quinta-feira, 14 de março de 2019

Rumo à barbárie?

Marielle, a Barbárie e o “lugar de fala”*

Raquel Varela**

Marielle está morta. Vamos falar a sério sobre o que aconteceu e acabar com esta treta do “lugar de fala”. O Brasil não tolera mais brincar ao socialismo. Agora é a sério.

Ontem foi assassinada no Rio de Janeiro a vereadora do PSOL Marielle Franco, mãe adolescente que saiu do buraco da pobreza lutando pelos direitos humanos elementares. Estou no Rio de Janeiro e raramente falo aqui sobre o Rio porque muitas pessoas cultivam a ignorância – quando se aponta um problema olham para o dedo que aponta, o detalhe, o acaso, o mensageiro e não a mensagem.

Chegou-se ao limite porque este assassinato é qualitativo, é sobre uma dirigente mulher negra. Não é um dos 60 mil negros todos os anos assassinados, mais do que na Síria, ele é um aviso real a todos os militantes no Brasil para que deixem de o ser.

Então aqui fica o que penso sem mediações.

A luta contra a violência no Brasil não pode ser só uma luta de pobres e negros. O famoso “lugar de fala” – só quem é negro fala de negros, quem é favelado fala de favelados, etc -é uma desculpa reaccionária (com véu progressista) para quem não quer assumir as dores dos outros. Não é socialismo, é virar as costas aos problemas que não vivemos na nossa vida.

A luta contra esta violência tem que ser também com urgência de brancos que vivem nas zonas nobres – enquanto eles não saírem à rua com os seus filhos, pais, avós dizendo “Basta!” não vai acabar a guerra que se vive no país. O que mais me impressiona no Rio é a tolerância da classe média à violência. Na Bélgica são barbaramente assassinadas crianças e milhões saem à rua. Até nos EUA os estudantes finalmente vieram para as ruas contra este clima intolerável de barbárie.

No Brasil os brancos e brancas, sectores médios, de esquerda resolveram há muito a sua vida: vivem em estado de pavor (vão para tal ao psicanalista), não atendem o telemóvel em qualquer lado, fecham os vidros dos carros, escolhem horas para sair de casa – num recolher obrigatório não assumido.

Se forem pobres não dá, claro. Rezam antes de entrar no ônibus, e sonham que os filhos “não morram”, é isso mesmo, a depiladora onde vou, de quando em quando, tem como objectivo que os filhos estejam vivos. Até me dói o coração quando a oiço, sempre alegre, comentar, “estão vivos Minha Portuguesa!, estão bem!”.

Quem tem dinheiro arranjou subterfúgios para viver no meio da guerra civil sem a questionar. Nunca percebi como as ruas não estavam cheias de gente a exigir o direito democrático a andar na rua sem ser assaltado, ou morto. Todos deram por adquirido que se vive assim, “é chato mas adaptaram-se”, aceitam o intolerável e quem não aceita isto é “gringo medroso”. Também há os gringos que vão em passeios turísticos a favelas!, sabendo, claro, que em breve estão nas suas casas, seguras e confortáveis. Às favelas, lugares imundos onde se luta pela sobrevivência, têm ainda o desplante de chamar “comunidade”.

Comunidade é sair de casa sem ter medo a qualquer hora. Tudo o resto é barbárie.

Ir ao Rio de Janeiro é o mesmo que ir a uma guerra – não uso as palavras em vão. No Rio a minha depiladora, que não teve a coragem de uma Marielle, tem pavor dos ladrões e pavor da polícia.

Andamos nos bairros nobres e são prédios, de ruas limpas, com grades, onde os porteiros conversam uns com os outros, como animais enjaulados. Enquanto a classe média entra e sai desses prédios e sobe pelo elevador dos moradores – sim no Brasil há um outro elevador, o de serviço para a “preta que vem da favela limpar”. Imaginem! Apartheid.

Concluí há muito que não há protestos colectivos pelo direito à liberdade de circulação e a deixar de viver em guerra, porque a classe média que trabalha resolveu a sua vida pessoal com custos gigantescos de segurança – um negócio forte no Brasil, todos os prédios têm porteiros, vídeo vigilância, alarmes estridentes insuportáveis que apitam o dia todo, andam de táxi para todo o lado. E, claro, jaulas – perdão, grades.

A classe média de esquerda, a base social real dos partidos de esquerda, não vem para as ruas exigir o fim da violência porque já resolveu a sua vida, no dia a dia, e porque isso implica dar mais poder ao Estado a quem acusam de ser a origem primeira da violência. Se há país onde o Estado é violento é este, sobre isso não há dúvidas, aqui manifestações são reprimidas com canhões e balas! É a guerra.

Mas não há só violência de Estado. Há uma tolerância com a violência paralela que para mim é e sempre foi incompreensível. As classes pobres trabalhadoras não exigem nada porque lutam para chegar ao fim do dia e comer e regressar vivas às casas miseráveis que habitam nas periferias – é curioso virem ainda com a história “do lugar de fala” quando a maioria deles chega ao fim do dia e esteve 3 horas no transporte, e comeu açúcar e hidratos de carbono, está esgotado…até para falar. E quando fala mal sabe falar português e explicar o que sente ou quer. As pessoas estão não só emocionalmente esgotadas, não têm força física nem instrumentos de saber, incluindo linguagem para se fazer entender. A maioria aqui teve uma educação tão baixa que não consegue distinguir numa simples indicação de rua a esquerda da direita. Que lugar de fala!? Quantas Marielles deste mundo vão sair das favelas!?

Desde sempre que me pergunto se não há e não pode haver um terceiro campo que se oponha à violência de Estado e à criminalidade. E que acabe com esta treta “do lugar de fala” – Marielle morreu praticamente sozinha porque falou sozinha. Porque nos milhões que vivem das favelas houve uma liderança, uma, que se destacou, com uma força anímica anormal, mulher, negra, que estudou, dedicou-se com coragem à causa pública. É a excepção. A regra é que os trabalhadores das favelas precisam de ajuda de quem está fora das favelas.

É isso que penso e que quero aqui escrever, sem mediações hoje, a violência no Brasil só vai parar quando quem pode lutar contra ela se deixe de adaptar a ela.

Quando os brancos que vivem nos prédios-jaulas disserem Acabou! Basta! Talvez nesse dia não uma mas muitas Marielles sintam força para sair das favelas. Socialismo é isso, é dar coragem para que os mais frágeis sintam força, é lutar pelos mais pobres, dizer-lhes “estamos ao vosso lado”. Não é exigir-lhes a toda a hora que façam sozinhos o que não podem fazer.

Marielle Franco, presente!

*Extraído de Raquel
**Historiadora, Investigadora e Professora Universitária