A Copa é nossa!
Celso
Evaristo Silva*
O jornalista e dramaturgo
Nelson Rodrigues (1912-1980) alertava sempre sobre um dos nossos
passatempos preferidos: falar mal do Brasil. Dizia Nelson: “O
brasileiro é um Narciso às avessas – cospe na própria imagem !”.
E também pontuava nosso complexo de inferioridade chamando-o de
‘complexo de vira-latas’. Um tablete de manteiga ganhava
importância pelo simples fato de ser importado. Há quem atribua
essa postura aos maneirismos da corte portuguesa (em Portugal, a
elite do séc. XIX costumava falar francês nos eventos sociais).
Outros juram que o tal ‘complexo’ é herança do período
colonial, de povo colonizado. Não importa, a verdade aponta para o
desprezo pelas ‘coisas nossas’. Os maxixes (dança e fruto), a
farinha de mandioca, o samba, o choro, a rede de dormir, a feijoada e
outros pratos da culinária popular eram estigmas das influências
africana e indígena que a elite branca e europeizada queria longe de
si, embora fosse difícil dissimular as marcas deixadas pelas
culturas negra e ameríndia em nossa sociedade. Quem folhear “Casa
Grande e Senzala”, do sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987),
ou “O povo brasileiro”, do antropólogo Darcy
Ribeiro (1922-1997), entenderá perfeitamente o pequeno drama
existencial do Brasil: “Ser ou não ser o que sou ?”.
Roberto Burle Marx
(1909-1994) foi um dos pioneiros na utilização de plantas
originárias da flora brasileira para decorar os jardins por ele
criados. Ele se indignava com a não valorização de nossa
riquíssima flora: “Fui conhecer só na Europa algumas das mais
belas plantas do Brasil.”
Por aqui só se plantavam
olmos, pinheiros-do-canadá, salgueiros, tulipeiras, roseiras e tudo
mais que viesse de fora. O paisagista teve execrado seu primeiro
jardim, no Recife, por ornamentá-lo com mandacarus, ipês, juremas,
araçazeiros e outras plantas silvestres típicas do sertão,
associadas, quase sempre, à miséria, seca, fome, povo e, por
derivação semi-consciente, ao Brasil. Poderíamos desfilar aqui uma
lista imensa de criadores encantados com nossas tradições e
contradições: Villa-Lobos (1887-1959), Pixinguinha (1898-1973), Tom
Jobim (1927-1994), e por aí vai . . . Essa gente toda bebia na
cultura popular; serviam de catalisadores entre seu refinamento
rústico e a rigidez da alta cultura.
A pintora Tarsila do
Amaral (1886-1973) declarou-se marcada pela cultura mineira após
viagem às cidades históricas do ciclo do ouro: “encontrei em
Minas as cores que adorava em criança. Ensinaram-me depois que eram
feias e caipiras. Segui o ramerrão do gosto apurado . . . Mas depois
vinguei-me da opressão, passando-as para as minhas telas.”
Bem, mas voltemos ao
futebol; voltemos, não, nem falamos dele ainda. Falamos do Nelson e
da sua constatação de nosso niilismo em relação ao que é
brasileiro. E o que é mais brasileiro do que o futebol? Esse bretão
chegou ao Rio de Janeiro aristocrático, de mansinho passou a perna
no remo e conquistou o povão.
Em São Paulo coube a
Charles Miller (1874-1953) trazer nossa primeira bola de futebol da
Inglaterra e, junto com os funcionários da Cia de Gás e da Cia
Ferroviária de São Paulo, organizar a primeira partida de futebol
do país.
Paradoxo. O esporte
estrangeiro e aristocrático se popularizou ao ponto de se tornar um
traço marcante de nossa nacionalidade. Negá-lo é cuspir sim na
própria imagem. A seleção, por sua vez, virou a
‘pátria-de-chuteiras’. Um dos símbolos nacionais como o hino e
a bandeira. Ao assumir este posto passou a ser alvo da nossa
autocrítica forte para com as coisas da terra. Imaginem só o estado
de espírito daqueles que enxergam nos gostos populares a expressão
maior de alienação política e tibieza moral! Não pode ser outro
senão o de condenar com todas as forças do pulmão a realização
de uma Copa do Mundo no Brasil: ‘Não queremos Copa!’;
‘Queremos saúde, educação, segurança e transporte de
qualidade!’. Pois bem, mas, e se a população quiser Copa,
saúde, educação etc etc etc? E se ela entender que ter uma coisa
não impede a conquista das outras? E se ela souber separar o
oportunismo político do ‘sim-ou-não-para-a-copa’, vindo tanto
do governo quanto da oposição? A galera sempre separou Garrincha e
Maraca prum lado e cartolagem e FIFA pro outro !
É vera a aceitação por
pequena parte das camadas populares desse discurso niilista de
setores de nossa classe média. Como também é verdade que o
resultado final do torneio pode ter alguma influência nas eleições;
porém, deixar de curtir um evento desta magnitude em nome de uma
falsa consciência moral é resvalar para o que o filósofo Friedrich
Nietzsche (1844-1900) chamou de ‘ressentimento’, ou seja, a
reação de ascetas contra a alegria de viver que proíbem a si
mesmos e aos outros.
* Administrador e Sociólogo. Mestrando em Políticas Públicas e Formação Humana.
Um comentário:
Texto muito bom, com sempre são as produções do Celso.
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