceiros. O surgimento de políticas inovadoras nesta área é muito impressionante. Peter Spink e um grupo de pesquisadores na Fundação Getúlio Vargas em São Paulo têm hoje um banco de 400 descrições de experiências exitosas e premiadas. A Secretaria de Assuntos Institucionais do Partido dos Trabalhadores tem um banco de dados com algumas centenas de experiências. O Pólis publica excelentes resumos no quadro das Dicas Municipais. A Fundação Abrinq está ajudando a dinamizar um conjunto de atividades no quadro do movimento Prefeito-Criança. Efeito indireto da urbanização, assistimos a uma aceleração de iniciativas locais que estão transformando o contexto político da gestão social.
Uma vantagem muito significativa das políticas locais é o fato de poderem integrar os diferentes setores, e articular os diversos atores. Pelo país afora, constatamos a expansão de conselhos locais de desenvolvimento econômico e social, de articulações inovadoras buscando no conjunto melhorar a qualidade de vida da população. São Paulo criou em 2013 um conselho de desenvolvimento sustentável, na linha da rede de Cidades Sustentáveis que hoje envolvem 31% da população do país. 
Não há fórmula universal na área social. Como demonstra a riqueza do projeto médico de família, por exemplo, a dimensão diferenciada das relações humanas é fundamental nas políticas sociais. Uma das mais significativas riquezas do desenvolvimento local resulta justamente do fato de se poder adequar as ações às condições extremamente diferenciadas que as populações enfrentam.
Isto não implica, naturalmente, que as políticas sociais possam se resumir à ação local, às parcerias com o setor privado, e à dinâmica do terceiro setor. A reformulação atinge diretamente a forma como está concebida a política nacional nas diversas áreas de gestão social, colocando em questão a presente hierarquização das esferas de governo, e nos obriga a repensar o domínio das macroestruturas privadas que se apropriam das áreas da saúde, dos meios de informação, dos instrumentos de cultura.
Mais uma vez, não se trata aqui de redescobrir coisas óbvias. Mas devemos nos colocar uma pergunta elementar: se as atividades da área social estão se tornando o setor mais importante, que tipo de relações sociais de produção o seu surgimento traz no seu bojo? Seguramente, serão diferentes das que foram geradas com o desenvolvimento industrial. Apontam para uma sociedade mais horizontalizada, mais participativa, mais organizada em rede do que as tradicionais pirâmides de autoridade. Ou podem ainda gerar um tipo de capitalismo de pedágio centrado na indústria da doença, na indústria do diploma, na manipulação cultural através da publicidade e do controle da mídia.
A universidade frente ao novo continente: primeiros passos
Não há dúvida que no Brasil a discussão ainda é muito recente, sobretudo se considerarmos que se trata de uma revisão profunda dos nossos paradigmas de como a sociedade se gere. Ainda estamos impregnados da visão de que a empresa só se interessa pelo lucro e será por tanto inacessível a uma visão social ou ambiental, de que organizar a participação da sociedade civil é apenas uma forma de desresponsabilizar o Estado e assim por diante. A contribuição acadêmica ainda está muito fragmentada, separada por setores, fatiada por assim dizer.
É muito significativo constatarmos que uma série de conceitos básicos da reformulação política e social que está ocorrendo em muitos países sequer encontra tradução em português: é o caso de empowerment, que os hispano-americanos já traduzem de empoderamiento, no sentido de resgate do poder político pela sociedade, e que estamos nacionalizando como empoderamento; de stakeholder, ou seja, de ator social que tem um interesse numa determinada decisão; de advocacy, que representa o original etimológico de ad-vocare, de criar capacidade de voz e defesa a uma causa, a um grupo social; de accountability, ou seja, da responsabilização dos representantes da sociedade em termos de prestação de contas; de devolution, recuperação da capacidade política de decisão pelas comunidades, como contraposição ao conceito de privatização; trata-se também de entitlement, de self-reliance e tantos outros. Além do conceito chave de governance, que envolve capacidade de governo do conjunto dos atores sociais, públicos e privados, onde o conceito tradicional de governança, tal como existe no Aurélio, tem de ser reconstruído.
A articulação que temos pela frente envolve uma aproximação articulada de empresários, de administradores públicos, de políticos, de organizações não governamentais, de sindicatos, de pesquisadores acadêmicos, de representantes comunitários. É interessante a PUC-SP, como a FGVSP a USP e outras instituições acadêmicas terem criados centros de estudos do Terceiro Setor. É significativo a pós-graduação em Economia da PUC ter criado um Laboratório de Economia Social. De certa forma, se trata da superação de uma separação acadêmica tradicional no Brasil, onde Economia e Administração tratavam de como maximizar lucros, enquanto o Serviço Social tratava de encontrar muletas para as vítimas do processo. Hoje quem estuda gestão social se preocupa com as novas formas participativas de elaboração do orçamento, com um imposto de renda negativo (renda-mínima), com novas formas de representação política e o novo potencial da comunicação. A gestão social está buscando novos espaços em termos políticos, econômicos e administrativos. Não é mais apenas um setor, é uma dimensão humana do próprio desenvolvimento, que envolve tanto o empresário como o pesquisador, ou o ativista do Movimento dos Sem Terra.
Os avanços não devem ser subestimados. Nos últimos anos, o Brasil tem dado passos impressionantes na expansão das políticas sociais. A América Latina, com o relatório A hora da igualdade publicado pela CEPAL, está entrando com força neste caminho de novos equilíbrios. As tendências recentes da gestão social nos obrigam a repensar formas de organização social, a redefinir a relação entre o político, o econômico, o social e o ambiental, a desenvolver pesquisas cruzando as diversas disciplinas, a escutar de forma sistemática os atores estatais, empresariais e comunitários. Trata-se hoje, realmente, de um universo em construção. O impacto convergente da urbanização, das novas tecnologias, da descentralização política e da ampliação das políticas sociais oferece por tanto perspectivas particularmente interessantes de reorganização da gestão da sociedade em geral.
-x-
[1]Versão atualizada do artigo originalmente publicado na coletânea Costos Sociales da las Reformas Neoliberales en América Latina, (org) Anita Kon, Catalina Banko, Dorothea Melcher, Maria Cristina Cacciamali, publicado por PUC-SP, FAPESP, USP e UCV. 2000.
*Extraído de Dowbor

Bibliografia
CepalLa hora de la Igualdad – CEPAL,  Santiago, mayo de 2010, 289 p. Documento síntese com 58 páginas em português:  http://bit.ly/bqwYAh  Documento completo em espanhol:  http://bit.ly/bA9yrl
Emerson KapazA importância do Pacto Político, Folha de são Paulo, 22 de dezembro de 1998
Frank McGillyCanada’s Public Social Services, Oxford University Press, Toronto 1998
Fundação Abrinq - boletim Prefeito Criança, São Paulo, vários números.
IPEA, Comunicado N. 75, Gastos com a Política Social: alavanca para o crescimento com distribuição de renda, Ipea, 3 de fevereiro de 2011, 16 p., disponível em http://bit.ly/e9rBGg
Ladislau Dowbor - A Reprodução Social - Vozes, Petrópolis 2003
Maria Marcela Petrantonio (org.) - Herramientas Locales para Generar Empleo y Ocupación, Mar del Plata, Mercociudades, 1998
Martin Wolf, Países ricos terão de jogar com as cartas na mesa, Gazeta Mercantil de 21 de setembro de 1998, p. A-16
Peter Spink e Roberta Clemente20 Experiências de Gestão Pública e Cidadania, FGV, São Paulo 1997
Pontual, Pedro, Desafios à construção da democracia participativa no Brasil – CIDADE, 2008, http://www.plataformademocratica.org/Publicacoes/Publicacao_7226_em_19_05_2011_15_40_03.pdf
 
IPEA, Comunicado N. 75, Gastos com a Política Social: alavanca para o cresscimento com distribuição de renda, Ipea, 3 de fevereiro de 2011, 16 p., disponível em http://bit.ly/e9rBGg
Pnud - Relatório sobre o Desenvolovimento Humano no Brasil – vários anos
Pólis - número especial, 50 experiências de gestão municipal

Sen, Amartya Desenvolvimento como liberdade, Cia. das Letras, São Paulo 1999
Unctad - Trade and Development Report 1997, Unctad, New York, Geneva 1997

quinta-feira, 20 de junho de 2013

Gestão social

Políticas sociais e transformação da sociedade[1] - IV/V*
Ladislau Dowbor
O conceito microeconômico de produtividade só consegue provar a sua superioridade ao isolar a contabilidade de uma unidade produtiva do conjunto das externalidades, do impacto social gerado. A cada parque que fecha para abrigar um supermercado ou um estacionamento, temos maior lucro em termos empresariais, PIB mais elevado, e maior prejuízo em termos econômicos, pelos custos adicionais gerados para a sociedade, além da perda de qualidade de vida, que afinal é o objetivo mais amplo.
A opção liberal centrada no lucro imediato da unidade empresarial, não é apenas socialmente injusta: não faz sentido econômico. É natural que uma sociedade perplexa ante o ritmo das mudanças, assustada com o desemprego, angustiada com a violência, busque soluções simples. A grande simplificação ideológica do liberalismo representa neste sentido o extremismo ideológico simétrico do que foram as grandes simplificações da esquerda estatista. Com todo o peso das heranças extremas do século XX, temos de aprender a construir sistemas mais complexos, onde a palavra chave não é a opção, mas a articulação.
Em termos práticos, temos de aprender a construir uma sociedade economicamente viável, socialmente justa, e ambientalmente sustentável. E temos de fazê-lo articulando Estado e empresa no quadro de uma sociedade civil organizada. A palavra chave, uma vez mais, não é a opção entre um ou outro, é a articulação do conjunto.
Soluções individuais e soluções sociais
É interessante colocar a questão seguinte: por que razão, com décadas de discurso anti-estado, e com as grandes vitórias liberais, o Estado continuou aumentando? E aumentou na fase Thatcher na Inglaterra, na fase Reagan e Bush nos Estados Unidos, quando a redução do Estado estava no cerne dos discursos políticos?
A realidade é que o Estado aumentou porque aumentou a demanda por bens públicos. Ainda que seja muito óbvio, é necessário lembrar que a problemática social mudou radicalmente com a urbanização. Uma família no campo resolve os seus problemas individualmente, seja no caso do lixo, da água, da lenha, do transporte ou outro. Na cidade, a residência só é viável quando integrada na rede de energia elétrica, telefonia, água, esgoto, calçamento, redes de ruas e assim por diante. É por falta de solução adequada para um bem de consumo coletivo como o transporte, que o paulistano se desloca numa velocidade média de 14 quilômetros por hora, ainda que tenha de pagar por um possante carro. Uma cidade conseguir se paralisar por excesso de meios de transporte, quando as alternativas baratas e funcionais são amplamente conhecidas, revela a que ponto a nossa capacidade de planejamento e de gestão social ficou parada no tempo, enquanto surgiam desafios dramáticos que exigem soluções renovadas. E os bens públicos exigem forte presença do Estado. Ou iremos até o absurdo de colocar pedágios nas ruas? E porque não para pedestres?
A urbanização também mudou a forma de organização da solidariedade social. Na família ampla do mundo rural, as crianças e os idosos, ou um eventual deficiente, eram sustentados pela parte ativa da família. Assim a redistribuição necessária entre a fase em que o indivíduo é produtivo e as fases não ativas, se fazia através da solidariedade da família. Com a urbanização, a família tornou-se nuclear, rompendo o sistema. Com as novas tecnologias, os apartamentos e a atomização social, a própria família nuclear se desintegra. Nos Estados Unidos, menos de um quarto dos domicílios têm pai, mãe e filho, ou seja, uma família.
No caso brasileiro, o processo é dramático, pois nos urbanizamos em apenas três décadas, criamos cidades e sobretudo periferias sem infraestruturas, sem escolas, sem saneamento, sem segurança. Perdeu-se o pouco que havia de redes tradicionais, e ainda estão nas fraldas os sistemas modernos de solidariedade pública. Discutimos amplamente os possíveis defeitos do Estado de Bem-Estar, quando sequer chegamos a desenvolvê-lo.
Chegamos assim ao absurdo das doutas bobagens sobre se o princípio de ajuda pública aos vulneráveis da sociedade não constituiria por acaso um certo paternalismo — pecado mortal na visão de pessoas ricas — enquanto crianças inocentes morrem de fome e de causas ridículas, e a sociedade explode com desemprego, criminalidade, corrupção generalizada.
Outra tendência que muda o contexto resulta das novas tecnologias, que constituem, junto com a urbanização, os dois eixos fundamentais de transformação da gestão social. A tendência é nos dividirmos entre os que são a favor e contra as tecnologias. Primeiro, é útil indagar se alguém está pedindo a nossa opinião a respeito. Segundo, é essencial entender que a mudança tecnológica segmenta a sociedade em incluídos e excluídos. Não se trata portanto de negar a utilidade geral da tecnologia, mas de entender que, junto com o progresso tecnológico, temos de construir as redes de apoio para os excluídos na fase de transição. O fato de existirem robôs nas empresas automobilísticas, não significa que deixamos de ter quase 20 milhões de pessoas que ainda trabalham no campo, dezenas de milhões de trabalhadores sem carteira assinada, outros tantos em atividades precárias e informais, e um crescente contingente em atividades ilegais.
Podemos imaginar no futuro uma sociedade em rede, crianças com computadores no bolso, a redução da jornada de trabalho, a explosão do lazer e atividades culturais. E o que construímos no país realmente existente são as fortalezas isoladas nos condomínios, versão rica da barbárie.
Sonhos à parte, portanto, o desafio que temos pela frente, em termos de gestão social, é a construção de uma transição ordenada, minimamente viável em termos políticos, sociais e econômicos, para o admirável mundo novo que se delineia no horizonte. As pessoas frequentemente esquecem que a transição para a era industrial jogou milhões de pessoas no desemprego e no desespero, provocando a gigantescas migrações para os Estados Unidos e para o Brasil, entre outros. Repetir este drama em escala planetária, com bilhões de pessoas excluídas do processo de transformação, neste pequeno e exausto planeta, levaria a tragédias insustentáveis.
É fácil, sem dúvida, dizer que no futuro outros empregos virão substituir os que perdemos, e que outras formas de organização virão resolver os problemas. O que gostaríamos, naturalmente, é de sobreviver até lá. Articular o social, com realismo, flexibilidade e eficiência, e não mais com ideologias do século passado, tornou-se um imperativo central para as nossas sociedades.
Uma área à procura do seu paradigma organizacional
As áreas sociais adquiriram esta importância apenas nas últimas décadas. Ainda não se formou realmente uma cultura setorial. E a grande realidade, é que não sabemos como gerir estas novas áreas, pois os instrumentos de gestão correspondentes ainda estão engatinhando. Os paradigmas de gestão que herdamos — basta folhear qualquer revista de administração — têm todos sólidas raízes industriais. Só se fala em taylorismo, fordismo, toyotismo, just-in-time e assim por diante. Como é que se faz um parto just-in-time? Ou educação em cadeia de montagem? Um Cad-Cam cultural?
Seria relativamente simples considerarmos o social como sendo naturalmente da órbita do Estado. Aí, temos outros paradigmas, correspondentes à administração pública: Weber, a Prússia, as pirâmides de autoridade estatal. Há no entanto cada vez menos espaço para simplificações deste tipo. Como se atinge 200 milhões de habitantes a partir de uma cadeia de comando central? As áreas sociais são necessariamente capilares: a saúde deve atingir cada criança, cada família, em condições extremamente diferenciadas. A gestão centralizada de mega-sistemas deste porte é viável?
Em termos práticos, sabemos que quando se ultrapassa 5 ou 6 níveis hierárquicos, os dirigentes vivem na ilusão de que alguém lá em baixo da hierarquia executa efetivamente os seus desejos, enquanto na base se imagina que alguém está realmente no comando. A agilidade e flexibilidade que exigem situações sociais muito diferenciadas não podem mais depender de intermináveis hierarquias estatais que paralisam as decisões e esgotam os recursos. Na realidade, os paradigmas da gestão social ainda estão por ser definidos, ou construídos. É uma gigantesca área em termos econômicos, de primeira importância em termos políticos e sociais, mas com pontos de referência organizacionais ainda em elaboração.
O mundo do lucro já há tempos descobriu a nova mina de ouro que o social representa. Que pessoa recusará gastar todo o seu dinheiro, se se trata de salvar um filho? E que informação alternativa tem o paciente, se o médico lhe recomenda um tratamento? Hoje nos Estados Unidos um hospital está sendo processado porque pagava 100 dólares a qualquer médico que encaminhasse um paciente aos seus serviços. Paciente é mercadoria? A Nature mostra como dezenas de pesquisadores publicavam como cartas pessoais em revistas científicas opiniões favoráveis ao fumo: descobriu-se que receberam em média dez mil dólares das empresas de cigarros. Um cientista se defende, dizendo que esta é a sua opinião sincera, e porque não fazê-la render? Para regular a cultura, basta a cultura do dinheiro?
Empresas hoje fornecem software educacional para escolas, com publicidade já embutida, martelando a cabeça das crianças dentro da sala de aula. A televisão submete as nossas crianças (e nós) ao circo de quarta categoria que são os ratinhos de diversos tipos, explicando que está apenas seguindo as tendências do mercado, dando ao povo o que o povo gosta. Se o argumento é válido, porque um professor também não passar a ensinar o que os alunos gostam, sem preocupação com a verdade e o nível cultural? Na Índia hoje se encontram vilas com inúmeros jovens ostentando a cicatriz de um rim extraído: sólidas empresas de saúde de países desenvolvidos compram rins baratos no terceiro mundo para equipar cidadãos do primeiro. Aqui, os planos privados de saúde geridos por empresas financeiras de seguro estão transformando a saúde em pesadelo. Qual é o limite? Estamos falando de uma área cuja importância relativa no conjunto da reprodução social tende a se tornar central.
Em termos de recursos, é importante lembrar que o social, no Brasil, envolve, como ordem de grandeza, 25% do PIB do país. O Brasil não é um país que gasta pouco com o social. Como evitar que o apoio ao Nordeste se transforme em indústria da seca, o complemento alimentar nas escolas em indústria da merenda, a saúde na indústria da doença, a educação num tipo de indústria do diploma. A área social precisa, sem dúvida, de mais recursos. Mas precisa hoje, muito mais ainda, de uma reformulação político-administrativa.


continua...


[1] Versão atualizada do artigo originalmente publicado na coletânea Costos Sociales da las Reformas Neoliberales en América Latina, (org) Anita Kon, Catalina Banko, Dorothea Melcher, Maria Cristina Cacciamali, publicado por PUC-SP, FAPESP, USP e UCV. 2000.

*Extraído de Dowbor