Caiu
em primeiro de abril
Celso
Evaristo Silva*
No
dia primeiro de abril de 1964, um grupo de meninos assistia
maravilhado, de cima do viaduto da Ilha do Governador, Estado da
Guanabara, o comboio vetusto de carros de combate, tanques e jipes da
II Guerra Mundial desfilar pela Avenida Brasil. Entre um enguiço e
outro, a serpente metálica proveniente de Minas transitava
implacável rumo ao seu objetivo principal: garantir o Brasil na
esfera de influência dos EUA e, de quebra, aplacar a fobia histérica
das oligarquias e classe média nacionais quanto às reformas de base
propostas pelo governo. Mal sabíamos nós, então guris, que
assistíamos ao melancólico final do primeiro ato de um drama que
levaria mais de vinte anos para se completar e cujo epílogo alguns
analistas políticos acham inconcluso.
O
atabalhoado (porém decidido) general Olímpio Mourão Filho
(1900-1972), comandante da IV Divisão de Infantaria de Juiz de
Fora-MG, antecipara em pelo menos uma semana o início das operações
militares para depor o presidente constitucional João Marques
Belchior Goulart (1919 -1976). A própria filha de Mourão, Laurita
Mourão, declarou em depoimento gravado para o imperdível
documentário “O dia que durou 21 anos”, do diretor Camilo
Tavares: “O general Castello Branco achava que Mourão tinha se
precipitado. Mourão respondeu pra ele deixar de ser medroso e
c@g@#!”
Muitos
mitos foram criados sobre 1964. O mais difundido começa pela
denominação de golpe militar para o movimento. A trama foi
organizada e desfechada por um grupo de militares, mas dela tomaram
parte ativa: políticos, eclesiásticos, empresários, setores da
classe média, grande mídia, latifundiários, intelectuais
conservadores, diplomatas e adidos militares norte-americanos. A
insatisfação dos articuladores do golpe com os rumos políticos do
país criou um arco de alianças políticas que ia da extrema-direita
ao centro; dos udenistas Carlos Lacerda (1914-1977) e Magalhães
Pinto (1909-1996), do general Golbery do Couto e Silva (1911-1987) a
Adhemar de Barros (1901-1969) e Ulysses Guimarães (1916-1992), este,
mais tarde, um dos líderes emblemáticos da redemocratização
odiado pela direita. Na realidade, o principal grupo militar
articulador do golpe era composto por conspiradores contumazes.
Tentaram derrubar Getúlio Vargas (1882-1954), em 1954; Juscelino
Kubitschek (1902-1976), em 1959 e evitar a posse do vice-presidente
João Goulart, em 1961, após a renúncia do presidente Jânio
Quadros (1917-1992).
Getúlio,
Juscelino e Jango (como Goulart era chamado pelo povo), cada um ao
seu modo, queriam sair do modelo agrário exportador. Buscaram
modernizar o país via industrialização; torná-lo integrado na
economia mundial, porém autônomo em relação aos ditames dos
países centrais, em especial, os EUA. Os militares da Escola
Superior de Guerra (ESG) engoliam a premissa inicial, no entanto, não
abriam mão do alinhamento com os americanos.
Voltando
ao temor de Castello, sabemos hoje o quão aquele medo de ‘dar o
primeiro tapa’ fazia sentido. Afinal a esquadra norte-americana
ainda não se aproximara o suficiente do litoral do Rio de Janeiro
para dar o apoio militar e, acima de tudo, psicológico aguardado
pelo grupo de conspiradores. Era a chamada operação Brother Sam
– plano de contingência elaborado pelos EUA cujo teor
consistia na intervenção direta no Brasil caso houvesse algum tipo
de resistência armada ao golpe.
O
embaixador americano Lincoln Gordon (1913-2009), formado em Harvard e
seu adido militar, cel. Vernon Walters (1917-2002), amigo de Castello
Branco, foram os artífices do plano a ser posto em prática assim
que a luta começasse. Não houve necessidade. Como acontece muitas
vezes, os indecisos decidiram a parada. Jango superestimou seu
dispositivo militar defensivo e subestimou o efeito camaleão
característico das personalidades tíbias, aquele tipo de gente que,
no auge de um conflito, fica esperando sinais para saber pra que lado
pende a vitória, para aderir a ele. Ela sorriu para o lado mais
organizado, com maiores recursos financeiros e ideologicamente melhor
articulado.
Quem
se der ao trabalho de ler o livro “1964 – A Conquista do
Estado”, do historiador uruguaio René Dreifuss (1945-2003),
Ed.Vozes, encontrará um dos melhores acervos já reunidos
sobre a trama política desencadeadora do golpe de 1964. O tipo ideal
weberiano de golpe de estado está ali descrito, em detalhes, da
fecundação do óvulo ao nascimento da serpente. Esse mesmo modelo
de golpe foi aplicado no Chile, em 1973, e em outros países latinos.
Uma
elite de empresários do eixo Rio–São Paulo junto com
militares de alta patente ligados principalmente à Escola Superior
de Guerra (ESG) se estruturou de forma orgânica para a tomada do
poder, por meio de entidades como o Instituto de Pesquisas e Estudos
Sociais (IPES) e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática
(IBAD). Esses grupos atuavam em várias frentes para aprofundar a
consciência da burguesia nacional quanto à necessidade imperiosa de
resguardar seus interesses e responsabilidades de classe, no plano
interno e, ao mesmo tempo, tentar conciliá-los com os do capital
internacional, notadamente o das multinacionais norte-americanas.
Desde a renúncia de Jânio, em 1961, até o golpe, em abril de 64,
esse trabalho político ideológico foi conduzido por essa vanguarda
empresarial-militar de forma meticulosa, discreta – quando cabia –
e inexorável rumo à desestabilização do governo Goulart.
Princípio
do general estrategista chinês Sun Tzu (544 a.C.- 496 a.C.) aplicado
ipsis litteris (“A suprema arte da guerra é
derrotar o inimigo sem combater.”), o golpe civil-militar de
1964 não pode ser compreendido sem algumas contextualizações.
A
mais importante, era o jogo da Guerra Fria entre as duas
superpotências do Pós-Guerra: EUA e União Soviética. No tabuleiro
de xadrez da geopolítica mundial, os EUA tinham como certo o
controle político-econômico absoluto sobre toda a América latina,
porém a perda de Cuba para o lado soviético impactou profundamente
a percepção norte-americana sobre possíveis ameaças aos seus
interesses na região. Impedir por todos os meios o surgimento de
qualquer governo latino-americano de tendência esquerdizante, por
mais leve que fosse, entrou para as cartilhas da CIA e do Pentágono.
No caso do Brasil, havia forte desconfiança em relação às
tentativas nacional-reformistas de Goulart e sérias preocupações
com seu cunhado Leonel Brizola (1922-2004), tido como esquerdista
radical simpatizante de Fidel Castro. A encampação de subsidiárias
de companhias estrangeiras de energia elétrica e telefonia, em 1958,
durante sua gestão como governador do Rio Grande do Sul, e a
liderança da bem sucedida campanha da Rede da Legalidade, que
garantiu a posse de Jango em 1961, reforçaram a imagem de Brizola
como líder perigoso para os interesses norte-americanos e de inimigo
número um dos conservadores brasileiros.
O
anticomunismo nos meios militar e empresarial era forte elemento
aglutinador de nacionalistas xenófobos, reformistas pró-economia de
mercado, guardiães dos interesses das multinacionais, fascistoides
etc. Não por acaso, Luis Carlos Prestes (1898-1990) e outros líderes
do PCB constavam da primeira lista de cassados pelo Ato
Institucional, decretado logo após o golpe.
A
pergunta sempre feita é: Por que Jango não resistiu ao golpe?
Espremido
entre uma direita raivosa e uma esquerda desconectada da realidade;
sem recursos financeiros, militares e políticos pra fazer frente ao
Império e seus aliados tupiniquins, Jango preferiu o exílio à
guerra civil sem perspectiva concreta de vitória.
Henry
Kissinger, diplomata doutorado em Havard e conselheiro de vários
presidentes dos EUA, disse certa vez ao ser indagado sobre o que
pensava do golpe de 1964 que a derrubada de Goulart fora mais
importante para os EUA do que teria sido uma possível vitória
norte-americana no Vietnam. Poucas vezes Kissinger foi tão sincero.
*Administrador, Sociólogo, Mestrando em Políticas Públicas e Formação Humana na UERJ.