quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Trabalho e tecnologia

Do precariado ao biscatariado: e se de repente a Uber lhe oferecer flores?*


Francisco Louçã**



Sim, porque é mais barato, escrevem muitos dos quiseram comentar o meu artigo anterior que perguntava se “quer mesmo viver na Uberlândia?”. Porque estamos irritados com os táxis. Sim, porque sim, é moderno.

Estas três razões têm fundamentos, baseiam-se em experiências, fazem parte da vida. E, no entanto, parecem-me insensatas e imprevidentes. A do preço é a mais evidente: com menos custos legalmente determinados, uma empresa, que finge que organiza serviços pessoais e não transporte colectivo, pode começar por preços mais baratos e até aguentar um prejuízo importante, como a Uber mundial faz. Mas qualquer multinacional existe para procurar criar um monopólio, esta não é excepção e é por isso que os preços vão ser sempre um problema. Se pensa que a Uber, uma empresa que vale 40 mil milhões de dólares, não está nisto para ganhar dinheiro mas para o ajudar bondosamente, desengane-se. Se ela vier a triunfar, os clientes vão sentir.

Mas o que quero discutir convosco é o outro argumento, aquele do isto é bom porque é moderno.

Cuidado, antes de mais. O moderno pode ser socialmente útil (as vacinas, o Raio X, a rádio e a TV ou o cabo, o relógio de quartzo, os smartphones, até a Netflix) ou perigoso (a bomba nuclear, as armas químicas). Cuidado com a generalização.

Ora, em que é que a Uber e outras empresas do mesmo tipo são modernas, ou em que é que é moderno o que nos oferecem? Segundo o seu próprio discurso, são libertadoras ou até libertárias: estas empresas comparam-se imodestamente a Gandhi ou aos pioneiros da luta pelos direitos civis e contra a discriminação racial nos EUA. Se assim fosse, não teriam outro interesse que não o do cliente, libertando o consumidor das amarras de um passado corporativo de pequenos patrões gananciosos ou de interesses vagamente mafiosos, lodo no cais. Se assim fosse, seria estranho que, nesse empenho pelo consumidor, nos oferecessem um transporte sem lei e sem obedecer aos requisitos mínimos que em Portugal temos vindo a definir para proteger o passageiro em transportes colectivos.

Pergunto então se a regra de não respeitar regras é assim tão moderna? Quando Trump nos diz que é esperto porque não paga impostos, não ouvimos isto já no passado? Não sabemos de tempos não tão antigos em que a lei não vigorava dentro das empresas, que eram territórios independentes e definiam as suas próprias normas sem que os tribunais e o direito do trabalho pudessem interferir?

Surpreende por isso que se ponha a etiqueta de “modernidade” neste propósito e modelo de negócio. Ele tem mesmo sido emoldurado no que se tem chamado de “economia de partilha” e de “economia cooperativa”, magníficas expressões. Até criamos emprego para desempregados (que tenham carro apresentável e uma gravata), dizem os empresários uberianos. Somos uns pelos outros, acrescentam (e o ministro acredita, isto é transporte privado, são pessoas de boa vontade que dão boleia uns aos outros a troco de uma modesta compensação).

Permitam-me discordar: atacando um dos sectores socialmente mais vulneráveis, os taxistas, o que estas empresas nos estão a oferecer é uma trincheira para desencadearem uma velha batalha que tem sido adiada. Elas são a encarnação da “economia dos criados”, uma economia sem lei. Ou “economia do biscate”, para ser mais delicado e usar a expressão da sempre conveniente Hillary Clinton.

A diferença em relação à modernidade é bastante evidente. Há na modernidade empreendimentos cooperativos, mesmo que alguns com interesses económicos. Empreendimento cooperativo é a Wikipedia, não é a Uber. O que a Uber faz, ou outras empresas como ela, é criar um modelo de negócio em que o trabalhador não faz trabalho, faz um biscate, não tem salário, tem comissões, não tem contrato, tem um link.

É portanto um passo no caminho mais perigoso contra a modernidade – sim, a modernidade é o princípio da lei universal que protege os fracos contra os fortes. O passo anterior foi passar do trabalhador para o precariado. Perdeu-se o contrato e os seus direitos. Perdeu-se a oportunidade de melhorar de nível de vida com a melhor educação e começou assim o desgaste dos sistemas de representação democrática. Para uma geração inteira, isto significa que os licenciados e licenciadas convergem para o salário mínimo. Mas o novo passo na Uberlândia vai mais longe. Com este modelo, deixaria de haver precariado, passaríamos a ter biscatariado. Nem contrato estável nem contrato precário, só fica uma comissão de-vez-em-quandária e um patrão inacessível e escondido num computador perto de si. Não há relação legal, ninguém é responsável, a lei da selva é a única lei. Há quem diga que isso é melhor do que nada, o que é precisamente a forma de justificar que seja quase nada. O jogo está mesmo a mudar.

Por isso, caro cliente do táxi que passa para a Uber porque é mais barato e mais moderno: se de repente a Uber lhe oferece flores, desconfie de que não gostam nada de si. O que este modelo quer para a sua filha é uma vida sem destino, esperando por detrás de um ecrã as ordens de um Big Brother que lhe cobra uma comissão e que lhe diz: faz-te à vida, luta na rua, apanha a rede e terás cliente, a sorte vai fazer o teu dia, se fizer.

NB- Dois leitores lembraram que Uberlândia é também o nome de uma honrada cidade do Brasil, que nada tem que ver com estes negócios. Têm razão. Mas acho que compreenderam a metáfora.

*Extraído de Público
**Economista. Foi deputado (1999-2012) e é professor de economia na Universidade de Lisboa. Os últimos livros que publicou foram "A Dividadura" e "Isto é um Assalto" (Bertrand, 2012 e 2013), ambos com Mariana Mortágua, "Os Burgueses" (Bertrand, 2014, com J. Teixeira Lopes e J. Costa) e “A Solução Novo Escudo” (Lua de Papel, 2014, com João Ferreira do Amaral). Também se dedica agora a este Tudo Menos Economia e ao que mais se verá.