quinta-feira, 12 de junho de 2014

O Brasil e o futebol

A Copa é nossa!

Celso Evaristo Silva*

O jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues (1912-1980) alertava sempre sobre um dos nossos passatempos preferidos: falar mal do Brasil. Dizia Nelson: “O brasileiro é um Narciso às avessas – cospe na própria imagem !”. E também pontuava nosso complexo de inferioridade chamando-o de ‘complexo de vira-latas’. Um tablete de manteiga ganhava importância pelo simples fato de ser importado. Há quem atribua essa postura aos maneirismos da corte portuguesa (em Portugal, a elite do séc. XIX costumava falar francês nos eventos sociais). Outros juram que o tal ‘complexo’ é herança do período colonial, de povo colonizado. Não importa, a verdade aponta para o desprezo pelas ‘coisas nossas’. Os maxixes (dança e fruto), a farinha de mandioca, o samba, o choro, a rede de dormir, a feijoada e outros pratos da culinária popular eram estigmas das influências africana e indígena que a elite branca e europeizada queria longe de si, embora fosse difícil dissimular as marcas deixadas pelas culturas negra e ameríndia em nossa sociedade. Quem folhear “Casa Grande e Senzala”, do sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987), ou “O povo brasileiro”, do antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997), entenderá perfeitamente o pequeno drama existencial do Brasil: “Ser ou não ser o que sou ?”.

Roberto Burle Marx (1909-1994) foi um dos pioneiros na utilização de plantas originárias da flora brasileira para decorar os jardins por ele criados. Ele se indignava com a não valorização de nossa riquíssima flora: “Fui conhecer só na Europa algumas das mais belas plantas do Brasil.”

Por aqui só se plantavam olmos, pinheiros-do-canadá, salgueiros, tulipeiras, roseiras e tudo mais que viesse de fora. O paisagista teve execrado seu primeiro jardim, no Recife, por ornamentá-lo com mandacarus, ipês, juremas, araçazeiros e outras plantas silvestres típicas do sertão, associadas, quase sempre, à miséria, seca, fome, povo e, por derivação semi-consciente, ao Brasil. Poderíamos desfilar aqui uma lista imensa de criadores encantados com nossas tradições e contradições: Villa-Lobos (1887-1959), Pixinguinha (1898-1973), Tom Jobim (1927-1994), e por aí vai . . . Essa gente toda bebia na cultura popular; serviam de catalisadores entre seu refinamento rústico e a rigidez da alta cultura.

A pintora Tarsila do Amaral (1886-1973) declarou-se marcada pela cultura mineira após viagem às cidades históricas do ciclo do ouro: “encontrei em Minas as cores que adorava em criança. Ensinaram-me depois que eram feias e caipiras. Segui o ramerrão do gosto apurado . . . Mas depois vinguei-me da opressão, passando-as para as minhas telas.”

Bem, mas voltemos ao futebol; voltemos, não, nem falamos dele ainda. Falamos do Nelson e da sua constatação de nosso niilismo em relação ao que é brasileiro. E o que é mais brasileiro do que o futebol? Esse bretão chegou ao Rio de Janeiro aristocrático, de mansinho passou a perna no remo e conquistou o povão.
Em São Paulo coube a Charles Miller (1874-1953) trazer nossa primeira bola de futebol da Inglaterra e, junto com os funcionários da Cia de Gás e da Cia Ferroviária de São Paulo, organizar a primeira partida de futebol do país.

Paradoxo. O esporte estrangeiro e aristocrático se popularizou ao ponto de se tornar um traço marcante de nossa nacionalidade. Negá-lo é cuspir sim na própria imagem. A seleção, por sua vez, virou a ‘pátria-de-chuteiras’. Um dos símbolos nacionais como o hino e a bandeira. Ao assumir este posto passou a ser alvo da nossa autocrítica forte para com as coisas da terra. Imaginem só o estado de espírito daqueles que enxergam nos gostos populares a expressão maior de alienação política e tibieza moral! Não pode ser outro senão o de condenar com todas as forças do pulmão a realização de uma Copa do Mundo no Brasil: ‘Não queremos Copa!’; ‘Queremos saúde, educação, segurança e transporte de qualidade!’. Pois bem, mas, e se a população quiser Copa, saúde, educação etc etc etc? E se ela entender que ter uma coisa não impede a conquista das outras? E se ela souber separar o oportunismo político do ‘sim-ou-não-para-a-copa’, vindo tanto do governo quanto da oposição? A galera sempre separou Garrincha e Maraca prum lado e cartolagem e FIFA pro outro !

É vera a aceitação por pequena parte das camadas populares desse discurso niilista de setores de nossa classe média. Como também é verdade que o resultado final do torneio pode ter alguma influência nas eleições; porém, deixar de curtir um evento desta magnitude em nome de uma falsa consciência moral é resvalar para o que o filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900) chamou de ‘ressentimento’, ou seja, a reação de ascetas contra a alegria de viver que proíbem a si mesmos e aos outros.

* Administrador e Sociólogo. Mestrando em Políticas Públicas e Formação Humana.



Um comentário:

Alda disse...

Texto muito bom, com sempre são as produções do Celso.