quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Sustentabilidade

Uma câmera, novas ideias, velhos personagens atuando de formas diferentes...
Um mundo Sustentável e Melhor pode começar na Narrativa

Isa Ferreira Martins* 

No artigo "Vamos fazer de conta que você é..." cito como a Narrativa faz parte do nosso pensamento, cotidiano, vida...  Então por que não explorarmos a infinidade de imagens, sons e lugares aos quais nos podem levar a narrativa audiovisual?  O trabalho com a linguagem visual e sonora pode despertar no estudante a sensibilidade para os diversos códigos e consequentes interpretações que podemos ter ou provocar ou, ainda, colocá-lo diante do desafio: “o que quero dizer e o como dizer”.

Sabemos que existem milhares de interpretações, sensações ou expectativas ao vermos uma menina, de 2 anos, perdida, no meio de uma praça, chamando “mamãe, mamãe...”. Se a cena ocorre às 10h da manhã, o efeito no espectador é um.

Mas se os elementos visuais e sonoros que resultam na mensagem que se quer passar mudam, uma “nova” narrativa pode ser contada. Visualize a mesma criança perdida, mas às 03h da madrugada, na mesma praça... Se os tons dos chamados pela mãe forem agora altos, agudos e também misturados a um choro desesperado e já cansado... ficamos mais apreensivos com o que aconteceu e com o que, ainda, pode acontecer...

Poderíamos trabalhar conhecimentos sobre linguagem visual e sonora em um projeto em que se possa ampliar a visão crítica de nossos Estudantes sobre Sustentabilidade. Despertar o desejo pela leitura e provocar a reflexão pode passar também pelo conhecimento de como se faz uma boa história. E por que não pela experiência de pensar, escrever, estruturar e filmar uma boa história? Uma narrativa ficcional que, por exemplo, tenha como desafio maior ser um curta-metragem sobre Sustentabilidade (com no máximo 10 minutos).
 
Um ponto de partida para discussões e reflexões pode ser o Canal do Oi Conecta: Sustentabilidade. Lá, artigos como IPEC: conheça um projeto de escola sustentável, Planeta doente: saiba quais são as agressões globais, entre outros, nos ajudam a entender melhor o conceito de Sustentabilidade e o que podemos fazer para mudar não só cenário, como o provável final desastroso de uma sociedade não sustentável.

Se você fosse o autor ou roteirista, de uma narrativa de ficção, como seria um mundo sustentável? Quem seria o personagem principal (protagonista), que atitudes novas ele/a teria? Que outros personagens (secundários) atuariam na história? Como seria o perfil físico e psicológico deles? Que relações eles estabeleceriam uns com os outros? Que cenários seriam necessários criar para praticarmos a sustentabilidade? Sua narrativa seria no passado, no presente ou em um futuro distante? Estaria o narrador presente nas mudanças do mundo (primeira pessoa) ou seria ele alguém que somente nos conta como tudo aconteceu (terceira pessoa)?

Alguns vídeos produzidos poderiam ser postados. Mas se você ainda acha que o desafio é pequeno, que tal participar de um concurso? No site a seguir há concursos de curta-metragem com outras temáticas, mais uma forma de se trabalhar ou relembrar com os estudantes elementos da Estrutura narrativa, criatividade... Então, “Faça seu Curta". Conheça o Tela Brasil. O tema do concurso de 2011 foi Sustentabilidade.

*Professora da Rede Pública de Ensino do Estado do Rio de Janeiro / Doutoranda em Educação da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ / Mestre em Literatura Brasileira e Teorias de Literatura pela Universidade Federal Fluminense – UFF

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Narrativa

Vamos fazer de conta que você é ...
Em tempos de redes sociais, narrativas e personagens em novos perfis
  
Isa Ferreira Martins* 

O que transforma aquelas crianças com olhos brilhantes e ouvidos atentos a uma história em alguém que diz: “Eu não gosto de ler.”?

Aaaah!... a Narrativa, não vivemos sem ela. Desde que acordamos, até adormecermos, falamos ou pensamos, quase sempre de forma narrativa, sobre o que fizemos durante o dia, o que conversamos, com o que concordamos, como vamos resolver tal problema, o que vivemos...

Então, quando alguém que teve acesso à Educação diz que “não gosta de ler”, precisamos pensar em como evitar este triste desfecho. Fico me perguntando se a fantasia, o colorido, as imagens e, principalmente, o faz de conta e a interação tão necessários ao Ser Humano, talvez, não sejam deixados de lado muito cedo quando o assunto é a formação do leitor. Como vou “formar um leitor” que não lê ou lê somente para fazer uma prova ou teste e, neste contexto, muitas vezes, até recorre à internet para ler, mas... “o resumo do livro.” Mas será que esta mesma internet não poderia envolver nosso Estudante nas redes, também, da leitura?

Compreendemos que a “obrigação” tira de muitos Estudantes o desejo de ler e consequentemente as possibilidades de ampliar suas ideias, interpretações, gramática, ortografia, vocabulário, compreensão da sociedade, de si mesmo e do outro. Mas não podemos desistir porque “Navegar é preciso”. Esta expressão, aqui popularizada por Caetano Veloso com a música “Argonautas” e em Portugal pelo poeta Fernando Pessoa, teria sido dita há vários séculos pelo general romano Pompeu aos marinheiros temerosos de enfrentar o mar. Não! Não podemos privar nossos estudantes da navegação por narrativas que nos fazem rir, chorar, nos revoltar, amar, mudar... Pois, sabemos que através da leitura podemos experimentar diferentes e incríveis mundos que somente nossa própria vida não nos permitiria conhecer.

Proponho que a internet da “busca de resumos literários” e sedutoras redes sociais seja palco virtual das “leituras escolares”. Poderíamos formar grupos e a cada um deles indicar um livro, conto etc. Cada componente seria responsável em criar um perfil no Orkut, por exemplo, do “seu” personagem. Comunidades, álbuns, músicas, descrições do perfil e recados (diálogos) trocados entre os personagens teriam de ser a expressão da personalidade e comportamentos lidos/presentes na obra. A turma acompanharia as histórias na “rede”. E, em uma aula semanal (conectado ao site e projetado), os grupos apresentariam os acontecimentos das “vidas” dos seus personagens e explicariam o que motivou no livro e na criatividade deles as “novidades” da semana. Nesta proposta, não há como ler somente o “resumo do livro”. É preciso mergulhar na fantasia, nas vivências, experimentar as emoções e interagir com os demais personagens e com o colega.

Fico imaginando como seria o “Perfil” da Emília, de que “comunidades” a Cuca faria parte? E o Saci Pererê? E quem eu, Educadora, gostaria de ser? Dona Benta, que conquista pela sabedoria com as palavras? Não, acho que eu gostaria mesmo é de ser a Tia Nastácia.

Assim, ao menos no Sítio virtual dos Estudantes, eu experimentaria o delicioso prazer de um elogio por cozinhar bem! E você, que personagem gostaria de Ser? E que tal deixar seus alunos te sugerirem?

*Professora da Rede Pública de Ensino do Estado do Rio de Janeiro / Doutoranda em Educação da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ / Mestre em Literatura Brasileira e Teorias de Literatura pela Universidade Federal Fluminense – UFF

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Chuvas de verão

Além Paraíba 2012 – Crônica de uma tragédia anunciada 

Plinio Fajardo Alvim*

A tragédia de Além Paraíba-MG, ocorrida na madrugada do dia 9 de janeiro de 2012, foi muito parecida com a que ocorreu em Leopoldina-MG, no início da década de 1980, quando o estreito Córrego do Feijão Cru atingiu, em apenas meia hora, proporções gigantescas, matando sete pessoas e deixando um rastro de destruição em grande parte da cidade.

Em Além Paraíba, o pequeno Rio Limoeiro, afluente do grande Rio Paraíba, recebeu enorme volume de água decorrente de fortes chuvas (‘tromba d’água’) em suas cabeceiras. O Limoeiro, já muito assoreado em seu trajeto urbano, atravessa vários bairros da cidade, com trechos ora apertados entre morros, ora com declividade bem acentuada, formando pequenas cachoeiras e estrangulado por canalizações, pontes e incontáveis construções às suas margens; o que potencializou a violência destrutiva da correnteza.

Em pouquíssimos minutos, ao longo de todo seu percurso urbano, o Limoeiro subiu muitos metros, destruindo ou levando o que encontrava pela frente, inclusive em áreas de baixada, como na Vila Laroca, já próximo de seu encontro com o Paraíba, inundando as antigas instalações das ‘Oficinas Ferroviárias de Porto Novo’, a ‘Quadra da Rede’, a SAPE (antigo SENAI) e toda a vizinhança, num raio de mais de 400 metros. Um cenário dantesco, jamais visto, ou, sequer, imaginado pelos moradores da cidade. Tínhamos a nítida impressão de que o Limoeiro queria - à força - retomar o seu território, bem ali, naquele mesmo lugar onde, outrora, antes de ser desviado e maltratado, ele se entregava ao Paraíba. Este, apesar de já estar bastante cheio - embarreirando o seu afluente -, ainda não chegara a sair de seu leito natural.

Além das irreparáveis perdas humanas (fala-se em quatro vítimas fatais) e materiais (centenas de casas residenciais e comerciais inundadas ou destruídas, dezenas de carros arrastados ou submersos, equipamentos urbanos e vias danificadas), ocorreram ainda vários desmoronamentos, um dos quais interditou o acesso ao Hospital São Salvador, o único da cidade.

A chuva persistente ainda ameaça encostas e prédios fragilizados pelo desastre. Telefones, internet e energia elétrica foram sendo regularizados ao longo do mesmo dia. O fornecimento de água potável foi - e ainda está - interrompido. No início dessa noite e na manhã do dia 10 a Prefeitura solicitou (via carro de som) que os moradores dos bairros atingidos pelo Limoeiro saíssem de suas casas, em razão de possível rompimento de uma barragem (açude) existente à montante do rio, na zona rural, periférica da urbana, na localidade denominada ‘Torrentes’.

Tragédia prevista e anunciada

Há exatamente um ano, em janeiro de 2011, em debate no Programa Roda Viva, então apresentado pelo radialista José Erbiste ‘Macarrão’, na Rádio Cultura de Porto Novo, eu lembrei que, apesar das catástrofes ocorridas na vizinha região serrana fluminense (em 11 e 12 daquele mês) e na própria cidade de Além Paraíba (no dia 15), e por elas motivados, vivíamos um momento propício para a elaboração de projetos de contenção de encostas, prevenção de enchentes, construção de moradias, transferência de populações das áreas de risco, etc.; em razão da existência de recursos federais para tais destinos e face à própria sensibilização do Governo Federal. E sugeri que nossos governantes elaborassem os projetos e os encaminhassem à Brasília e pedi que o programa fosse gravado.

Em meados de 2011, foi realizado um detalhado e bem fundamentado diagnóstico, elaborado pela equipe coordenada pela Dra. Denise Vögel, dirigente da Ambiental Consult, empresa de consultoria contratada por Furnas Centrais Elétricas, com vistas à ‘Revisão do Plano Diretor Municipal’ – de cujas reuniões e audiências públicas participei, como integrante, convidado, do grupo de representantes da sociedade civil organizada – ONGs Grupo Brasil Verde e Instituto Culturar. O projeto destacou o desordenamento da ocupação antrópica em vários pontos do município, enfatizando a enorme vulnerabilidade no Limoeiro e do seu entorno; alertando, inclusive, quanto aos riscos a que estão sujeitas as demais áreas, suscetíveis a erosões; e apresentou uma série de propostas para reduzir e/ou evitar ocorrências como estas.

Agora, precisamos arregaçar as mangas, reconstruir o que se perdeu e torcer para que a Câmara aprove as mudanças sugeridas e para que a Prefeitura tome a iniciativa de elaborar e implementar projetos, factíveis, de desocupação humana e recuperação ambiental dos locais afetados. Vidas serão preservadas e danos materiais serão evitados.

Espero que, no próximo verão, eu/nós não precise/mos ‘copiar’ e ‘colar’ este mesmo texto - só trocando as datas - para comentar uma possível reprise desta triste notícia. 

*Administrador, Ambientalista, Ferroviarista, Pesquisador da História Regional.

Globalização e crise

O ovo da serpente*
Frei Betto**

Não é preciso ser economista para perceber a grave turbulência que afeta a economia globalizada. Se a locomotiva freia, todos os vagões se chocam, contidos em seu avanço. E o Brasil, apesar do PIB de US$ 2,5 trilhões, ainda é vagão...

Todo ano, desde 1980, cumpro a maratona de uma semana de palestras na Itália. Desde o início deste novo milênio eram evidentes os sintomas de que a próxima geração não desfrutará do mesmo nível de bem-estar dos últimos 20 anos. Nenhuma economia podia suportar tamanho consumismo e a monopolização crescente da riqueza. Agora, a realidade o comprova. A carruagem da Cinderela virou abóbora. A União Europeia patina no pântano...

Muitas são as causas da atual crise econômica. Apontá-las com precisão é tarefa dos economistas que não cultivam a religião da idolatria do mercado. Como leigo no assunto, arrisco o meu palpite.

Desde os anos 80, a especulação se descolou da produção. O mundo virou um cassino global. Sem passaporte e sem vistos, bilhões de dólares trafegam livremente, dia e noite, em busca de investimentos rentáveis. Enquanto o PIB do planeta é de US$ 62 trilhões, o cacife do cassino é de US$ 600 trilhões. A famosa bolha... Haja papel sem lastro! A lógica do lucro supera a da qualidade de vida. A estabilidade dos mercados é, para os governos centrais, mais importante que a dos povos. Salvar moedas, e não vida humanas.

Todos sabemos como a prosperidade da Europa ocidental foi alcançada. Para se evitar o risco do comunismo, implantou-se o Estado de bem-estar social. Combinaram-se Estado provedor e direitos sociais. Reduziu-se a desigualdade social, e as famílias de trabalhadores passaram a ter acesso à escolaridade, assistência de saúde, carro e casa própria.

Em contrapartida, para não afetar a robustez do capital, desregularam-se as relações de trabalho, desativou-se a luta sindical, sepultou-se a esquerda. Tudo indicava que a prosperidade, que batia à porta, viera para ficar.

Não se deu a devida importância a um pequeno detalhe aritmético: se há duas galinhas para duas pessoas, e uma se apropria das duas, a outra fica a ver navios... E quando a fome bate, quem nada tem invade o espaço de quem muito acumulou. Assim, os pobres do mundo, atraídos pelo novo Eldorado europeu, foram em busca de um lugar ao sol. Ótimo, a Europa, como os EUA, necessitava de quem, a baixo custo, limpasse privadas, cuidasse do jardim, lavasse carros... A onda migratória viu-se reforçada pela queda do Muro de Berlim. A democracia política chegou ao Leste europeu desacompanhada da democracia econômica. Enquanto milhares tomaram o rumo de uma vida melhor no Ocidente, seus governos acreditaram que, para chegar ao Paraíso, era preciso ingressar na zona do euro.

A Europa entrou em colapso. A culpa é de quem? Ora, crime de colarinho branco não tem culpado. Quem foi punido pela crise usamericana em 2008? Os desmatadores do Brasil não estão sendo anistiados pelo novo Código Florestal?

Culpados existem. Todos, agora, se escondem sob a barra da saia do FMI. E nós, brasileiros, sabemos bem como este grande inquisidor da economia pune quem comete heresias financeiras: redução do investimento público; arrocho fiscal, desemprego, aumento de impostos, corte de direitos sociais, punição a países com déficit público etc.

O descaramento é tanto que o pacote do FMI inclui menos democracia e mais intervencionismo. Quando Papandréu, primeiro-ministro da Grécia, propôs um plebiscito para ouvir a voz do povo, o FMI vetou a proposta, depôs o homem e nomeou Papademos, um tecnocrata, para o seu lugar. Também o governo da Itália foi ocupado por um tecnocrata. Como se o fim da crise dependesse de uma solução contábil.

A história recente da Europa ensina que a crise social é o ovo da serpente - chocado pelo fascismo. Sobretudo quando a crise não é de um país, é de um continente. Não adiantam mobilizações em um país, é preciso que elas se expandam por toda a Europa. Mas como, se não existem sindicalismo combativo nem partidos progressistas?

As mobilizações tipo Ocupem Wall Street servem para denunciar, não para propor, se não houver um projeto político. Quem se queixa do presente e teme o futuro, corre o risco de se refugiar no passado - onde se abrigam os fantasmas de Hitler e Mussolini. 

*Extraído de UOL
**Escritor, autor, em parceria com Marcelo Gleiser e Waldemar Falcão, de “Conversa sobre fé e ciência” (Agir), entre outros livros.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Brasil e China

 Barbas de molho com a estratégia econômica da China*

Carlos Lessa**

Sou de uma geração treinada em ler nas entrelinhas. Vivi as longas décadas de regimes ditatoriais latino-americanos e aprendi a pesquisar as intenções nos discursos oficiais. O dr. Ulysses Guimarães me ensinou que se deve prestar atenção aos silêncios nos discursos.

Percebo uma crescente preocupação da presidente Dilma com a China e suas pretensões geopolíticas e geoeconômicas. Na reunião do G-20, a presidente declarou sua preocupação com a ausência de compras chinesas de produtos industriais brasileiros (leia-se, nas entrelinhas, que o Brasil é exportador de alimentos e matérias-primas sem processamento: soja em grão, minério de ferro bruto, couro de vaca sem curtição etc).

Em passado relativamente recente, exportamos geradores para a grande usina do Rio Amarelo; agora, estamos importando geradores da China. Vendemos aviões da Embraer. Bobamente, aceitamos instalar uma filial na China; os chineses clonaram a fábrica da Embraer e, hoje, competem com o avião brasileiro no mercado mundial. Esta semana, a presidência declarou sua preocupação com a tendência chinesa à aquisição de grandes glebas agrícolas no Brasil. A percepção presidencial não resolve o problema das relações Brasil-China, porém já é meio caminho andado que o poder executivo nacional tenha aquelas dimensões presentes.

O enigma chinês é fácil decifrar. O Brasil cresceu, de 1930 a 1980, 7% ao ano. Depois dessas décadas, mergulhamos na mediocridade e patinamos com uma taxa média ridícula de 2,5%. A China, nas últimas décadas, vem crescendo anualmente entre 9% e 10%. Entretanto, está em situação potencialmente pior que o Brasil. Hoje, mais de 80% da população brasileira está em áreas urbanas e 50% em metropolitanas e nem chegamos aos 200 milhões de habitantes. A China tem uma população de 1,34 bilhão, sendo que menos de 50% estão na área urbana. Como a renda média do chinês rural é um terço da do chinês urbano, é inexorável uma transferência equivalente a duas vezes a população brasileira para as cidades chinesas, nos próximos 20 anos. É fácil entender o sonho de urbanização do chinês rural. A periferia urbana das cidades chinesas já está "favelizada".

Estratégia da China combina aspectos da Inglaterra vitoriana com primazia do Japão científico-tecnológico
 
Sabemos que o Brasil tem uma péssima distribuição de renda e riqueza. Houve uma melhoria da participação dos salários na renda nacional, que evoluiu, desde 2000, de 34% para 39%. A elevação do poder de compra dos salários foi importante, entretanto o leque salarial se tornou mais desigual e houve pouca geração de empregos de boa qualidade. O salário médio brasileiro é muito baixo, entretanto é, por mês, igual ao limite de pobreza chinês ao ano (cerca de €150), isto é, o brasileiro pobre ganha 12 vezes mais que o chinês pobre. Nosso governo fala de uma "nova classe média" e esconde que o lucro real dos grandes bancos brasileiros cresceu 11% por ano no período FHC e 14% durante os dois mandatos do presidente Lula. Enquanto os colossais bancos chineses têm uma rentabilidade patrimonial inferior a 10%, os bancos brasileiros chegam a 20%.

É impensável o futuro demográfico chinês. No passado, cada família só podia ter um filho; agora, essa regra está sendo relaxada. A urbanização e a industrialização chinesas já comprometeram o lençol freático da China do Norte. Com restrições de água, e necessitando transferi-la cada vez mais para a sede da indústria e população urbana, a China não produzirá alimentos suficientes. Se o consumo interno da China crescer cada vez mais, haverá falta não só de água, mas também de energia fóssil e hidráulica, além de, obviamente, todo um elenco de matérias-primas.

O planejamento estratégico de longo prazo da China é para valer. O projeto geopolítico e a geoeconômico chinês está transformando a África e parte da Ásia do sudeste em fronteira fornecedora de alimentos e matérias-primas. Em busca de autossuficiência de minério de ferro, a China já está desenvolvendo as enormes reservas do Gabão. A petroleira chinesa já está nas reservas de petróleo de gás do coração da África e a ocupação econômica de Angola é prioridade diplomática e financeira da China. O extremo sul da América Latina é objeto de desejo expansionista chinês, que se propôs a fazer e operar uma nova ferrovia ligando Buenos Aires a Valparaíso, perfurando um túnel mais baixo na Cordilheira dos Andes. O Chile - com pretensão de se converter na "Singapura" do Pacífico Sul - e os interesses agro-exportadores argentinos adoram a ideia. Carne, soja, trigo, madeira, pescado e cobre estarão na periferia da China do futuro. A presidência Argentina é relutante em relação a esse projeto, porém o MERCOSUL está sob o risco de se converter, dinamicamente, em pura retórica.

O Império do Meio, unificado pela dinastia Han (ainda antes de Cristo), atravessou séculos com Estado centralizado e burocracia profissional estruturada. No século XIX, a China balançou pela penetração da Inglaterra vitoriana; enfrentou a perfídia mercantil do ópio controlado pela Índia britânica. Sua república, no século XX, foi ameaçada pela expansão japonesa, e somente após a Segunda Guerra Mundial conseguiu, com o Partido Comunista Chinês (PCC) restaurar a centralidade.

Com um pragmatismo secularmente desenvolvido, a China combinou o Estado hipercontrolador com a "economia de mercado". "Casou" com os EUA e criou um G-2, aonde mais de 3 mil filiais americanas produzem na China e exportam para o mundo (70% das exportações de produtos industriais são de filiais americanas).

O superávit comercial chinês é predominantemente aplicado em títulos do Tesouro. Esse é um sólido matrimônio, em que os cônjuges podem até brigar, mas não renegam a aliança mutuamente conveniente. Enquanto isso, a China repete a proposta da Inglaterra vitoriana para a periferia mundial: fonte de matérias-primas e alimentos, a periferia mundial é, progressivamente, endividada com os bancos chineses e seu espaço econômico é ocupado por filiais da China. A Revolução Meiji, que modernizou e industrializou o Japão, está em plena marcha na China, que procura ser a campeã mundial em ciência e tecnologia. A estratégia da China combina as chaves do sucesso da Inglaterra vitoriana com a prioridade científico-tecnológica japonesa.

Que a China faça o que quiser, porém o Brasil não deve se converter na "bola da vez" da periferia chinesa. País tropical, com enormes reservas de terra agriculturável, água e fontes de energia fóssil e hidrelétrica, imagine-se a prioridade estratégica para o planejamento chinês em sua marcha pela periferia.
 
O discurso da globalização, a fantasia da "integração competitiva", a ilusão de ser "celeiro do mundo" com brasileiros ainda famintos, e a atrofia da soberania nacional podem vir a ser um discurso de absorção da proposta neocolonizadora da China.
 
Leio, nas palavras da presidente, uma percepção do risco do "conto do vigário" chinês.

Temo os vendilhões da pátria, entregando energia e alimentos para o neo-sonho imperial.

*Extraído de Plano Brasil.
**Professor emérito de economia brasileira, ex-reitor da UFRJ e Ex-Presidente do BNDES. E-mail: carlos-lessa@oi.com.br.