quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Meritocracia

Como se desperta o pior que há em nós*

Paul Verhaeghe**


Temos a tendência de enxergar nossas identidades como estáveis e muito separadas das forças externas. Porém, décadas de pesquisa e prática terapêutica convenceram-me de que as mudanças econômicas estão afetando profundamente não apenas nossos valores, mas também nossas personalidades. Trinta anos de neoliberalismo, forças de livre mercado e privatizações cobraram seu preço, já que a pressão implacável por conquistas tornou-se o padrão. Se você estiver lendo isto de forma cética, gostaria de afirmar algo simples: o neoliberalismo meritocrático favorece certos traços de personalidade e reprime outros.

Há algumas características ideais para a construção de uma carreira hoje em dia. A primeira é expressividade, cujo objetivo é conquistar o máximo de pessoas possível. O contato pode ser superficial, mas como isso acontece com a maioria das interações sociais atuais, ninguém vai perceber. É importante exagerar suas próprias capacidades tanto quanto possível – você afirma conhecer muitas pessoas, ter bastante experiência e ter concluído há pouco um projeto importante. Mais tarde, as pessoas descobrirão que grande parte disso era papo furado, mas o fato de terem sido inicialmente enganadas nos remete a outro traço de personalidade: você consegue mentir de forma convincente e quase não sentir culpa. É por isso que você nunca assume a responsabilidade por seu próprio comportamento.

Além de tudo isso, você é flexível e impulsivo, sempre buscando novos estímulos e desafios. Na prática, isso gera um comportamento de risco, mas nem se preocupe: não será você que recolherá os pedaços. Qual a fonte de inspiração para essa lista? A relação de psicopatologias de Robert Hare, o especialista mais conhecido em psicopatologia atualmente.

Esta descrição é, obviamente, uma caricatura exagerada. Contudo, a crise financeira ilustrou em um nível macrossocial (por exemplo, nos conflitos entre os países da zona do euro) o que uma meritocracia neoliberal pode fazer com as pessoas. A solidariedade torna-se um bem muito caro e luxuoso e abre espaço para as alianças temporárias, cuja principal preocupação é sempre extrair mais lucro de uma dada situação que seu concorrente. Os laços sociais com os colegas se enfraquecem, assim como o comprometimento emocional com a empresa ou organização.

Bullying era algo restrito às escolas; agora é uma característica comum do local de trabalho. Esse é um sintoma típico do impotente que descarrega sua frustração no mais fraco. Na psicologia, isso é conhecido como agressão deslocada. Há uma sensação velada de medo, que pode variar de ansiedade por desempenho até um medo social mais amplo da outra pessoa, considerada uma ameaça.

Avaliações constantes no trabalho causam uma queda na autonomia e uma dependência cada vez maior de normas externas e em constante mudança. O resultado disso é o que o sociólogo Richard Sennett descreveu com aptidão como a “infantilização dos trabalhadores”. Adultos com explosões infantis de temperamento e ciúme de banalidades (“Ela ganhou uma nova cadeira para o escritório e eu não”), contando mentirinhas, recorrendo a fraudes, rogozijando-se da queda dos outros e cultivando sentimentos mesquinhos de vingança. Essa é a consequência de um sistema que impede as pessoas de pensar de forma independente e que é incapaz de tratar os empregados como adultos.

Porém, o mais importante é o dano à autoestima das pessoas. O autorrespeito depende amplamente do reconhecimento que recebemos das outras pessoas, como mostraram pensadores desde Hegel a Lacan. Sennett chega a uma conclusão parecida quando percebe que a questão principal dos funcionários hoje em dia é “Quem precisa de mim?” Para um grupo cada vez maior de pessoas, a resposta é: ninguém.

Nossa sociedade proclama constantemente que qualquer pessoa pode “chegar lá” caso se esforce o suficiente. Isso reforça os privilégios e coloca cada vez mais pressão nos ombros dos cidadãos já sobrecarregados e esgotados. Um número crescente de pessoas fracassa, gerando sentimentos de humilhação, culpa e vergonha. Sempre ouvimos que até hoje nunca tivemos tanta liberdade para escolher o curso de nossas vidas, mas a liberdade de escolher algo fora da narrativa de sucesso é limitada. Além disso, aqueles que fracassam são considerados perdedores ou bicões, levando vantagem sobre nosso sistema de seguridade social.

Uma meritocracia neoliberal quer nos fazer acreditar que o sucesso depende do esforço e do talento das pessoas, ou seja, a responsabilidade é toda da pessoa, e as autoridades devem dar às pessoas o máximo de liberdade possível para que elas alcancem essa meta. Para aqueles que acreditam no conto das escolhas irrestritas, autonomia e autogestão são as mensagens políticas mais notáveis, especialmente quando parece que prometem liberdade. Junto com a ideia do individuo perfeito, a liberdade que acreditamos ter no Ocidente é a grande mentira dos dias atuais e de nossa época.

O sociólogo Zygmunt Bauman resume perfeitamente o paradoxo de nossa era como: “Nunca fomos tão livres. Nunca nos sentimos tão incapacitados.” Realmente somos mais livres do que antes no sentido de podermos criticar a religião, aproveitar a nova atitudelaissez-faire com relação ao sexo e apoiar qualquer movimento político que quisermos. Podemos fazer tudo isso porque essas coisas não têm mais qualquer importância – uma liberdade desse tipo é movida pela indiferença. Por outro lado, nossas vidas diárias transformaram-se em uma batalha constante contra uma burocracia que faria Kafka tremer. Há regulamentos para tudo, desde a quantidade de sal no pão até a criação de aves na cidade.

Nossa suposta liberdade está ligada a uma condição central: precisamos ser bem-sucedidos – ou seja, “ser” alguém na vida. Não é preciso ir muito longe para encontrar exemplos. Uma pessoa muito bem qualificada que decide colocar a criação de seus filhos à frente da carreira certamente receberá críticas. Uma pessoa com um bom trabalho, que recusa uma promoção para investir mais tempo em outras coisas é vista com louca – a menos que essas outras coisas garantam o sucesso. Uma jovem que deseja ser uma professora de primário ouve de seus pais que ela deveria começar obtendo um mestrado em economia. Uma professora de primário, o que será que ela está pensando?

Há lamentos constantes com relação à chamada perda de normas e valores em nossa cultura. Ainda assim, nossas normas e valores compõem uma parte integral e essencial de nossa identidade. Portanto, não é possível perdê-las, apenas mudá-las. E é exatamente isso que aconteceu: uma mudança de economia reflete uma mudança de ética e gera uma mudança de identidade. O sistema econômico atual está revelando nossa pior faceta.

*Extraído de Outras Palavras

**PhD e professor sênior da Universidade de Ghent. Ocupa a cadeira do departamento de psicanálise e aconselhamento psicológico. Já publicou oito livros, com cinco traduzido para o Inglês. Sua mais recente, What About Me? A luta pela identidade em uma sociedade baseada no mercado.

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Plurimus Cultura e Desenvolvimento em Revista

Trouxeste a chave?



O artigo 205, da Constituição brasileira de 1988, garante a todo o cidadão deste país que “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”, assenta, portanto, sua base em três dimensões: desenvolvimento humano, cidadania e trabalho.

Se é inegável que a universalização da educação, especialmente no Brasil, trouxe avanços sem precedentes para a organização da sociedade, é igualmente verdade que as assimetrias no processo educativo têm provocado distorções na maneira como cada uma dessas dimensões é resguardada no cumprimento deste direito constitucional.

Os desafios impostos pela contemporaneidade aos indivíduos requer a ampliação do saber de modo sempre constante; seja para fazer valer os seus direitos enquanto cidadão, seja no processo de especialização necessário aos desafios de inserção plena no mundo trabalho. Mas, fundamentalmente é no tocante ao desenvolvimento humano que o conhecimento torna-se o principal ativo que os indivíduos possuem para manterem-se críticos em relação ao tipo de ambiente que se pretende compartilhar.

Desta forma, discutir o papel cultural (e político) da educação na atualidade é assunto que não deveria ser negligenciado por nossos intelectuais e cidadãos de modo geral, dada a relevância que seus desdobramentos assumem em nossa vida social.

Por isso, a edição V de Plurimus Cultura e Desenvolvimento em Revista introduz o debate ao lançar, por meio dos artigos que a compõem, questões a serem refletidas pelos seus leitores e eventualmente desenvolvidas em seus espaços de atuação.

A edição é composta de duas partes. Dois artigos debatem de modo mais amplo o papel da Educação dentro das dimensões acima mencionadas, quais sejam, no tocante ao mundo do trabalho e às políticas educacionais. Outros dois artigos que tratam de especificidades da educação aplicada.

O artigo da Socióloga argentina Silvia Patrícia Altamirano introduz o pertinente debate acerca do desemprego juvenil no Brasil. Destaca que, a despeito de programas e políticas implementadas no sentido de reduzir o percentual de jovens desempregados, é a insuficiência de postos no mercado de trabalho o principal responsável pelo agravamento dessa situação.

Na sequência, a Educadora Isa Martins, aborda a inserção acrítica das  Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) no ambiente da escola. Ao problematizar com aguda propriedade os paradoxos da política educacional implementada pelo Ministério da Educação (MEC) questiona se a lógica de utilização indiscriminada dessas tecnologias como ferramentas educacionais não estaria subordinando a interesses de mercado a mediação das relações professor-aluno. Debate altamente relevante, portanto.

Entrando no debate aplicado dos processos educacionais em áreas específicas do conhecimento, o artigo do Administrador Marcelo Marujo e da Contadora Laila Tavares trata das competências do profissional contábil de seguros, trazendo ao debate, inclusive, questões sobre a sua formação na grade curricular das graduações em Ciências Contábeis no país.

Por fim, na seção de Temas Gerais, novamente o Administrador Marcelo Marujo, em parceria com o Analista de Sistemas Fischer Jônatas Ferreira apresentam suas contribuições à análise da documentação técnica sobre o desenvolvimento e manutenção de softwares, em especial contrapondo as metodologias de desenvolvimento de software Clássica e Ágil.

Plurimus Cultura e Desenvolvimento em Revista é uma publicação independente e decorre do esforço de professores e pesquisadores que se propõem a abrir um espaço de reflexão e debate acerca de temas que contribuam para um outro olhar da realidade e para a construção de um outro mundo. Nossas edições estão disponíveis gratuitamente mediante cadastro no endereço www.plurimus.com.br.

Podem participar todos os interessados em se apresentar para esse processo plural. A próxima edição terá como tema central a questão da Participação Social, sempre dentro do nosso recorte editorial, contemplando as várias possíveis nuances em que se pode discutir um tema tão contemporâneo e relevante quanto este. Contamos com a suas ideias.

Boa leitura!


Os Editores