quinta-feira, 23 de agosto de 2018

Ecossocialismo

Marx e a exploração da natureza*


John Bellamy Foster**

Nos últimos anos, a crescente influência das questões ambientais se manifestou sobretudo pela releitura, por meio do prisma da ecologia, de muitos pensadores, de Platão a Mahatma Gandhi. Mas, de todos, foi sem dúvida Karl Marx quem deu origem à literatura mais abundante e mais polêmica. Anthony Giddens afirmou que Marx, embora tenha oferecido provas de uma sensibilidade ecológica particularmente desenvolvida em seus primeiros escritos, adotou depois uma “atitude de Prometeu”, de superação em relação à natureza. [1] Da mesma forma, Michael Redclift nota que, para ele, o meio ambiente tinha por função “tornar as coisas possíveis, mas todo valor resultava da força de trabalho”. [2] Finalmente, segundo Alec Nove, Marx acreditava que “o problema da produção havia sido ‘resolvido’ pelo capitalismo e que a futura sociedade dos produtores associados não teria, portanto, de levar a sério o problema do uso dos recursos escassos”, o que significava que era inútil o socialismo ter qualquer “consciência ecológica”. [3] Essas críticas se justificam?

Das décadas de 1830 a 1870, a diminuição da fertilidade do solo pela perda de seus nutrientes constituiu a principal preocupação ecológica da sociedade capitalista, tanto na Europa como na América do Norte. A preocupação causada por esse problema não pode ser comparada àquela provocada pela crescente poluição das cidades, pelo desmatamento de continentes inteiros e pelos medos malthusianos da superpopulação. Nas décadas de 1820 e 1830, na Grã-Bretanha, e logo depois nas outras economias capitalistas em expansão da Europa e da América do Norte, a preocupação geral com o esgotamento do solo levou a um aumento fenomenal da demanda por fertilizantes. O primeiro barco carregado de guano peruano aportou em Liverpool em 1835; em 1841, foram importadas 1.700 toneladas e, em 1847, 220 mil. Durante esse período, os agricultores reviraram os campos de batalha napoleônicos como os de Waterloo e Austerlitz numa busca desesperada de ossos para espalhar em suas áreas de cultivo.

[Interessado nos Estados Unidos, o químico alemão] Justus von Liebig observou que poderia haver centenas ou mesmo milhares de quilômetros entre os centros de produção de cereais e seus mercados. Os elementos constitutivos do húmus eram, portanto, enviados para longe de seu local de origem, tornando mais difícil a reprodução da fertilidade do solo.

Empestear o Tâmisa

Longe de se mostrar cego em relação à ecologia, Marx, influenciado pelos trabalhos de Liebig do final da década de 1850 e início da de 1860, desenvolveu, a respeito da terra, uma crítica sistemática da “exploração” capitalista, no sentido do roubo de seus nutrientes e da incapacidade de garantir sua regeneração. Marx concluiu suas duas principais análises da agricultura capitalista explicando de que maneira a indústria e a agricultura em grande escala se combinavam para empobrecer o solo e os trabalhadores. O essencial da crítica daí resultante é resumido numa passagem situada no final da “gênese da renda fundiária capitalista”, no terceiro livro de O capital: “A grande propriedade fundiária reduz a população agrícola a um mínimo, a uma cifra que cai constantemente diante de uma população industrial, concentrada nas grandes cidades, e que cresce sem cessar; ela cria assim condições que causam um hiato irremediável no complexo equilíbrio do metabolismo social composto pelas leis naturais da vida; segue-se um desperdício das forças do solo, desperdício que o comércio transfere para bem além das fronteiras do país em questão. […] A grande indústria e a grande agricultura explorada industrialmente agem na mesma direção. Se, na origem, elas se distinguem porque a primeira devasta e arruína mais a força de trabalho, portanto a força natural do homem, e a outra, mais diretamente, a força natural da terra, elas acabam, ao se desenvolverem, por se dar as mãos: o sistema industrial no campo termina também por debilitar os trabalhadores, e a indústria e o comércio, por seu lado, fornecem à agricultura os meios para explorar a terra”.

A chave de qualquer abordagem teórica de Marx nessa área é o conceito de metabolismo (Stoffwechsel) socioecológico, que está enraizado em sua compreensão do processo de trabalho. Em sua definição genérica do processo de trabalho (em oposição a suas manifestações históricas específicas), Marx utilizou o conceito de metabolismo para descrever a relação do ser humano com a natureza por meio do trabalho: “O trabalho é primeiramente um processo que acontece entre o homem e a natureza, um processo em que o homem regula e controla seu metabolismo com a natureza pela mediação de sua própria ação. Ele se apresenta diante da matéria natural como uma potência natural em si. Ele põe em movimento as forças naturais de sua pessoa física, de seus braços e pernas, de sua cabeça e mãos, para apropriar-se da matéria natural de uma forma útil para sua própria vida. Mas, agindo sobre a natureza exterior e modificando-a por meio desse movimento, ele altera também sua própria natureza. […] O processo de trabalho […] é a condição natural eterna da vida dos homens”. [4]

Para ele, assim como para Liebig, a incapacidade de restituir ao solo seus nutrientes encontrava sua contrapartida na poluição das cidades e na irracionalidade dos sistemas de esgoto modernos. Em O capital, ele inclui esta nota: “Em Londres, por exemplo, não se encontrou nada melhor a fazer com o fertilizante proveniente de 4,5 milhões de homens do que usá-lo para empestear, a um enorme custo, o Tâmisa”. Segundo ele, os “resíduos resultantes das trocas fisiológicas naturais do homem” deveriam, assim como os dejetos da produção industrial e do consumo, serem reintroduzidos no ciclo da produção, dentro de um ciclo metabólico completo. [5] O antagonismo entre cidade e campo e a ruptura metabólica a que ele dava origem eram igualmente evidentes em âmbito mundial: colônias inteiras tinham suas terras, seus recursos e seu solo roubados para apoiar a industrialização dos países colonizadores. “Por um século e meio”, escreveu Marx, “a Inglaterra indiretamente exportou o solo irlandês, sem mesmo fornecer àqueles que o cultivam os meios de substituir seus componentes.” [6]

As análises de Marx sobre a agricultura capitalista e a necessidade de restituir ao solo seus nutrientes (e sobretudo os dejetos orgânicos das cidades) levaram-no, assim, a uma ideia mais geral de sustentabilidade ecológica – ideia que ele pensou que só poderia ter uma pertinência prática muito limitada em uma sociedade capitalista, por definição incapaz de tal ação racional e coerente, mas que pelo contrário seria essencial numa sociedade futura de produtores associados. “O fato, para a cultura dos diversos produtos do solo, de depender das flutuações dos preços do mercado, que causam uma mudança perpétua dessas culturas, e o próprio espírito da produção capitalista, focado no lucro mais imediato, estão em contradição com a agricultura, que deve conduzir sua produção tendo em conta o conjunto das condições de existência permanentes das gerações humanas que se sucedem.”

Ao enfatizar a necessidade de preservar a terra para “as gerações seguintes”, Marx capturou a essência da ideia contemporânea de desenvolvimento sustentável, cuja definição mais famosa foi dada pelo relatório Brundtland [7]: “Um desenvolvimento que satisfaça as necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazer suas próprias necessidades”.8 Para ele, é necessário que a terra seja “consciente e racionalmente tratada como propriedade perpétua da coletividade, condição inalienável da existência e da reprodução das sucessivas gerações”. Assim, em uma passagem famosa de O capital, ele escreveu que, “do ponto de vista de uma organização econômica superior da sociedade, o direito de propriedade de alguns indivíduos sobre partes do globo parecerá tão absurdo como o direito de propriedade de um indivíduo sobre seu próximo”.

Por muitas vezes, Marx é criticado também por ter se mostrado cego ao papel da natureza na criação do valor: ele teria desenvolvido uma teoria segundo a qual todo valor decorreria do trabalho, sendo a natureza considerada um “presente” oferecido ao capital. Mas essa crítica baseia-se numa interpretação errada. Marx não inventou a ideia de que a terra seria um “presente” da natureza para o capital. Foram Thomas Malthus e David Ricardo que avançaram esse conceito, uma das teses centrais de suas obras econômicas. Marx estava ciente das contradições socioecológicas inerentes a tais concepções e, em seu Manuscrito econômico de 1861-1863, criticou Malthus por cair de forma recorrente na ideia “fisiocrata” segundo a qual o ambiente é “um presente da natureza para o homem”, sem levar em consideração a maneira como isso estava ligado ao conjunto específico de relações sociais instituído pelo capital.

Claro, Marx concordava com a opinião de economistas liberais que, de acordo com a lei do valor do capitalismo, nenhum valor é reconhecido à natureza. Como no caso de qualquer mercadoria no capitalismo, o valor do trigo decorre do trabalho necessário para produzi-lo. Mas, para ele, isso apenas refletia a concepção estreita e limitada da riqueza inerente às relações de mercado capitalistas, em um sistema construído em torno do valor de troca. A verdadeira riqueza consistia em valores de uso – que caracterizam a produção em geral, para além de sua forma capitalista. Portanto, a natureza, que contribuía para a produção de valores de uso, era, tal como o trabalho, também uma fonte de riqueza. Em sua Crítica do programa de Gotha, Marx repreende os socialistas que atribuem o que ele chama de um “poder de criação sobrenatural” ao trabalho como a única fonte de riqueza, sem levar em conta o papel da natureza.

**John Bellamy Foster é redator-chefe da Monthly Review, Nova York. Este texto foi extraído de Marx écologiste [Marx ecologista], Éditions Amsterdam, 2011.

Referências
1 Anthony Giddens, A Contemporary Critique of Historical Materialism [Uma crítica contemporânea do materialismo histórico], University of California Press, Berkeley, 1981.
2 Michael Redclift, Development and the Environmental Crisis: Red or Green Alternatives?[Desenvolvimento e crise ambiental: alternativas vermelhas ou verdes?], Methuen, Nova York, 1984.
3 Alec Nove, “Socialism” [Socialismo]. In: John Eatwell, Murray Milgate e Peter Newman (orgs.), The New Palgrave Dictionary of Economics [Novo dicionário de economia Palgrave], v.4, Stockton, Nova York, 1987.
4 Karl Marx, Le Capital, livro 1, Éditions Sociales, Paris, 1978.
5 Karl Marx, Le Capital, livro 3, Éditions Sociales, 1978.
6 Karl Marx, Le Capital, livro 1, Éditions Sociales, 1978.
7 Nosso Futuro Comum, relatório elaborado em 1987 pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento da Organização das Nações Unidas, sob a liderança do primeiro-ministro norueguês, Gro Harlem Brundtland [nota do editor].
8 Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Comissão Brundtland), Our Common Future [Nosso Futuro Comum], Oxford University Press, Nova York, 1987.

quinta-feira, 9 de agosto de 2018

O almoço grátis

Apropriação indébita

Daniel Roedel*

Tem sido frequente, na grande mídia e em opiniões ditas especializadas sobre o papel desempenhado pelo Estado, a reprodução da ideia de que não existe almoço grátis, ou seja, sempre que ocorre alguma iniciativa política que atende a direitos sociais, há um custo não apontado e que é pago por alguém ou pela sociedade em geral. A frase, popularizada pelo economista Milton Friedman, expoente do pensamento liberal do século XX, é usada atualmente também para justificar a necessidade de adoção de políticas de austeridade por parte dos governos.

Mas será mesmo verdade? Não existe mesmo almoço grátis?

Se acompanharmos a trajetória das inovações incorporadas pelas empresas, podemos concluir que não é bem assim. Sabemos que o conhecimento, base da inovação, não é uma escada que se sobe a partir do primeiro degrau. Portanto, ao inovarem, as empresas se utilizam de conhecimentos de épocas pretéritas ao desenvolvimento de seus produtos. É um conhecimento acumulado pela sociedade, socialmente criado e herdado, geração após geração, que está disponível para uso. E, ao incorporá-lo, as empresas não pagam por ele, não remuneram a sociedade. Usufruem de um almoço, aliás de um banquete, inteiramente grátis. Mas como se trata de uma apropriação privada, no ambiente de negócios regido pelo deus mercado, a grande mídia e os especialistas a ignoram, valorizando e enaltecendo os grandes empreendedores e visionários que estão sempre adiante do seu tempo produzindo inovações espetaculares!

A Eureka dos inventores ou a determinação de empreendedores, por mais que estes tenham sido dedicados, é resultado desse processo social. Na dúvida, coloque-os isolados do ambiente social e aguardem que suas descobertas e ações de excelência surjam...

Essas constatações estão presentes na obra Apropriação indébita: como os ricos estão tomando a nossa herança comum, de Gar Alperovitz e Lew Daly (Editora Senac), com prefácio de Ladislaw Dawbor para a edição brasileira.

Nela, os autores discorrem sobre grandes descobertas de diversas épocas e mostram que as condições históricas e o conhecimento então disponíveis foram mais relevantes do que possíveis insights dos descobridores, que muitas vezes entraram para a história por terem sido ágeis na divulgação de descobertas e invenções. E indagam: o que é mais importante, a herança tecnológica disponível ou o esforço, a inteligência etc, individual em produzir, a partir da herança, algum fim prático ou negociável?

Na obra, é citada a instigante questão do cientista político Robert Dahl: Quem contribuiu mais para a operação da General Eletric - seus principais executivos? Ou Albert Einstein, ou Michel Faraday ou Isaac Newton?”

Portanto, sim, há almoço grátis! E, conforme os autores ele está sendo servido para aqueles que já estão muito bem alimentados”. É uma importante evidência principalmente se considerarmos a atual hegemonia do pensamento neoliberal que tenta apagar ideias e iniciativas de base coletiva e hipervalorizar os aspectos individuais como caminho para o sucesso. Uma reflexão ainda mais válida no momento em que os recursos da pesquisa no Brasil vêm sofrendo cortes sumários pelo (des)governo atual...


*Doutor em Políticas Públicas e Formação Humana; Administrador; Editor do Blog

quinta-feira, 2 de agosto de 2018

O valor da Cultura

Reflexões sobre o papel da Cultura no contexto

pré-eleições no Brasil


Simone Amorim*


A cultura de massas, assim como os demais processos de alienação a partir da mercantilização de tudo o que cerca a existência comum das pessoas, vai atomizando os indivíduos em unidades não responsivas aos estímulos do pensar criativo. Percebe-se hoje um espaço vazio onde o cultivo do gosto é uma remota possibilidade para a grande massa, alheia ao exercício de apreciação estética. O principal norteador de uma atuação realmente criativa e engajada com o que nos parece ser essencial no campo das artes e da cultura, se apresenta, na verdade, como antivalores a algumas práticas que acabam por escamotear o que deveria ser central na atuação de um gestor cultural: “Uma política cultural subordinada à estrita lógica do mercado e das audiências é uma política cultural sem princípios nem valores, que se demite do seu papel estruturante do discurso e da prática políticos e do seu papel ativo na construção da imagem que uma sociedade dá de si própria e ao exterior”. (MELO, 2002, p.149)

Sem capacidade de abstração uma sociedade não avança. A ação cultural funciona como uma das possibilidades de que, a partir do exercício criativo, os indivíduos participem da construção de novos discursos, recombinem os repertórios de seu cotidiano com criatividade e reinventem suas realidades em cima do que lhes é imposto cotidianamente. Isso vale para todos os aspectos do convívio social. Quando existem deficiências nesse circuito, quando as pessoas por alguma razão perdem a capacidade de abstração, de criação, isto é, de participação na vida cultural; de alguma forma a cultura de um grupo se vê mais pobre e na mesma proporção o indivíduo se enfraquece. De modo que, subordinar esse circuito a lógicas exógenas ao campo cultural é criar um arremedo de ação cultural cujo efeito é estranho ao que acabamos de mencionar acima. Em outras palavras, quando uma ação cultural qualquer, se submete a indicadores socioeconômicos de medição quantitativa da curva de públicos, prestar contas dos seus resultados a parceiros, financiadores ou o Estado, gerir a instituição cultural, ou o projeto, como uma empresa capitalista globalizada (rentabilização máxima de dividendos) e outras práticas, em curso no campo cultural, já não enxergamos a cultura e a arte no pleno de sua potência humanizadora. O campo cultural tem espaço para funções executivas, mas jamais deveria perder de vista que o produto de sua atuação não pode ser reduzido a uma mercadoria (ou serviço) e como tal não pode ser comercializado no bazar global das mercadorias.

Essa reflexão é de uma atualidade crítica, na medida em que a ideologia da pós-modernidade entranhou-se por todos os domínios da vida social e particular dos indivíduos; diluiu os componentes tradicionais de sociabilidade e abriu espaço para uma miríade de experiências efêmeras, fragmentárias e descoladas umas das outras, ao mesmo tempo construindo novas frentes e destruindo a possibilidade de criação de novas narrativas – no sentido empreendido pelos modernos. Algo como uma infinita possibilidade de códigos e uma rara probabilidade de interação, pela incapacidade do estabelecimento de sentido, de grupo. “O ‘contrato social’ que, a partir do século XVIII, estabeleceu-se; contrato social de essência racional, privilegiando o cérebro, domesticando as paixões e marginalizando as emoções, esse contrato social está sob todos os aspectos totalmente saturado”. (MAFFESOLI, 2010, p.52).

Vivemos o tempo de um retorno ao aqui e agora como territórios do pertencimento, símbolos únicos da coesão pós-moderna, territórios reais ou simbólicos, o pacto tribal pós-moderno estaria fundado, organicamente, na experiência do imediato, do efêmero. Como se esse fosse o único laço possível na contemporaneidade: a partilha sensorial do momento presente das relações, do conhecimento, das interações dos pontos de vista. A enxurrada de opiniões publicadas para abafar a possibilidade de consolidação de um esfera pública sustentada por opinião pública criticamente constituída; a violência com que as diversidades rasgaram o modelo apoiado na ordem como condição para o progresso ou mesmo romperam com o contrato social cínico do século anterior, são verdades que mais participam do sentido neste momento, os símbolos do tempo presente. De modo que é nessa janela que se abre para o novo, que nos parece absolutamente pertinente um reenfocamento das políticas culturais na contemporaneidade. Oportunidade em que cabe ao agente cultural: “fazer a ponte entre as pessoas e a obra de cultura ou arte para que, dessa obra, possam as pessoas retirar aquilo que lhes permitirá participar do universo cultural como um todo e aproximarem-se umas das outras por meio da invenção de objetivos comuns” (COELHO, 2004, p.33).

Isto é, compartilharem códigos que possibilitarão a reinvenção da coesão a partir do social, do simbólico e de possibilidades estéticas do presente. Dessa forma não vejo como não serem úteis à política cultural do futuro. Por isso a arte e a cultura, na minha visão, devem ser entendidas como valores estéticos do presente, humanizadoras das sociabilidades e que, desse modo, reveste de uma importância política ainda maior o papel do Estado nesse campo. Um processo de ação cultural resume-se na criação ou organização das condições necessárias para que as pessoas inventem seus próprios fins e se tornem assim, sujeitos – sujeitos da cultura, não seus objetos (JEANSON, Apud COELHO, 2001, p.14).

A efetiva vida cultural da população, entendida aqui como o conjunto de práticas e atitudes que têm uma incidência sobre a capacidade do homem se exprimir, se situar no mundo, criar seu entorno e se comunicar. A vida cultural do indivíduo não se faz apenas através do uso do chamado tempo livre e do dispêndio de dinheiro; ela comporta também atitudes em períodos dominados por elementos não culturais, como o tempo do trabalho e do transporte, por exemplo. Conhecer as várias faces do cotidiano é fundamental para a formulação de políticas consequentes na área. (BOTELHO, 2016, p.20). Dessa forma, os bens culturais entendidos no conjunto do patrimônio histórico e cultural de uma sociedade constituem o propósito central da ação cultural genuína. Ao criticarmos o efeito alienante da ênfase que a indústria cultural dá apenas à mercantilização da arte e da cultura no circuito da produção cultural, reforçamos a noção de que “o objetivo da ação cultural não é construir um tipo determinado de sociedade, mas provocar as consciências para que se apossem de si mesmas e criem as condições para a totalização, no sentido dialético do termo, de um novo tipo de vida derivado do enfrentamento aberto das tensões e conflitos surgidos na prática social concreta” (COELHO, 2001, p.42).

Uma ação cultural legítima não pode demitir-se do entendimento da cultura no conjunto de capitais necessários ao convívio social e de como uma determinada sociedade distribui e valoriza esse capital no conjunto dos demais.

*Gestora Cultural, Doutora em Políticas Públicas, Investigadora de Pós-doutorado na Linha de Pesquisa “Cidades e Territórios” do Centro de Estudos sobre Mudança Socioeconômica e Territorial DINÂMIA’CET-IUL, em Lisboa.

Referências

BOTELHO, I. Dimensões da cultura: políticas culturais e seus desafios. São Paulo: SESC SP, 2016.
COELHO, T. O que é ação Cultural?São Paulo: Brasiliense, 2001.
COELHO, T. Dicionário crítico de política cultural: Cultura e imaginário. 3aEd. São Paulo: Iluminuras, FAPESP, 2004.
MAFFESOLI, M. Saturação. São Paulo : Iluminuras, Itaú Cultural, 2010.
MELO, Alexandre. O que é Globalização Cultural?Lisboa: Quimera, 2002.