quinta-feira, 2 de março de 2017

Dívida pública

A Classe Média ainda pretende chegar ao paraíso?


Helena Reis*


Os arautos anunciavam as boas novas que a globalização em curso iria trazer na virada do novo século. O ledo engano custou a ser destruído. Só aos poucos começamos a ter noção que o planeta estava em rota de colisão com problemas pipocando em toda a parte, enquanto os países da periferia perdiam gradativamente seu lugar no ranking internacional entrando num buraco sem fundo. 

Uma das sangrias que nos deixa anêmicos e sem fôlego responde pelo nome de Dívida Pública. É através deste mecanismo que metade do nosso orçamento se esvai como fumaça, de forma mais volátil que o mercado de capitais. E o perverso é que quanto mais se paga, mais se deve e então contraímos novas dívidas para pagar as anteriores. 

Apesar do esforço hercúleo, a situação só tende a piorar, pois vamos ficando encurralados e sem ter por onde escapar. Sem capital não investimos no setor produtivo e com a agravante de explorarmos exaustivamente nossos produtos primários sejam minérios ou produtos agrícolas denominados “commodities” , cujos preços perdem o valor no mercado internacional a cada dia. Somado a isso, criamos uma Lei chamada KANDIR, que isenta de impostos os produtos primários ou aqueles produtos que não apresentam valor agregado. Exportamos montanhas de ferro somadas a muitos minérios nobres e a receita dos Estados é irrisória. Em 2015 nossos investimentos foram de R$ 9,6 bilhões em 11 meses, enquanto a Dívida Pública chegou a R$ 730 bilhões. Então, acumulamos perdas em várias pontas. Não há como concorrer com a produção dita “imaterial “ que privilegia os desenvolvidos. O imaterial só desabrocha em estruturas e infraestruturas materiais - sejam laboratórios, redes universitárias, centros de pesquisa. E neste sentido o Brasil, além de não investir em pesquisa e tecnologia para se tornar um país de 1º mundo, ainda promove o desmonte de sua precária estrutura acadêmica tecno–científica. Assim tudo que importamos nos custa o olho da cara, mas o que vendemos é cada vez mais a preço de banana. 

Quem olha de fora para o nosso gigantismo territorial pensa que dessa Terra, que tudo dá , ainda é possível extrair muito mais e ficam arquitetando novas formas de ganho. E o que já era ruim pode ficar ainda pior. De repente assistimos a nova investida do poder econômico através da imposição ao Congresso de um conjunto de leis capaz de retirar os parcos ganhos do trabalhador brasileiro que eles julgam deveras aquinhoado e privilegiado desde a criação da CLT na época de Getúlio Vargas e tudo isso sobre a rubrica de ajuste da economia para nova era de crescimento. Mas, esse pacote de medidas não só atinge os trabalhadores, que são os menos aquinhoados, mas corta fundo na carne, as conquistas do funcionalismo público constituído de pessoas oriundas da classe média. 

A classe média ou a pequena burguesia como também é chamada, não reconhece com clareza quem são seus inimigos ou contra quem teria de lutar. Historicamente se aliançou com as camadas mais altas do estrato social, talvez considerando ser possível uma futura ascensão nesta pirâmide. Essa classe, tendo assimilado toda a formulação da alta burguesia hoje em aliança com o capital financeiro internacional, tornou-se o elemento que não só avaliza suas ações como serve de mola amortizadora no confronto entre o capital representado pelos empresários e o trabalho executado pelo operário. 

Do que a classe média tem medo? De perder algumas regalias que conquistou ao longo da história tais como emprego, casa própria, plano de saúde e escolas para os filhos sempre prontos e receptivos a receber formação acadêmica necessária à continuidade do modelo a que estão acostumados e ao qual se agarram ferrenhamente com unhas e dentes. Algumas ambições norteiam a classe média e o seu sonho de ascensão social: Uma delas é essa de investir numa esmerada educação dos filhos com uma trajetória que prevê a conquista de uma vaga em Universidade pública seguida de um mestrado e um doutorado e, se possível com extensão em outras Universidades internacionais de preferência americana, inglesa ou francesa. Ao se preparar adequadamente o jovem imagina estar apto não só a conquistar bons postos no mercado de trabalho como também a se classificar em concursos públicos onde poderá galgar postos não só bem remunerados mas com estabilidade que só o Estado garante. 

Podemos então observar um fluxo permanente de profissionais já formados, que abandonam seus empregos em empresas para se aventurar em concursos públicos em busca inequívoca de segurança. E porquê a debandada da empresa privada? Eis uma boa pergunta e uma grave resposta. Se o que norteia a empresa privada é a eficiência e lucratividade, ela tem como regra manter certa instabilidade na permanência dos seus quadros e diante disso troca sem pestanejar a experiência, até de um executivo de alto nível que se torna com o passar dos anos mais caro e exigente, pelos jovens que ingressam pela 1ª vez no mercado de trabalho dispostos a aceitar desafios, a correr riscos, a galgar posições e aceitar uma faixa salarial mesmo que seja aquém das suas pretensões. A replicação do mesmo processo vai ocorrer inexoravelmente e o jovem não pode se esquecer que suas chances, com o avanço da idade, irão sendo dilapidadas cada vez mais. Os sessenta anos de idade de ontem, representam os quarenta de hoje , agudizando o processo. Quanto aos concursos, com o aumento do número de candidatos e a diminuição respectiva do número de vagas, a aparente saudável iniciativa acaba virando uma roleta de pôquer onde não se sabe quem vai ganhar. Muitos, depois de investirem dinheiro e tempo durante dois ou três anos, abandonam o sonho do emprego seguro e se reorientam novamente para o mercado de trabalho só que, dessa vez, solapados pela insegurança e decepção. 

Várias medidas em pauta no Congresso Nacional, se votadas, vão fazer um grande estrago nos sonhos da classe média e seus pontos de fuga . Elas são conhecidas pelas iniciais seguida do respectivo número que de tanto repetir acabamos guardando é o PLP 257 e a PEC 241/2016 e a 31/2016, além de um bastardo anterior a 143/2015 

Mas o que têm essas Leis em tramitação no Congresso capaz de tirar o sono e a tranquilidade das pessoas conscientes mas também de manter na indiferença milhões de brasileiros absolutamente alheios ao que está sendo urdido embaixo das suas barbas? 

Será que esta minoria tem razão ou sofre da paranoia do medo sem razão? 

A primeira questão é saber que a divulgação da modificação de um conjunto de artigos, pouco explicitados , não é do interesse da imprensa e portanto já se elimina de imediato qualquer ideia de complô ou de mudança nas regras do jogo com consequências funestas para o conjunto da população. Sendo assim, como organizar os cidadãos a não aceitarem passivamente a conspiração em curso? 

A segunda questão é que tal como acontecia em Roma onde o povo era engambelado com a distribuição de pão e circo , hoje nós estamos exultantes por um macro acontecimento internacional chamado Olimpíadas e daí porque nos preocuparíamos em gerenciar nosso Congresso tão competente e digno representante dos direitos do povo brasileiro. Claro que não , delegamos e pronto , lavamos as mãos. A PLP 257 é um acordo “ super bem intencionado” do Governo Federal para “salvar os ESTADOS” de uma dívida, que na verdade já foi paga inúmeras vezes e só não zerou porque os juros oficiais calculados pelo IBGE, o IPCA, foi substituído arbitrariamente pelo GPDI, um índice oficioso, calculado pela Fundação Getúlio Vargas e que exorbita do direito de ferrar com os nossos próprios irmãos. 

Vai daí que quando a situação chegou a um ponto crítico o pagamento foi alongado, mas as chamadas condicionantes se apossaram dos Estados moribundos sem condição de defesa . E, junto com os Estados, os servidores vão sofrer represálias de toda a ordem. Se eu citasse artigo por artigo tenho certeza que ninguém entenderia o dolo ou a mutreta. A linguagem principalmente a escrita desenvolveu formas retóricas para ocultar sacanagem aos mais desavisados e até aos mais descolados. Estão em curso formas devastadores de mudança que prejudicarão gregos e troianos. 

Vamos dar dois exemplos de artigos referentes à PEC 287, da Reforma da Previdência: 

4. Considera Aposentadorias e Pensões como “Despesas de Pessoal” 

Se não interpretarmos, quem vai entender isso numa primeira leitura feita sem má fé? Primeiro precisamos saber que as Aposentadorias e Pensões são frutos de uma poupança feita lá atrás, quando o sujeito começou seu primeiro dia de trabalho e teve de descontar mês a mês até o último dia da sua vida profissional, sem refresco. Esse dinheiro foi aplicado, rendeu juros e de forma alguma pode entrar na rubrica de despesas de Pessoal. Entenderam a manha? Mas além, em outro item ficamos sabendo que vão mexer na já perversa Lei da Responsabilidade Fiscal e desta feita com o objetivo de limitar o reajuste do salário mínimo com prejuízo no caso tanto para os ativos como para os aposentados. E mais, também em curso a privatização da previdência dos servidores públicos e na esteira a restrição do tamanho do serviço público que vai encolher drasticamente. 

5. Possibilita Regime Especial de Contingenciamento 

O contingenciamento é um modus operandi tupiniquim que retira verbas já orçadas e reservadas para desviá-las sem nenhum pudor para uma prioridade chamada pagamento da Dívida Pública. Não podemos nos esquecer que a Lei da Responsabilidade Fiscal, que coloca o administrador numa camisa de força com gastos restritos mesmo para setores fundamentais ou até emergenciais, libera qualquer fluxo de caixa quando o assunto é pagar Dívida. Honramos nossos compromissos com os banqueiros internacionais, mesmo que o circo pegue fogo e o povo passe fome. 

Quanto à PEC -241/2016 o grande golpe é propor o congelamento dos gastos sociais por até 20 anos e não importa se o país melhorar suas finanças, aumentar seu PIB ou ganhar alguma Copa do Mundo. Aqui no país do carnaval, do futebol, a Lei agora é da chibata. Sem dinheiro, sem trabalho, sem saúde, sem escolas, os presídios vão se multiplicar, as crianças vão perambular cada vez mais pelas ruas e o tráfico vai prosperar. 

E o saco de maldades que compete com o Bacen com mais requinte ainda, resolveu através da genialidade do Senador José Serra inventar um PLS de nº 204 visando legalizar a emissão de “debêntures” por entes federados . Quem irá ganhar dinheiro vendendo papéis da dívida ativa dos municípios? Duvido que sejam as cidades e que o dinheiro seja aplicado para o bem público. E para finalizar ainda falta contar que a tal da DRU (Desvinculação da Receita da União) de 20% do orçamento da União agora vai ser aumentada para 30% e como cala boca para os outros entes federados será também prerrogativa dos Estados (DRE) e dos Municípios (DRM). 

Voltando a falar da Classe Média, que imediatamente terá de reformular o seu sonho de conseguir um emprego público, uma vez que os concursos serão praticamente extintos e quando houver necessidade de pessoal a terceirização resolverá o problema. E por falar em terceirização essa foi a forma inteligente que o neoliberalismo encontrou para burlar as Leis trabalhistas e instituir novo modelo de exploração do trabalho. Terceirizado não tem estabilidade, autonomia de voo , férias , 13º salário, espírito de corpo, identidade, nada enfim. Além disso são indesejados pelo trabalhador que se sente ameaçado com a sua presença. Os terceirizados estão virando párias profissionais, sem apreço pelo próprio trabalho e por si mesmo . 

Quanto aos aposentados atuais, cujos salários nos próximos 20 anos irão sofrer drásticas perdas, espera-se que completem suas necessidades com empréstimos consignados em folha quando então perderão de vez qualquer possibilidade de vida digna. 

Niterói, 1º de agosto de 2016

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*Membro do Núcleo Rio de Janeiro da Auditoria Cidadã da Dívida Pública; autora do livro Crônicas de uma espoliação crônica via dívida pública e outros males.