quinta-feira, 27 de março de 2014

Democracia

Caiu em primeiro de abril
Celso Evaristo Silva*

No dia primeiro de abril de 1964, um grupo de meninos assistia maravilhado, de cima do viaduto da Ilha do Governador, Estado da Guanabara, o comboio vetusto de carros de combate, tanques e jipes da II Guerra Mundial desfilar pela Avenida Brasil. Entre um enguiço e outro, a serpente metálica proveniente de Minas transitava implacável rumo ao seu objetivo principal: garantir o Brasil na esfera de influência dos EUA e, de quebra, aplacar a fobia histérica das oligarquias e classe média nacionais quanto às reformas de base propostas pelo governo. Mal sabíamos nós, então guris, que assistíamos ao melancólico final do primeiro ato de um drama que levaria mais de vinte anos para se completar e cujo epílogo alguns analistas políticos acham inconcluso.

O atabalhoado (porém decidido) general Olímpio Mourão Filho (1900-1972), comandante da IV Divisão de Infantaria de Juiz de Fora-MG, antecipara em pelo menos uma semana o início das operações militares para depor o presidente constitucional João Marques Belchior Goulart (1919 -1976). A própria filha de Mourão, Laurita Mourão, declarou em depoimento gravado para o imperdível documentário “O dia que durou 21 anos”, do diretor Camilo Tavares: “O general Castello Branco achava que Mourão tinha se precipitado. Mourão respondeu pra ele deixar de ser medroso e c@g@#!”

Muitos mitos foram criados sobre 1964. O mais difundido começa pela denominação de golpe militar para o movimento. A trama foi organizada e desfechada por um grupo de militares, mas dela tomaram parte ativa: políticos, eclesiásticos, empresários, setores da classe média, grande mídia, latifundiários, intelectuais conservadores, diplomatas e adidos militares norte-americanos. A insatisfação dos articuladores do golpe com os rumos políticos do país criou um arco de alianças políticas que ia da extrema-direita ao centro; dos udenistas Carlos Lacerda (1914-1977) e Magalhães Pinto (1909-1996), do general Golbery do Couto e Silva (1911-1987) a Adhemar de Barros (1901-1969) e Ulysses Guimarães (1916-1992), este, mais tarde, um dos líderes emblemáticos da redemocratização odiado pela direita. Na realidade, o principal grupo militar articulador do golpe era composto por conspiradores contumazes. Tentaram derrubar Getúlio Vargas (1882-1954), em 1954; Juscelino Kubitschek (1902-1976), em 1959 e evitar a posse do vice-presidente João Goulart, em 1961, após a renúncia do presidente Jânio Quadros (1917-1992).

Getúlio, Juscelino e Jango (como Goulart era chamado pelo povo), cada um ao seu modo, queriam sair do modelo agrário exportador. Buscaram modernizar o país via industrialização; torná-lo integrado na economia mundial, porém autônomo em relação aos ditames dos países centrais, em especial, os EUA. Os militares da Escola Superior de Guerra (ESG) engoliam a premissa inicial, no entanto, não abriam mão do alinhamento com os americanos.

Voltando ao temor de Castello, sabemos hoje o quão aquele medo de ‘dar o primeiro tapa’ fazia sentido. Afinal a esquadra norte-americana ainda não se aproximara o suficiente do litoral do Rio de Janeiro para dar o apoio militar e, acima de tudo, psicológico aguardado pelo grupo de conspiradores. Era a chamada operação Brother Sam – plano de contingência elaborado pelos EUA cujo teor consistia na intervenção direta no Brasil caso houvesse algum tipo de resistência armada ao golpe.

O embaixador americano Lincoln Gordon (1913-2009), formado em Harvard e seu adido militar, cel. Vernon Walters (1917-2002), amigo de Castello Branco, foram os artífices do plano a ser posto em prática assim que a luta começasse. Não houve necessidade. Como acontece muitas vezes, os indecisos decidiram a parada. Jango superestimou seu dispositivo militar defensivo e subestimou o efeito camaleão característico das personalidades tíbias, aquele tipo de gente que, no auge de um conflito, fica esperando sinais para saber pra que lado pende a vitória, para aderir a ele. Ela sorriu para o lado mais organizado, com maiores recursos financeiros e ideologicamente melhor articulado.

Quem se der ao trabalho de ler o livro “1964 – A Conquista do Estado”, do historiador uruguaio René Dreifuss (1945-2003), Ed.Vozes, encontrará um dos melhores acervos já reunidos sobre a trama política desencadeadora do golpe de 1964. O tipo ideal weberiano de golpe de estado está ali descrito, em detalhes, da fecundação do óvulo ao nascimento da serpente. Esse mesmo modelo de golpe foi aplicado no Chile, em 1973, e em outros países latinos.

Uma elite de empresários do eixo RioSão Paulo junto com militares de alta patente ligados principalmente à Escola Superior de Guerra (ESG) se estruturou de forma orgânica para a tomada do poder, por meio de entidades como o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD). Esses grupos atuavam em várias frentes para aprofundar a consciência da burguesia nacional quanto à necessidade imperiosa de resguardar seus interesses e responsabilidades de classe, no plano interno e, ao mesmo tempo, tentar conciliá-los com os do capital internacional, notadamente o das multinacionais norte-americanas. Desde a renúncia de Jânio, em 1961, até o golpe, em abril de 64, esse trabalho político ideológico foi conduzido por essa vanguarda empresarial-militar de forma meticulosa, discreta – quando cabia – e inexorável rumo à desestabilização do governo Goulart.

Princípio do general estrategista chinês Sun Tzu (544 a.C.- 496 a.C.) aplicado ipsis litteris (“A suprema arte da guerra é derrotar o inimigo sem combater.”), o golpe civil-militar de 1964 não pode ser compreendido sem algumas contextualizações.

A mais importante, era o jogo da Guerra Fria entre as duas superpotências do Pós-Guerra: EUA e União Soviética. No tabuleiro de xadrez da geopolítica mundial, os EUA tinham como certo o controle político-econômico absoluto sobre toda a América latina, porém a perda de Cuba para o lado soviético impactou profundamente a percepção norte-americana sobre possíveis ameaças aos seus interesses na região. Impedir por todos os meios o surgimento de qualquer governo latino-americano de tendência esquerdizante, por mais leve que fosse, entrou para as cartilhas da CIA e do Pentágono. No caso do Brasil, havia forte desconfiança em relação às tentativas nacional-reformistas de Goulart e sérias preocupações com seu cunhado Leonel Brizola (1922-2004), tido como esquerdista radical simpatizante de Fidel Castro. A encampação de subsidiárias de companhias estrangeiras de energia elétrica e telefonia, em 1958, durante sua gestão como governador do Rio Grande do Sul, e a liderança da bem sucedida campanha da Rede da Legalidade, que garantiu a posse de Jango em 1961, reforçaram a imagem de Brizola como líder perigoso para os interesses norte-americanos e de inimigo número um dos conservadores brasileiros.

O anticomunismo nos meios militar e empresarial era forte elemento aglutinador de nacionalistas xenófobos, reformistas pró-economia de mercado, guardiães dos interesses das multinacionais, fascistoides etc. Não por acaso, Luis Carlos Prestes (1898-1990) e outros líderes do PCB constavam da primeira lista de cassados pelo Ato Institucional, decretado logo após o golpe.

A pergunta sempre feita é: Por que Jango não resistiu ao golpe?

Espremido entre uma direita raivosa e uma esquerda desconectada da realidade; sem recursos financeiros, militares e políticos pra fazer frente ao Império e seus aliados tupiniquins, Jango preferiu o exílio à guerra civil sem perspectiva concreta de vitória.

Henry Kissinger, diplomata doutorado em Havard e conselheiro de vários presidentes dos EUA, disse certa vez ao ser indagado sobre o que pensava do golpe de 1964 que a derrubada de Goulart fora mais importante para os EUA do que teria sido uma possível vitória norte-americana no Vietnam. Poucas vezes Kissinger foi tão sincero.

*Administrador, Sociólogo, Mestrando em Políticas Públicas e Formação Humana na UERJ.


quinta-feira, 13 de março de 2014

Democracia

O dia que durou 21 anos

No âmbito de suas iniciativas de apoio à reflexão e ao debate acerca da formação econômica, política e histórica do nosso país, o Programa de Políticas Públicas e Formação Humana - PPFH da UERJ exibirá e debaterá o documentário de Camilo Tavares.

Do evento participarão ainda Silene Freire, do PROEALC e o prof. Theotonio dos Santos, economista e cientista político.

Esta é mais uma oportunidade para conhecermos a nossa história recente e os desdobramentos em nossos dias, principalmente numa época fortemente pautada pelo domínio do pragmatismo e de proposições imediatistas para o equacionamento dos graves problemas sociais que vivemos.


quinta-feira, 6 de março de 2014

Neoliberalismo

Trabalho e formas de vida no capitalismo contemporâneo*

Alejandro Nadal**

O capitalismo se nutre de trabalho assalariado e declara sua guerra sem quartel às formas de vida que não estão a ele submetidas. Qualquer figura que não esteja submetida às necessidades de valorização do capital se tornam um espaço que precisa ser conquistado. O capital nunca respeitou a noção de diversas formas de vida como um modo alternativo de existência e desenvolvimento. Para o capitalismo, qualquer forma de vida não é nada além de um espaço de rentabilidade e deve ser primeiramente conquistada, e depois submetida ao processo de valorização (ou a um processo de exploração, se preferir). 

Faz aproximadamente 30 anos que a economia mundial abandonou o esquema do Estado de bem-estar e o substituiu pelo capitalismo de livre mercado. A história das forças que motivaram essa transição é complexa mas, em 1984, a decisão já havia sido tomada e a virada estratégica já começara. Os poderes estabelecidos justificaram esta transformação com uma promessa de prosperidade, e isso supunha duas coisas: uma adequada criação de empregos de boa qualidade e uma sistemática redução da desigualdade. Nenhum desses objetivos foi alcançado. 

Atualmente, a economia mundial passa por uma crise do emprego e de formas de vida. O mercado de trabalho oferece, em escala mundial, um panorama desolador, e o desenvolvimento de formas de vida alternativas (por exemplo, a agricultura de pequena escala) está submetido a um ataque sem piedade. Basta observar o que aconteceu no chamado mercado de trabalho mundial. A geração de empregos bem remunerados nas últimas três décadas tem sido fraca e se concentrou nos postos mais altos. Contrastando, a maior parte dos novos postos de trabalho tem salários baixos e as classes médias foram comprimidas. A incerteza que cerca os empregos mal remunerados é um mal crônico. 

Apesar do aumento da produtividade, as remunerações da classe trabalhadora se mantiveram estancadas. Em muitos países, as remunerações que os empregos de menor qualificação recebem se mantêm nos níveis de 1970. A participação dos salários no produto nacional ruiu em todos os países. A desigualdade, portanto, se intensificou. 

A tese de que as remunerações se mantêm reduzidas nos empregos de menor qualificação porque as novas tecnologias prejudicam essa classe de empregos é falsa. Na verdade, na maioria das economias capitalistas, os salários deixaram de aumentar na década de setenta, muito antes de ser iniciado o processo de transformação tecnológica que caracterizou os anos noventa. A verdadeira explicação para este estancamento nos salários está na transformação radical da estrutura institucional do regime de acumulação de capital em escala mundial. Ou seja, o estancamento salarial está mais vinculado à luta de classe do que a qualquer outro fator.

Os poderes estabelecidos impuseram, a partir da segunda metade dos anos setenta, o abandono das metas de pleno emprego, tributação progressiva e de serviços de saúde e de educação de boa qualidade para a maioria da população. Esses objetivos foram substituídos pela estabilidade de preços, pelo equilíbrio orçamental e pela ideia de que o mercado seria capaz de proporcionar crescimento econômico e empregos suficientes para a população. O argumento central deste novo paradigma econômico era que seria necessário eliminar os atritos que impedem o bom funcionamento dos mercados. Essa foi a justificativa da guerra contra os sindicatos e contra toda a cultura das classes trabalhadoras.

A 'liberalização' do mercado de trabalho esteve baseada na ideia de que as reduções nos custos trabalhistas seriam acompanhadas por mais investimentos e por mais geração de emprego. Essa é a postura da teoria econômica do primeiro quarto do século XX, antes da Grande Depressão e antes de Keynes escrever sua Teoria Geral. A centenária teoria foi desenterrada para justificar a grande mudança: o mais importante é que ignora que a demanda agregada é o grande motor do investimento e que, com salários baixos, o crédito e o endividamento seriam os únicos capazes de manter a demanda em crescimento.

A chamada globalização (de corte neoliberal) é o resultado de se colocar as massas trabalhadoras em um plano de desenvolvimento por competência em escala mundial. O deslocamento das instalações industriais, a fragmentação de processos produtivos e a punição aplicada aos sindicatos no plano institucional (e judicial) marcaram a evolução do chamado 'mercado de trabalho'.

A contrapartida de todo este processo de degradação do trabalho e de destruição de formas de vida alternativas é a expansão e o domínio do capital financeiro. De agora em diante, a luta será entre estes dois polos, trabalho e capital financeiro. Triunfará o que estiver melhor organizado e tiver melhor capacidade analítica.

*Extraído de Carta Maior

**Membro do conselho editorial da revista eletrônica SinPermiso (http://www.sinpermiso.info/)

Tradução de Daniella Cambaúva.