quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Educação e mercado

'A lógica do mercado prevalece na educação chilena'*



Gustavo Gerrtner, para o Página/12


Camila Vallejo não se deixa enganar pelos indicadores econômicos. O último Informe de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas poderia situar o Chile dentro do grupo de estados com “alto desenvolvimento humano” no âmbito da educação. Mas para ela, a educação em seu país continua sendo dominada por uma lógica mercantilista, que se reflete no alto custo econômico para as famílias dos estudantes. Nos bastidores do Centro Cultural Kirchner, minutos depois de concluir sua conferência “Política, Luta e Hegemonia” – na qual falou quase sem olhar suas anotações – a ex-dirigente estudantil, hoje deputada comunista, falou com o diário argentino Página/12, sobre os obstáculos que a criação de um sistema educacional de qualidade e voltado para a maioria da população do Chile. “Quando havia vontade de mudar, não havia maioria política para levar a essas mudanças, quando conseguimos gerar maior consenso dentro do mundo político, através das pressões dos movimentos sociais, lamentavelmente, os acordos que mantêm o sistema político e sua carga ideológica falaram mais alto”, afirmou.

Para Vallejo, nos últimos 25 anos, os governos que sucederam a ditadura de Pinochet (1973-1990) não quiseram ou não puderam reformar o sistema educativo devido à influência da ideologia neoliberal dentro da política chilena. “Esse pensamento penetrou alguns setores da Concertação (coalizão política que governou o país entre 1990 e 2010), através do convencimento ideológico, mas também devido à rede de privilégios e benefícios gerada pela mercantilização”, comentou ela. “Muitos se tornaram administradores privados das escolas públicas, donos ou acionistas de universidades, todos são parte do negócio e isso impede uma mudança mais radical no setor”. As políticas educacionais implantadas no Chile transformaram a educação do país num enorme negócio, onde até mesmo as escolas públicas, administradas por grupos privados, fundações ou cooperativas de professores, cobram mensalidades.

Vallejo lembra que algumas das mesas de trabalho criadas no Congresso durante os governos anteriores contou com a participação de acadêmicos, políticos e também dos dirigentes estudantis, como ocorreu após a chamada “Revolução dos Pinguins” (nome dado à mobilização realizada em 2006 pelos estudantes secundaristas, conhecidos como “pinguins”, devido ao seu uniforme engravatado), mas que depois, essas deliberações eram levadas ao parlamento, onde tinham que ser negociados com a direita. “Dessa época, surgiu uma lei (em 2009, durante o primeiro governo de Michelle Bachelet) que não representava o que havia sido conversado nas mesas de trabalho. Essa foi a grande traição ao Movimento Estudantil, que ainda não esqueceu o que aconteceu”, contou a deputada, que naquele então era presidenta da Federação de Estudantes da Universidade do Chile.

O Partido Comunista chileno, ao qual Vallejo representa no Congresso, forma parte da Nova Maioria, a coalizão que governa o país. “Em algum momento, o esforço que fazemos agora para impulsar as reformas, entre elas a do sistema educacional, vai esbarrar na questão constitucional”, explicou ela. “Podemos fazer muitas coisas, mas estamos sempre sob o risco de sermos impedidos pela inconstitucionalidade, já que o que prevalece na atual Constituição (imposta durante a ditadura de Pinochet) é um conceito de liberdade de ensino que se confunde com liberdade de empresa. E para mudar a Constituição, necessitamos de um quórum muito maior que o que temos agora no parlamento”, lamentou.

Em setembro, a presidenta chilena Michelle Bachelet apresentou ao Congresso o orçamento para o ano de 2016, que, se aprovado, financiará a educação gratuita para um milhão e meio de alunos da rede pública e mais de 200 mil universitários que pertencem aos extratos socioeconômicos mais vulneráveis do país. Assim, o de Educação passaria a ser o ministério que com mais verbas do país. Vallejo reconhece avanços no projeto, mas considera que será insuficiente, devido às mudanças estruturais que as escolas necessitam, e que requerem um investimento muito maior. “Existe uma dívida histórica tão grande com a educação pública que para alcançar a qualidade que queremos é preciso investir em vários outros aspectos”, alertou.

“Precisamos inovar em investigação, desenvolvimento científico e tecnologia, criar um maior vínculo entre as instituições de educação superior e os territórios ao qual elas pertencem. Com o projeto atual de reforma educacional, estamos promovendo o fim do lucro na educação pública chilena, e eliminando a segregação nas escolas e o financiamento compartilhado entre o Estado e as famílias. Significa que nenhuma escola poderá discriminar alunos, que demos um primeiro passo para haver gratuidade no sistema educacional chileno, que vai começar nos níveis menores, e depois chegará à educação superior. Mas ainda temos poucos detalhes sobre os fundos que serão destinados à recuperação da educação pública”, opinou Vallejo, que recebeu há dois anos seu diploma de Geografia, da Universidade do Chile.

“O discurso de buscar ter o PIB e o crescimento mais alto da América Latina tem sido uma grande falácia, porque não se transformou em melhores condições de vida para a população”, sentenciou. “Os governos posteriores à ditadura consolidaram a separação entre o povo e o Estado”, analisou a deputada. “A perseguição às organizações sindicais, ao mundo da cultura, professores e estudantes gerou uma ferida social brutal, que se reflete hoje no temor que os pais têm de que os jovens participem da política”. Para a deputada, a onda de ojeriza à política foi instalada pelos meios de comunicação, e também por iniciativas impulsadas dentro do sistema educativo. Segundo ela, para reconciliar o povo e a política, é preciso aprofundar a democracia. “Não podemos restringir a participação da cidadania na política a um voto dado a cada quatro anos. O Estado deve ter instâncias locais ou comunitárias de participação política. Por outro lado, a sociedade civil deve compreender a dimensão e a importância de formar parte do Estado, de disputar os espaços políticos, e não se isolar ou dizer que `esse mundo é tão podre que é melhor não se envolver´, e perceber que pode e deve se envolver”.

Tradução: Victor Farinelli

De líder estudantil a deputada mais votada do Chile
Por Victor Farinelli

Ela hoje é uma das políticas mais conhecidas do país, mas há cinco anos atrás era somente uma dirigente estudantil sem grandes pretensões além de se formar em Geografia e passar férias em Florianópolis.

Em 2011, Camila Vallejo foi eleita presidente da Federação de Estudantes da Universidade do Chile – que apesar de ser a maior instituição de ensino superior do país, não é gratuita, pelo contrário, é uma das que possui a mensalidade mais cara. Em maio daquele mesmo ano, durante o governo de Sebastián Piñera (2010-2014, o primeiro da direita chilena após a ditadura), ela liderou as primeiras marchas estudantis contra o sistema educacional chileno e o super endividamento que ele causava às famílias. As marchas tiveram alta convocatória, e passaram a ser semanais. Uma dessas marchas, em meados de julho daquele ano, chegou a reunir 300 mil pessoas no centro de Santiago e 500 mil contando as realizadas simultaneamente nas capitais das províncias, tornando-se a maior manifestação realizada no país após a ditadura.

O movimento liderado por Vallejo instalou definitivamente a educação como o assunto prioritário no debate político chileno, o que ficou evidente dois anos depois, quando a disputa presidencial se deu entre a ex-presidente Michelle Bachelet, que buscava voltar ao Palácio de La Moneda com a promessa de uma reforma educacional com bases semelhantes às demandadas pelo Movimento Estudantil, e a líder conservadora Evelyn Matthei, cuja proposta era a de manter e reforçar o modelo mercantil de educação. Em dezembro de 2013, Bachelet foi eleita com 63% dos votos, resultado que evidenciou o apoio popular por mudanças profundas na educação.

Naquele mesmo processo eleitoral, o Movimento Estudantil levou quatro dos seus líderes para a Câmara dos Deputados, com destaque para Camila Vallejo, que foi a deputada mais votada do país e foi preponderante para que o Partido Comunista tivesse o seu melhor desempenho eleitoral desde o retorno da democracia – conseguindo seis das 120 cadeiras da Câmara.

*Extraído de Carta Maior

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Estado e mercado

O paradoxo e a insensatez


José Luis Fiori

“Uma vez me perguntaram se o Estado brasileiro é muito grande.
Respondi assim: “Eu vou lhe dar o telefone da minha empregada,
porque você está perguntando isto para mim,
um cara que fez pós-doutorado, trabalha num lugar com ar-condicionado,
com vista para o Cristo Redentor.
Eu não dependo em nada do Estado, com exceção de segurança.
Nesse condomínio social, eu moro na cobertura.
Você tem que perguntar a quem precisa do Estado.”
Luiz G. Schymura, Valor Economico, 07/08/2015

Duas coisas ficaram mais claras nas últimas semanas, com relação à tal da “crise brasileira”. De um lado, o despudor golpista, e de outro, a natureza ultraliberal do seu projeto para o Brasil. Do ponto de vista político, ficou claro que dá absolutamente no mesmo o motivo dos que propõem um impeachment, o fundamental é sua decisão prévia de derrubar uma presidente da República eleita por 54,5 milhões de brasileiros há menos de um ano, o que caracteriza um projeto claramente golpista e antidemocrático e, o que pior, conduzido por lideranças medíocres e de discutível estatura moral.

Talvez, por isto mesmo, nas últimas semanas, a imprensa escalou um grupo expressivo de economistas liberais, para formular as ideias e projetos do que seria o governo nascido do golpe. Sem nenhuma surpresa: quase todos repetem as mesmas fórmulas, com distintas linguagens. Todos consideram que é preciso primeiro resolver a “crise política”, para depois poder resolver a “crise econômica”; e uma vez “resolvida” a crise política, todos propõem a mesma coisa, em síntese: “menos estado e menos política”.

Não interessa muito o detalhamento aqui das suas sugestões técnicas. O que importa é que suas premissas e conclusões são as mesmas que a utopia liberal repete desde o século XVIII, sem jamais alcançá-las ou comprová-las, como é o caso de sua crença na racionalidade utilitária do homo economicus, na superioridade dos “mercados desregulados”, na existência de mercados “competitivos globais”, e na sua fé cega na necessidade e possibilidade de despolitizar e reduzir ao mínimo a intervenção do Estado na vida econômica. É muito difícil para estes ideólogos que sonham com o “limbo”, entender que não existe vida econômica sem política e sem estado. É muito difícil para eles compreender ou aceitar que as duas “crises brasileiras” são duas faces de um conjunto de conflitos e disputas econômicas cruzadas, cuja solução tem que passar inevitavelmente pela política e pelo estado. Não se trata de uma disputa que possa ser resolvida através de uma fórmula técnica de validez universal. Por isto, é uma falácia dizer que existe uma luta e uma incompatibilidade entre a “aritmética econômica” e o “voluntarismo político”. Existem várias “aritméticas econômicas” para explicar um mesmo déficit fiscal, por exemplo, todas só parcialmente verdadeiras. Parece muito difícil para os economistas em geral, e em particular para os economistas liberais, aceitarem que a economia envolve relações sociais de poder, que a economia é também uma estratégia de luta pelo poder do estado, que pode estar mais voltado para o “pessoal da cobertura”, mas também pode ser inclinado na direção dos menos favorecidos pelas alturas.

Agora bem, na conjuntura atual, como entender o encontro e a colaboração destes economistas liberais com os políticos golpistas?

O francês, Pierre Rosanvallon, dá uma pista[1], ao fazer uma anátomo-patologia lógica do liberalismo da “escola fisiocrática” francesa, liderada por François Quesnay. Ela parte da proposta fisiocrático/liberal de redução radical da política à economia, e da transformação de todos os governos em máquinas puramente administrativas e despolitizadas, fiéis à ordem natural dos mercados. E mostra como e por que este projeto de despolitização radical da economia e do estado leva à necessidade implacável de um “tirano” ou “déspota esclarecido” que entenda a natureza nefasta da política e do estado, mantenha-se “neutro”, e promova a supressão despótica da política, criando as condições indispensáveis para a realização da “grande utopia liberal”, dos mercados livres e desregulados. Foi o que Rosanvallon chamou de “paradoxo fisiocrata”, ou seja: a defesa da necessidade de um “tirano liberal” que “adormecesse” as paixões e os interesses políticos e, se possível, os eliminasse.

No século XX, a experiência mais conhecida deste projeto ultraliberal, foi a da ditadura de Augusto Pinochet, no Chile, que foi chamada pelo economista americano, Paul Samuelson, de “fascismo de mercado”. Pinochet foi — por excelência — a figura do “tirano” sonhado pelos fisiocratas: primitivo, quase troglodita, dedicou-se quase inteiramente à eliminação dos seus adversários e de toda a atividade política dissidente, e entregou o governo de fato a um grupo de economistas ultraliberais que puderam fazer o que quiseram durante quase duas décadas. No Brasil não faltam — neste momento — os candidatos com as mesmas características e os economistas sempre rápidos em propor, e dispostos a levar até as últimas consequências, o seu projeto de “redução radical do Estado” e, se for possível, de toda atividade política capaz de perturbar a tranquilidade dos seus modelos matemáticos e dos seus cálculos contábeis. Neste sentido, não está errado dizer que os dois lados deste mesmo projeto são cúmplices e compartem a mesma e gigantesca insensatez, ao supor que seu projeto golpista e ultraliberal não encontrará resistência e, no limite, não provocará uma rebelião ou enfrentamento civil, de grandes proporções, como nunca houve antes no Brasil. Porque não é necessário dizer que tanto os lideres golpistas quanto seus economistas de plantão olham para o mundo como se ele fosse uma “enorme cobertura”, segundo a tipologia sugerida pelo Sr. Luiz Schymura, um raro economista liberal que entende e aceita a natureza contraditória dos mercados e do capitalismo, e a origem democrática do atual déficit público brasileiro.


[1] P. Rosanvallon, Le liberalisme économique. Histoire de l´idée de marché, Editions Seuil, Paris, 1988.

*Extraído de Outras Palavras