quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

Mundo do trabalho

A devastação do trabalho na contrarrevolução de Temer*


Ricardo Antunes**

Em que mundo do trabalho estamos inseridos?

Depois de um período aparentemente estável do pós-guerra, o ano de 1968 chacoalhou a “calmaria” que parecia vigorar no mundo do welfare state: os levantes em Paris, que se espalharam por tantas partes do globo, estampavam o novo fracasso do capitalismo. Os operários, os estudantes, as mulheres, a juventude, os negros, os ambientalistas, as periferias e as comunidades indígenas chamavam atenção para um novo e duplo fracasso.

De um lado, cansaram de se exaurir no trabalho, sonhando com um paraíso que nunca encontravam. O capitalismo do Norte ocidental procurava fazê-los “esquecer” a luta por um mundo novo, alardeando um aqui e agora que lhes escapava dia após dia.

De outro lado, o chamado “bloco socialista”, originado em uma revolução socialista que abriu novos horizontes em 1917, havia se convertido, desde a contrarrevolução do camarada Stalin, em uma ditadura do terror especialmente contra a classe operária que, em vez de se emancipar, se exauria em um trabalho infernal em que o sonho cotidiano principal era praticar o absenteísmo no trabalho.

O ano que abalou o mundo foi duramente derrotado pelas poderosas forças repressivas que sempre se aglutinam quando a ditadura do capital é questionada. Das revoltas na França ao massacre dos estudantes no México e a repressão às greves do Brasil. Do autunno caldo (outono quente) da Itália ao Cordobazo na Argentina, os aparatos repressivos da ordem conseguiram estancar a era das rebeliões, impedindo-as de se converterem em uma época de revoluções. Adentrávamos, então, no início da década de 1970, em uma profunda crise estrutural: o sistema de dominação do capital chafurdava em todos os níveis: econômico, social, político, ideológico, valorativo, obrigando-o a desenhar uma nova engenharia da dominação.

Foi nesse contexto que se começou a gestar uma trípode profundamente destrutivo. Esparramaram-se, como praga da pior espécie, a pragmática neoliberal e a reestruturação produtiva global, ambos sob o comando hegemônico do mundo das finanças. E é bom recordar que essa hegemonia significou não somente e expansão do capital fictício, mas também uma complexa simbiose entre o capital diretamente produtivo e o bancário, criando um monstrengo de novo tipo, uma espécie de frankenstein horripilante e desprovido de qualquer sentimento minimamente anímico.

As principais resultantes desse processo foram desde logo evidenciadas: deu-se uma ampliação descomunal de novas (e velhas) modalidades de (super) exploração do trabalho, desigualmente impostas e globalmente combinadas pela nova divisão internacional do trabalho na era dos impérios. Para tanto, foi preciso que a contrarrevolução burguesa de amplitude global exercitasse sua outra finalidade precípua, qual seja, a de tentar destruir a medula da classe trabalhadora, seus laços de solidariedade e consciência de classe, procurando recompor sua nova dominação, em todas as suas esferas da vida societal.

Nasceu, então, um novo dicionário empresarial no mundo do trabalho, que não para de crescer. “Sociedade do conhecimento”, “capital humano”, “trabalho em equipe”, “times ou células de produção”, “salários flexíveis, “envolvimento participativo”, “trabalho polivalente”, “colaboradores”, “PJ” (pessoa jurídica, denominação falsamente apresentada como “trabalho autônomo”). E mais: “empreendedor”, “economia digital”, “trabalho digital”, “trabalho on-line” etc. Todos impulsionados por “metas” e “competências”, esse novo cronômetro da era digital que corrói cotidianamente a vida no trabalho.

Na contraface desse ideário apologético e mistificador, afloraram as consequências reais no mundo do trabalho: terceirização nos mais diversos setores, informalidade crescente; flexibilidade ampla (que arrebenta as jornadas de trabalho, as férias, os salários); precarização, subemprego, desemprego estrutural, assédios, acidentes, mortes e suicídios. Exemplos se ampliam em todos os espaços, como nos serviços comoditizados ou mercadorizados. Um novo precariado aflora nos trabalhos de call centers, telemarketing, hipermercados, hotéis, restaurantes, fast-foods etc., onde vicejam a alta rotatividade, a menor qualificação e a pior remuneração.

Turbinados pela lógica das finanças, em que técnica, tempo e espaço se convulsionaram, a corrosão dos direitos do trabalho tornou-se a exigência inegociável das grandes corporações, apesar de seus ideários apregoarem mistificadoramente “responsabilidade social”, “sustentabilidade ambiental” (a Samarco e a Vale que o digam), “colaboração”, “parceria” etc.

Na esfera basal da produção, prolifera o vilipêndio social e, no topo, domina o mundo financial. Dinheiro gerando mais dinheiro na ponta fictícia do sistema e uma miríade interminável de formas precárias de trabalho que se esparramam nas cadeias globais produtivas de valor. Dos Estados Unidos à Índia, da Europa “Unida” ao México, da China à África do Sul, em todos os cantos do mundo se expande essa pragmática letal ao trabalho e seus direitos. E esse vilipêndio só é estancado quando há resistência sindical, luta social e rebelião popular, como na França de hoje e no Chile de ontem. 

Ressuscitam-se formas de trabalho escravo e degradam-se além do limite os trabalhos dos imigrantes. Isso sem falar do engodo do “trabalho voluntário”, frequentemente imposto e compulsório, pois ninguém consegue um emprego se não estampar em seu curriculum vitae a realização de “trabalho voluntário”. Ou seja, uma atividade originalmente volitiva se transmuda em sua caricatura, convertendo-se em uma nova forma “moderna” de exploração compulsiva. Na Feira Internacional de Milão, em 2015, e nas Olimpíadas de 2016, no Rio de Janeiro, só para dar dois exemplos, a mistificação se acentua exatamente onde lucros incalculáveis são obtidos por grandes corporações do “entretenimento”. E o Brasil não poderia ficar fora dessa.

O governo Temer, a nova fase da contrarrevolução neoliberal e o desmonte da legislação social do trabalho

Sabemos que o neoliberalismo vem se efetivando por meio de um movimento pendular, quer por governos neoliberais “puros”, quer pela ação de governos mais próximos do social-liberalismo; em ambos os casos, os pressupostos fundamentais do neoliberalismo se mantêm essencialmente preservados.

Desde quando começou a ser efetivamente introduzida no Brasil, a partir da década de 1990, a pragmática neoliberal teve claras consequências: aumento da concentração de riqueza, avanço dos lucros e ganhos do capital, incrementados com a privatização de empresas públicas, além de deslanchar a desregulamentação dos direitos do trabalho. Foi assim com Collor e FHC.

Os governos do PT foram exemplos exitosos da segunda variante, ao introduzir uma política policlassista fortemente conciliadora, preservando e ampliando os grandes interesses das frações burguesas. Mas havia um ponto de diferenciação, dado pela inclusão de programas sociais, como o Bolsa Família, voltado para os setores mais empobrecidos, além da introdução de uma política de valorização do salário mínimo limitada, mas real, apesar dos níveis de salário mínimo no país serem absurdamente rebaixados. Basta compará-lo ao salário mínimo indicado pelo Dieese.

Enquanto o cenário econômico era favorável, o país parecia estar em um círculo virtuoso. Com o agravamento da crise econômica global (que teve como epicentro os países capitalistas do Norte e aqui se intensificou posteriormente), porém, esse mito começou a evaporar.

As rebeliões de junho de 2013 foram os sinais mais evidentes do enorme fracasso que se avizinhava, mas foram olimpicamente desconsideradas pelo governo Dilma. Esse quadro crítico se acentuou durante as eleições de outubro de 2014, quando começou a se verificar uma retração crescente do apoio das frações dominantes, uma vez que a intensificação da crise econômica indicava que esses setores que até então respaldavam (e ganhavam muito com) os governos do PT começaram a exigir um ajuste fiscal que acabou por ter uma dupla e trágica consequência. Por um lado, levou à crise terminal do governo Dilma e, por outro, ao desalento de inúmeros de seus eleitores nas classes populares, que a viram realizar o que dizia recusar na campanha eleitoral. De lá para cá, a história é de todos conhecida. 

Consolidou-se a “alternativa ideal” das frações burguesas, agora em aberta dissensão: impossibilitada de ganhar pelas urnas, chegava a hora de deflagrar um golpe que teve no Parlamento seu lócus decisivo. Aqui vale um breve parêntese. Marx disse que o Parlamento francês, em meados do século XIX, vivenciou uma “degradação do poder” que lhe retirou “o derradeiro resquício de respeito aos olhos do público” [1]. O que dizer, então, do Parlamento brasileiro recente, no qual viceja um enorme núcleo que exercita solenemente sua forma pantanosa?

Assim, nossa transição pelo alto desencadeou uma nova variante de golpe (já experimentada em Honduras e no Paraguai, para ficarmos na América Latina), que precisava “arranjar” algum respaldo legal. E o fez recorrendo tanto à judicialização da política quanto à politização da justiça. Sempre com o apoio das grandes corporações midiáticas e com a ação, nas sombras, comandada pelo vice Temer e pela batuta indigente de Cunha na Câmara, ambos aliados do PT na época de lua de mel com o PMDB.

Tudo isso parece conferir plausibilidade a algumas formulações de Agamben [2], uma vez que toda essa ação está perigosamente nos aproximando a uma forma (contraditória?) de “estado de direito de exceção”. E o golpe parlamentar que levou à deposição de Dilma, sem provas cabais – e ao mesmo tempo a isentou de perda dos direitos políticos (em mais uma flagrante incongruência jurídica) –, reiterou a farsa ao condenar uma presidenta por um crime que o mesmo Parlamento reconhece que ela não cometeu.

Tudo isso para que o governo golpista siga à risca a pauta que lhe foi imposta, uma vez que os capitais exigem, neste momento de profunda crise, que se realize a demolição completa dos direitos do trabalho no Brasil [3]. Dado que essa programática não consegue ter respaldo eleitoral, o golpe foi seu truque. Talvez por isso possamos denominá-lo, irônica e tragicamente, de um verdadeiro governo terceirizado.

Iniciou-se, então, uma nova fase da contrarrevolução preventiva, para recordar novamente Florestan Fernandes [4] agora de tipo ultraneoliberal. Sua principal finalidade: privatizar tudo que ainda restar de empresa estatal, preservar os grandes interesses dominantes e destroçar os direitos do trabalho.

Em seu conhecido documento inspirador, Uma ponte para o futuro, cujo abismo social resultante não para de se intensificar, está estampado a trípode destrutiva a ser colocada em prática nos trópicos: privatizar o que ainda não o foi (em que o pré-sal se destaca como vital); impor o negociado sobre o legislado nas relações de trabalho, em um período em que a classe trabalhadora tem apontada uma espada no coração e um punhal nas costas, pelo flagelo do desemprego que não para de crescer; e, por fim, introduzir a flexibilização total das relações de trabalho, começando pela aprovação da terceirização total (conforme consta do PLC 30/2015).

E, para que a devastação seja completa, é preciso aviltar a Constituição de 1988, o que não é tarefa nada difícil para o Parlamento no qual o pântano é movediçamente oscilante. Basta um bom movimento negocial.

O objetivo perfilado pelo atual governo de Michel Miguel, no universo das relações de trabalho, é corroer a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) – que a classe trabalhadora compreende como sendo sua “verdadeira Constituição do trabalho” – e dar cumprimento à “exigência” do empresariado (CNI, Febraban e assemelhados), cujo objetivo não é outro senão instalar imediatamente o que denominei como “sociedade da terceirização total” [5].

Não é outro o significado do PLC 30/2015. Depois de obter, anos atrás, a terceirização das atividades-meio, chegou a hora do outro golpe. Terceirizar tudo, com o encobrimento falacioso e perverso de que o dito PLC quer conferir direitos aos terceirizados. Mas ficam algumas perguntas centrais.

Primeira: se o empresariado, tempos atrás, justificava a terceirização das atividades-meio para se manter qualificado e focado nas atividades-fim, o que mudou agora? A resposta é direta: o embuste agora é outro e o mal dito vira desdito.

Segunda: se o empresariado quer garantir direitos aos terceirizados, por que exatamente nessas empresas de terceirização a burla e a fraude são mais a regra do que a exceção?

Terceira: os empresários dizem que a terceirização cria empregos. Mas, como os terceirizados têm em média jornadas diárias ainda mais longas, pode-se concluir, por exemplo, que mais terceirizados podem fazer o trabalho de menos celetistas. Evidencia-se, então, que não há aumento de empregos, e sim maior desemprego, uma vez que de fato a terceirização é uma forma de redução de custos e de trabalho regulamentado.

Quarta: se os empregos terceirizados são assim tão bons, por que é exatamente nesse setor que os acidentes, os assédios, as lesões e as mortes no trabalho são muito mais intensas?

Quinta: por que nesse universo do trabalho, no qual é intensa a presença feminina, são ampliados os abismos decorrentes da divisão sexual do trabalho, em que as mulheres recebem menos, têm menos direitos e ainda exercem uma dupla (quando não tripla) jornada de trabalho?

Sexta: a quem interessa fragmentar ainda mais a classe trabalhadora, ampliando as diferenciações intra-assalariados e dificultando ainda mais sua organização sindical?

A lista de perguntas seria quase interminável e o espaço já foi ultrapassado.

Aqui reside o segredo de Polichinelo: para garantir a alta remuneração dos capitais, vale devastar toda a população trabalhadora, começando pela destruição completa do que resta de seus direitos do trabalho, da previdência, da saúde e da educação públicas. Nem uma palavra sobre redução dos juros, tributação dos bancos, dos capitais e das grandes fortunas. Nada. Para isso deu-se a assunção do governo terceirizado. Só as lutas sociais poderão fazê-lo submergir.

*Extraído de Diplomatique

**Professor e sociólogo da Unicamp

Notas

1 - Karl Marx, 18 de Brumário de Luís Bonaparte, Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1974, p.39.
2 - Giorgio Agamben, Estado de exceção, Boitempo, São Paulo, 2004.
3 - Era chegada a hora de os capitais terem um governo-de-tipo-abertamente-gendarme, independentemente de quão úteis para as classes dominantes foram os governos do PT. Ver Ricardo Antunes, “Fenomenologia da crise brasileira”, Revista Lutas Sociais, v.19, n.35, dez. 2015. Disponível em: http://revistas.pucsp.br/index.php/ls/article/view/26672/pdf.
4 - Florestan Fernandes, A revolução burguesa no Brasil, Zahar, São Paulo, 1975.
5 - Ver Ricardo Antunes, “A sociedade da terceirização total”, Revista da ABET, v.14, n.1, jan.-jun. 2015. Disponível em: http://periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/abet/article/view/25698/13874.

quinta-feira, 3 de novembro de 2016

Crise?

"Estamos destruindo o mundo por uma minoria", diz economista*


O professor de Economia da PUC-SP Ladislau Dowbor, em entrevista à Revista Diálogos do Sul, debateu os fundamentos da atual crise financeira internacional e as consequências do chamado capital especulativo na vida das pessoas. Em síntese, ressaltou que estamos destruindo o planeta por uma minoria e deixando o grosso da população de fora do sistema. “Nós não temos problema econômico, temos um problema de organização social e política”, afirmou.

A reportagem foi publicada por Opera Mundi, 23-10-2016.

O professor ressaltou que, ao contrário do que os analistas de sempre consultados pela grande imprensa sugerem, o mundo produz riqueza suficiente para suprir as necessidades básicas de todo o planeta e exemplifica: se toda a produção do mundo fosse dividida pelos habitantes da Terra, cada família receberia R$ 9 mil por mês, em média.

Mas, ao contrário disso, ressalta, “temos 62 bilionários que têm mais riqueza acumulada do que as 3,6 bilhões de pessoas mais pobres”.

Ele explica que esse processo é possível graças ao sistema especulativo, em que o capital fica parado, gerando lucro apenas via especulação, sem produção e sem pagamento de impostos.

Porém, ele aposta que não há, por parte das populações mais pobres, conformismo com essa situação: “qualquer pobre hoje sabe que poderia ter um hospital, uma escola de qualidade. O pessoal está começando a se mexer e não adianta construir muros”, diz em referência à migração de centro-americanos e mexicanos para os Estados Unidos e à crise de refugiados na Europa.

“Temos US$ 30 trilhões em paraísos fiscais – enquanto o PIB mundial é de US$ 72 trilhões – então essa gente não só não investe, como não paga impostos. Temos um capitalismo de dinheiro parado, um capitalismo improdutivo planetário”, afirma o professor. Ele ressalta que esse montante poderia estar sendo investido para resolver nossos problemas enquanto humanidade, mas está enriquecendo uma minoria.

Nesse contexto, ele observa que a crise brasileira é apenas um aparte em todo o processo da economia global, mas ressalta que a solução para a crise vivenciada no país com a Proposta de Emenda à Constituição 241 (PEC 241, que impõe o teto dos gastos públicos para os próximos 20 anos) não é, ao contrário do que alguns economistas defendem, “um remédio amargo, porém necessário”.

Isso porque que “os bancos geraram o rombo (das contas públicas). O que querem fazer (com a PEC 241) é que o andar de baixo tenha que pagar o rombo, mas quando se reduz investimento, você chupa o dinheiro do andar de baixo e vai travar ainda mais a economia”.


*Extraído de Unisinos

quinta-feira, 20 de outubro de 2016

Trabalho e tecnologia

Do precariado ao biscatariado: e se de repente a Uber lhe oferecer flores?*


Francisco Louçã**



Sim, porque é mais barato, escrevem muitos dos quiseram comentar o meu artigo anterior que perguntava se “quer mesmo viver na Uberlândia?”. Porque estamos irritados com os táxis. Sim, porque sim, é moderno.

Estas três razões têm fundamentos, baseiam-se em experiências, fazem parte da vida. E, no entanto, parecem-me insensatas e imprevidentes. A do preço é a mais evidente: com menos custos legalmente determinados, uma empresa, que finge que organiza serviços pessoais e não transporte colectivo, pode começar por preços mais baratos e até aguentar um prejuízo importante, como a Uber mundial faz. Mas qualquer multinacional existe para procurar criar um monopólio, esta não é excepção e é por isso que os preços vão ser sempre um problema. Se pensa que a Uber, uma empresa que vale 40 mil milhões de dólares, não está nisto para ganhar dinheiro mas para o ajudar bondosamente, desengane-se. Se ela vier a triunfar, os clientes vão sentir.

Mas o que quero discutir convosco é o outro argumento, aquele do isto é bom porque é moderno.

Cuidado, antes de mais. O moderno pode ser socialmente útil (as vacinas, o Raio X, a rádio e a TV ou o cabo, o relógio de quartzo, os smartphones, até a Netflix) ou perigoso (a bomba nuclear, as armas químicas). Cuidado com a generalização.

Ora, em que é que a Uber e outras empresas do mesmo tipo são modernas, ou em que é que é moderno o que nos oferecem? Segundo o seu próprio discurso, são libertadoras ou até libertárias: estas empresas comparam-se imodestamente a Gandhi ou aos pioneiros da luta pelos direitos civis e contra a discriminação racial nos EUA. Se assim fosse, não teriam outro interesse que não o do cliente, libertando o consumidor das amarras de um passado corporativo de pequenos patrões gananciosos ou de interesses vagamente mafiosos, lodo no cais. Se assim fosse, seria estranho que, nesse empenho pelo consumidor, nos oferecessem um transporte sem lei e sem obedecer aos requisitos mínimos que em Portugal temos vindo a definir para proteger o passageiro em transportes colectivos.

Pergunto então se a regra de não respeitar regras é assim tão moderna? Quando Trump nos diz que é esperto porque não paga impostos, não ouvimos isto já no passado? Não sabemos de tempos não tão antigos em que a lei não vigorava dentro das empresas, que eram territórios independentes e definiam as suas próprias normas sem que os tribunais e o direito do trabalho pudessem interferir?

Surpreende por isso que se ponha a etiqueta de “modernidade” neste propósito e modelo de negócio. Ele tem mesmo sido emoldurado no que se tem chamado de “economia de partilha” e de “economia cooperativa”, magníficas expressões. Até criamos emprego para desempregados (que tenham carro apresentável e uma gravata), dizem os empresários uberianos. Somos uns pelos outros, acrescentam (e o ministro acredita, isto é transporte privado, são pessoas de boa vontade que dão boleia uns aos outros a troco de uma modesta compensação).

Permitam-me discordar: atacando um dos sectores socialmente mais vulneráveis, os taxistas, o que estas empresas nos estão a oferecer é uma trincheira para desencadearem uma velha batalha que tem sido adiada. Elas são a encarnação da “economia dos criados”, uma economia sem lei. Ou “economia do biscate”, para ser mais delicado e usar a expressão da sempre conveniente Hillary Clinton.

A diferença em relação à modernidade é bastante evidente. Há na modernidade empreendimentos cooperativos, mesmo que alguns com interesses económicos. Empreendimento cooperativo é a Wikipedia, não é a Uber. O que a Uber faz, ou outras empresas como ela, é criar um modelo de negócio em que o trabalhador não faz trabalho, faz um biscate, não tem salário, tem comissões, não tem contrato, tem um link.

É portanto um passo no caminho mais perigoso contra a modernidade – sim, a modernidade é o princípio da lei universal que protege os fracos contra os fortes. O passo anterior foi passar do trabalhador para o precariado. Perdeu-se o contrato e os seus direitos. Perdeu-se a oportunidade de melhorar de nível de vida com a melhor educação e começou assim o desgaste dos sistemas de representação democrática. Para uma geração inteira, isto significa que os licenciados e licenciadas convergem para o salário mínimo. Mas o novo passo na Uberlândia vai mais longe. Com este modelo, deixaria de haver precariado, passaríamos a ter biscatariado. Nem contrato estável nem contrato precário, só fica uma comissão de-vez-em-quandária e um patrão inacessível e escondido num computador perto de si. Não há relação legal, ninguém é responsável, a lei da selva é a única lei. Há quem diga que isso é melhor do que nada, o que é precisamente a forma de justificar que seja quase nada. O jogo está mesmo a mudar.

Por isso, caro cliente do táxi que passa para a Uber porque é mais barato e mais moderno: se de repente a Uber lhe oferece flores, desconfie de que não gostam nada de si. O que este modelo quer para a sua filha é uma vida sem destino, esperando por detrás de um ecrã as ordens de um Big Brother que lhe cobra uma comissão e que lhe diz: faz-te à vida, luta na rua, apanha a rede e terás cliente, a sorte vai fazer o teu dia, se fizer.

NB- Dois leitores lembraram que Uberlândia é também o nome de uma honrada cidade do Brasil, que nada tem que ver com estes negócios. Têm razão. Mas acho que compreenderam a metáfora.

*Extraído de Público
**Economista. Foi deputado (1999-2012) e é professor de economia na Universidade de Lisboa. Os últimos livros que publicou foram "A Dividadura" e "Isto é um Assalto" (Bertrand, 2012 e 2013), ambos com Mariana Mortágua, "Os Burgueses" (Bertrand, 2014, com J. Teixeira Lopes e J. Costa) e “A Solução Novo Escudo” (Lua de Papel, 2014, com João Ferreira do Amaral). Também se dedica agora a este Tudo Menos Economia e ao que mais se verá.

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Resenha

Crise Política: o futuro numa encruzilhada


Simone Amorim*

Em texto produzido ao final de 2015 e publicado recentemente pela Editora Civilização Brasileira (Impasses da Democracia no Brasil, 2016), o cientista político Leonardo Avritzer, da UFMG, analisa limites do processo democrático vivenciado há trinta anos no Brasil, assumindo a conclusão de que chegamos ao fim do ciclo iniciado com a redemocratização brasileira ocorrida na década de 1980.

Entre os principais fatores que caracterizariam o impasse político, figurariam três principais entraves ao amadurecimento das conquistas democráticas garantidas pela constituição de 1988: os limites do presidencialismo de coalização e a consequente judicialização da política, que têm minado a governabilidade do poder executivo; os limites da participação social, institucionalizada ou não, destacando a necessidade de ampliação desta a setores estratégicos, nos quais ainda se percebe um vácuo de participação, como por exemplo o setor de infra-estrutura; e, ainda, o combate à corrupção no sistema político, que atuaria na corrosão desses dois fatores inicialmente destacados.

A corrupção atua duplamente, minando a possibilidade de governabilidade do poder executivo no modelo de presidencialismo de coalizão vigente no país, e tendo sido capturada pelos meios de comunicação que conformam a opinião pública, reintroduzindo um vigor participativo de tipo novo desde junho de 2013, na medida em que traz de volta às arenas participativas, setores que historicamente haviam se distanciado do espaço público (físico e virtual). Desse modo, conduz o tema numa perspectiva conservadora e superficial, engajada essencialmente em polarizações e que tem como resultado mais efetivo o enfraquecimento da democracia brasileira e das estruturas pluralistas vivenciadas no processo democrático.

O autor pontua o papel central da classe média, capturada pelo discurso midiatizado da corrupção, que passou de uma agenda positiva (no início das manifestações de junho de 2013, contra os aumentos das tarifas de transporte coletivo, o descaso da educação e da saúde públicas etc) para uma agenda negativa em relação à democracia. Em sua visão “é preciso criar novamente uma agenda positiva capaz de unir os setores que correm o risco de disputar maioria e capacidade de mobilização nas ruas. Um dos pontos desta agenda pode ser a ampliação dos direitos sociais e dos serviços ligados à saúde e educação, que é um dos poucos itens da agenda social do governo a que a classe média não se opõe”.

A análise de Avritzer, embora não aprofundada e muito pouco propositiva, destaca pontos importantes da situação atual do país, que em poucos dias viverá desfechos com impactos profundos nas próximas décadas. Portanto, o elenco de argumentos destacados pelo autor provoca o início de um debate que deve ter como ponto central o projeto de país que defenderemos e o limite inegociável  através do qual não se pode ultrapassar, sob pena de desmontar toda a estrutura de direitos conquistados em nossa recentíssima democracia.


*Gestora Cultural, Doutoranda em Políticas Públicas e Formação Humana (UERJ), Conselheira Municipal de Cultura do Rio de Janeiro (Economia da Cultura)

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Crise e patrimônio histórico

Em crise, Rio de Janeiro abandona seus bens históricos


Mauricio Thuswohl

Com déficit de R$ 19 bilhões previsto pelo governo para 2016 e em meio a uma crise financeira que culminou com o não pagamento dos salários de 137 mil aposentados e pensionistas do estado em abril, o Rio de Janeiro não tem tempo nem dinheiro para cuidar de seus bens culturais e históricos.

Passado um ano desde a formação, pela Comissão de Cultura da Assembleia Legislativa (Alerj), de um grupo de trabalho que reúne órgãos do governo estadual e de outros setores para discutir e propor soluções, ainda não foi executado um único projeto de restauração e preservação em 40 bens que foram identificados em situação de abandono parcial ou total pelo poder público. Tampouco há previsão orçamentária para levar adiante essa tarefa, em uma gestão que acaba de aprovar dotação suplementar de R$ 900 milhões para as obras de construção da Linha 4 do metrô.

A discussão sobre a degradação dos bens culturais e históricos fluminenses veio à tona após a criação, por meio de uma página na rede social Facebook, do movimento S.O.S. Patrimônio­, que reúne museólogos, historiadores, arquitetos e artistas, além de outros interessados na restauração dos equipamentos abandonados. De um levantamento sugerido pelo grupo surgiu a lista inicial com 40 monumentos da capital e do interior que necessitam de cuidados imediatos.

A lista foi entregue em abril do ano passado ao deputado estadual Zaqueu Teixeira (PDT), presidente da Comissão de Cultura. Nela estão itens de grande importância histórica, como o Convento do Carmo, o Museu do Primeiro Reinado e o Museu da Cidade, além de conjuntos arquitetônicos como o Largo do Boticário e o Campo de Santana, entre outros.

O Grupo de Trabalho sobre Patrimônio Cultural formado na Assembleia tem a participação de representantes do Ministério da Cultura e da Secretaria Estadual de Cultura, além de órgãos como o Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac), o Instituto Rio Patrimônio da Humanidade (ligado à prefeitura), o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram) e a Fundação Parques e Jardins. De julho a novembro de 2015 foram realizadas cinco reuniões, e a lista de bens abandonados já ultrapassa 200 itens. Existe a previsão de que no segundo semestre sejam retomados os trabalhos para concluir as propostas levantadas pelo GT, com posterior realização de uma audiência pública. Mas, diante da crise financeira e da falta de empenho dos órgãos responsáveis, a expectativa de que alguma melhoria aconteça de fato é praticamente nula.

Água abaixo

“A formação do grupo de trabalho foi uma grande perda de tempo, não foi à frente, não deu em nada. Na prática, nenhum órgão de nenhuma instância se mexeu, não houve nenhum esforço. A Comlurb (Companhia Municipal de Limpeza Urbana), que seria responsável pela limpeza dos equipamentos, e o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), que seria responsável pela restauração, nem sequer compareceram às reuniões. Isso é uma grande tragédia cultural, pois estamos perdendo nossa riqueza, nossa história está indo por água abaixo. É muito triste”, afirma o guia de turismo Alberto Cardoso, integrante do S.O.S. Patrimônio e um dos responsáveis pela elaboração da lista de bens abandonados.

Na avaliação de Zaqueu Teixeira, a crise financeira vivida pelo estado e a decorrente imobilidade dos órgãos executivos explicam o insucesso da iniciativa. “As ações de preservação do patrimônio estadual fazem parte dos recursos disponibilizados para a Secretaria de Estado de Cultura, que tiveram cortes em torno de 42% desde o início de 2016, dentro do já parco recurso­. Parte das ações é articulada com o governo federal, que também passa por limitações de apoio. Logo, o quadro para o ano de 2016 é complexo”, diz o deputado.

A Assembleia, segundo Zaqueu, procurou fazer a sua parte. “O trabalho do Legislativo consiste na elaboração e melhoria das legislações e dispositivos legais e na fiscalização das ações do Executivo. O Inepac, no entanto, nos apresentou um quadro do seu funcionamento que é de poucos técnicos, apesar do excesso de vontade”, diz. Já a Secretaria de Cultura tem outra explicação para a falta de resultados do Grupo de Trabalho. “Até agora, o Inepac não recebeu nenhum projeto por parte do GT da Alerj”, afirma a secretária Eva Doris Rosental, por intermédio de sua assessoria.

Assessora especial da Comissão de Cultura, Morgana Eneile aponta a falta de eficiência dos órgãos estaduais como um problema que dificulta a preservação dos bens culturais no Rio de Janeiro. “Uma conclusão a que se chegou no GT é que precisa haver um canal de denúncia que não passe só pelo Inepac. O governo estadual se envolveu, foi a todas as reuniões. Só que o Inepac nem é um instituto de fato, é uma superintendência, não tem uma estrutura própria separada.”

Outro problema, diz Morgana, é a falta de recursos. “O ­Legislativo não pode demandar nada que traga custos para o Executivo. Um projeto de lei que passa, por exemplo, por aumento da estrutura não pode ser iniciativa nossa, tem que ser do Executivo. Ao mesmo tempo, como o Executivo pode demandar a criação de um cargo, um único que seja, para a área do patrimônio numa crise em que ele não consegue sequer pagar os salários dos servidores de carreira?”, questiona.

O S.O.S. Patrimônio, no entanto, considera que o abandono dos bens históricos e culturais do Rio vem de muito antes da crise atual. “O problema não é o déficit, é a falta de vontade pura e simples, é o desprezo pela história e pela cultura”, diz Alberto Cardoso. “Isso é um traço de política de Estado porque a cultura não é contemplada pelo governo. Se a educação, a saúde e o saneamento não são contemplados, a cultura é que não iria ser. No campo cultural o Brasil só não deve ficar atrás do Estado Islâmico. Só eles devem tratar pior os monumentos.”

Novas leis

Considerada fundamental, a adoção de uma nova legislação para garantir uma melhor preservação dos bens culturais e históricos também não prosperou. “Tínhamos a esperança de que, a partir dos trabalhos do GT, saísse um projeto de lei que criasse uma brigada do patrimônio”, acrescenta Cardoso. Este conceito já existe em outros países e funciona como uma brigada de incêndio de uma empresa.

“São pessoas que passam por um treinamento básico e técnico sobre o patrimônio histórico, ministrado pelos órgãos que cuidam dos bens, e que têm a permissão de fazer intervenções imediatas. Se, por exemplo, existe um patrimônio em risco iminente de desabar, a brigada pode atuar com respaldo legal”, compara. “Hoje em dia, quem limpar um monumento do patrimônio histórico no Rio é incurso no crime de dano ao patrimônio, o que é um absurdo. Então, ninguém cuida, porque se cuidar vai preso. O que a gente está tentando é normatizar essa lei. Essa seria uma vitória, mas para isso é preciso que a Assembleia Legislativa se mexa, e a ­Assembleia não se mexe. No atual momento político, a cultura foi totalmente relegada.”

Uma nova lei geral do patrimônio é outro sonho distante. “Não conseguimos consolidar um projeto de lei. Chegamos ao final do ano passado com a possibilidade de ter um novo texto de legislação patrimonial, mas o Estado foi contra. Isso acabou tomando muito tempo. De certa forma a gente parou no meio do caminho após compilar tudo e atualizar as questões que foram demandadas em uma nova lei do patrimônio”, diz Morgana Eneile. Enquanto a lei não sai, avalia a assessora da Comissão de Cultura, alguns paliativos podem ser adotados. “Um dos resultados que esperamos do GT é aprovar já na próxima reunião um projeto de lei que seja uma espécie de disque-denúncia do patrimônio.”

Segundo o deputado Zaqueu Teixeira, a busca por uma nova legislação prossegue em 2016. “O Grupo de Trabalho se pautou por soluções para além das ações do Executivo, buscando analisar possibilidades de dar visibilidade ao patrimônio e também fazer a revisão das leis existentes. Foi iniciado um debate sobre a revisão da legislação atual, que data da década de 1970, e cogitada a abertura de novas ações, como a intervenção da sociedade civil no cuidado com o patrimônio e na fiscalização deste.”

Pessimismo

Para Morgana Eneile, “os resultados não se deram necessariamente em relação a um monumento restaurado” porque é preciso uma política pública com a participação efetiva dos diversos atores envolvidos. “Não basta o desejo de um patrimônio público por parte de quem o valoriza. Por isso, o trabalho do GT acabou se tornando tão complexo de resolver. Listamos um conjunto de ações, mas nenhuma delas se tornou concreta não porque não tenha como ser concretizada, mas porque são coisas difíceis de serem resolvidas do ponto de vista orgânico. Isso é um trabalho que vai levar tempo, não vai ser executado no tempo que a gente gostaria”, afirma.

O pessimismo dos envolvidos pode ser medido pelas palavras de Alberto Cardoso. “Desde o início, eu sabia que não seria feito nada. A realidade no Rio é uma tragédia, ninguém se sensibiliza. Uma cidade que constrói uma ciclovia por R$ 45 milhões que mais parece uma pinguela e cai em três meses matando gente mostra o desprezo pelas leis, pela ética, pela vida humana. Nesse contexto, nosso passado não vale nada, a cultura não vale nada. Estão deixando tudo ser destruído porque as verbas públicas vão todas para o lazer e o esporte, mais nada. Quando chegar a Olimpíada, o que nós teremos para mostrar aos estrangeiros em termos de cuidado com o nosso patrimônio?”, indaga.
Exemplos do abandono

Cardoso dá alguns exemplos de como a situação de abandono dos bens históricos e culturais do Rio de Janeiro se agravou nos últimos meses, apesar da criação do Grupo de Trabalho para tratar desse tema na Assembleia Legislativa. “Um dos objetos que nós tanto queríamos preservar – o Palacete São Cornélio, no Catete – está num estado pior do que estava há um ano. Foi invadido, arrancaram as calhas pluviais. O imóvel está hoje em uma situação que, se chover, vai perder totalmente seu interior. Está de pé por um milagre.”

“O Convento do Carmo, na Praça XV, está com as janelas abertas desde um ano atrás”, acrescenta. O prédio teve construção iniciada em 1619, passou por várias reformas na era colonial e foi confiscado por dom João VI em 1808 para alojar sua mãe, Maria I. Em seguida, seria o embrião da Biblioteca Nacional ao receber os primeiros livros vindos da corte portuguesa.

“Nós pedimos ao governo para entrarmos no prédio ou para pagarmos alguém para ao menos fechar as janelas, mas o pedido foi negado. Já fizemos um estudo, houve um compromisso pela restauração, mas as janelas continuam abertas. O vento, as chuvas e os animais estão deteriorando o único prédio joanino da cidade.”

“O monumento ao General Osório, também na Praça XV, está sendo dilapidado vagarosamente”, completa o ativista. “Já arrancaram o gradil, as letras de bronze, a espada do general, as balas de canhão. Já tentaram roubar até os painéis laterais, e nada foi feito pelo poder público.”

Extraído de Rede Brasil Atual

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Reforma tributária e Previdência

A “farsa” chamada déficit da Previdência*


Wanderley Preite Sobrinho

Nem reforma política nem tributária. O mercado financeiro iniciou 2016 pressionando o governo federal a tirar do papel uma reforma da Previdência, capaz de preencher o rombo de R$ 124,9 bilhões no INSS previsto para este ano. Rombo? Professora de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Denise Gentil dedicou sua tese de doutorado para defender exatamente o oposto: o déficit previdenciário seria uma farsa provocada por uma distorção do mercado financeiro, que fecharia os olhos para um artigo da Constituição que exige participação da União na composição da Seguridade Social, da qual a Previdência faz parte. “Por essa metodologia, houve déficit de R$ 87 bilhões de janeiro a novembro de 2015”, diz.

Acontece que, quando as contribuições previstas pela Carta entram na conta, o déficit se transforma em superávit. O de 2014 foi de R$ 56 bilhões. “A pesquisa que realizei leva em conta todos os gastos com benefícios, inclusive com pessoal, custeio dos ministérios e com a dívida dos três setores: Saúde, Assistência Social e Previdência”, explica. Denise ironiza o “súbito” interesse do mercado financeiro pelo futuro da Previdência e não poupa de críticas o ajuste fiscal implantado pelo governo. “Dilma está fazendo o que os tucanos desejaram, mas não tiveram força política para fazer.”

Brasileiros – A sua tese de doutorado diz que existe uma “farsa contábil” que transforma em déficit o superávit do sistema previdenciário. Que farsa é essa?
Denise Gentil – O artigo 195 da Constituição diz que a Seguridade Social será financiada por contribuições do empregador (incidentes sobre a folha de salários, o faturamento e o lucro), dos trabalhadores e do Estado. Mas o que se faz é um cálculo distorcido. Primeiro, isola-se a Previdência da Seguridade Social. Em seguida, calcula-se o resultado da Previdência levando-se em consideração apenas a contribuição de empregadores e trabalhadores, e dela se deduz os gastos com todos os benefícios. Por essa metodologia, houve déficit de R$ 87 bilhões de janeiro a novembro de 2015. Pela Constituição, a base de financiamento da Seguridade Social inclui receitas como a CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido), Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social) e as receitas de concursos de prognóstico (resultado de sorteios, como loterias e apostas).

De quanto foi o superávit da Seguridade Social no ano passado?
Quando essas receitas são computadas, obtém-se superávit de, por exemplo, R$ 68 bilhões em 2013 e de R$ 56 bilhões em 2014. Mas essa informação não é repassada para a população, que fica com a noção de que o sistema enfrenta uma crise de grandes proporções e precisa de reforma urgente. Há uma ideia de insolvência e precariedade generalizada que, no caso da Previdência, não corresponde à realidade.

Então por que tanta pressão por reforma?
O objetivo é cortar gastos para dar uma satisfação ao mercado, que cobra o ajuste fiscal. Nada é dito sobre os gastos com juros, que entre janeiro e dezembro de 2015 custaram R$ 450 bilhões, o equivalente a 8,3% do PIB. Ocorre que o governo fez enormes desonerações desde 2011. Em 2015, chegaram a um valor estimado em R$ 282 bilhões, equivalente a 5% do PIB, sendo que 51% dessas renúncias foram de recursos da Seguridade Social. Essas desonerações não produziram o resultado previsto pelo governo, que era o de elevar os investimentos. Apenas se transformaram em margem de lucro.

Em 50 anos, o volume dos inativos corresponderá a mais da metade da população brasileira, segundo o IBGE. Mesmo assim não é necessária alguma mudança na lei para garantir aposentadoria no futuro? 
É incrível que a burocracia estatal e uma parte da sociedade (o “mercado”) se preocupem tanto com o que acontecerá daqui a 50 anos. Subitamente, elas foram acometidas por um senso de responsabilidade com o futuro que não dedicam à educação, segurança, saúde… Só ocorre com o futuro da Previdência. Não é suspeito? O que precisamos, aqui e agora, é incluir um contingente enorme de pessoas que não têm acesso à Previdência. Aproximadamente 43% da população economicamente ativa vive sem direito a auxílio-acidente, seguro-desemprego, aposentadoria, pensão. A população envelhecerá, mas o que precisaremos não é de uma reforma previdenciária, mas de uma política macroeconômica voltada para o pleno emprego e que gere taxas elevadas de crescimento. É também necessário políticas de aumento da produtividade do trabalho com investimentos em educação, ciência, tecnologia e estímulos à infraestrutura. Esses mecanismos proporcionarão a arrecadação para o suporte aos idosos. Cada trabalhador será mais produtivo e produzirá o suficiente para elevar a renda e redistribuí-la entre ativos e inativos. Não podemos ficar presos a um determinismo demográfico.

Como estabelecer uma idade mínima de 65 anos para a aposentadoria em um país onde um trabalhador com mais de 40 anos é considerado velho?
A idade mínima que o governo quer instituir é para as aposentadorias por tempo de contribuição (hoje de 30 anos para as mulheres e 35 anos para os homens), que representam 29% das concessões. Ocorre que estes normalmente começaram a trabalhar cedo. Sacrificaram seus estudos, ganham menos, têm saúde mais precária e vivem menos. Essas pessoas formam dois grupos. Os que se aposentam precocemente acabam voltando a trabalhar e a contribuir para o INSS; não são um peso para a União. Outros que se aposentam mais cedo o fazem compulsoriamente porque não conseguem manter seus empregos, na maioria das vezes por defasagem entre os avanços tecnológicos e sua formação ultrapassada, ou pelo aparecimento de doenças crônicas que certos ofícios ocasionam. Estes já são punidos pelo fator previdenciário, que reduz o valor do benefício. Tratar a todos como se o mercado de trabalho fosse homogêneo ao criar idade mínima é injusto e cruel, principalmente numa economia em recessão.

Defensores da reforma pedem que a idade mínima para se aposentar seja a mesma entre homens e mulheres. Como exigir igualdade de tratamento na concessão de benefícios se a mesma igualdade não existe no mercado de trabalho?
Concordo. A Constituinte de 1988 visou compensar o salário menor e a dupla jornada de trabalho da mulher. Levou em consideração o fato de ela cuidar das crianças e dos idosos da família e de ter uma jornada muito superior a dez horas de trabalho diário. Esse desgaste, que compromete a saúde, teria que ser compensado com regras mais brandas de aposentadoria. E, de fato, as estatísticas mostram que as mulheres vivem mais que os homens, mas sofrem muito mais de doenças crônicas a partir dos 40 anos. Vivem mais, mas vivem pior.

Não é aconselhável uma reforma na aposentadoria de deputados e senadores?
As regras para essas aposentadorias foram alteradas. É semelhante às regras previdenciárias do servidor público federal. Para o recebimento integral, exige 35 anos de contribuição e 60 anos de idade sem fazer distinção entre homens e mulheres. Mas a conta sempre ficará para os trabalhadores do setor privado, que já sofreram uma minirreforma da Previdência no apagar das luzes do primeiro governo Dilma, com a revisão das pensões por morte, com as mudanças no seguro-desemprego e no abono salarial, no auxílio-doença, e, muito provavelmente em breve, haverá revisão nas aposentadorias especiais. Isso tudo adicionado à mudança na Previdência dos servidores públicos que aconteceu em 2012.

Surpreende que as mudanças tenham vindo em um governo de esquerda?
O governo Dilma está fazendo o que os tucanos desejaram, mas não tiveram força política para fazer. A esquerda hoje vive o constrangimento enorme de ter que apoiar um governo desconcertante, retrógrado, privatista, conservador até a medula, que ataca os direitos sociais conquistados com muita luta por sua própria base de apoio. Um dia vai às ruas contra oimpeachment. No dia seguinte, vive um pesadelo.Tem que se posicionar contra tudo o que o governo propõe no campo do ajuste fiscal. O que realmente quer essa militância de um governo que só pede apoio para se livrar do impeachment sem dar nenhuma contrapartida?

Extraído de Brasileiros

quinta-feira, 17 de março de 2016

Estado Democrático de Direito

(Mal)dito instante*



Gisálio Cerqueira Filho e Gizlene Neder


O recente pedido de prisão preventiva de Luiz Inácio Lula da Silva precipita os acontecimentos, encurta o tempo histórico e converte a conjuntura política em ‘conjuntura do instante’.

O Brasil vive um momento dramático, sem maiores exageros. Os cientistas políticos ultimamente distinguem o instante, diferenciando-o das análises estruturais da conjuntura.

Nesta pesam os aspectos econômicos, políticos, jurídicos, históricos. No instante (político) pesa um fato qualquer capaz de galvanizar corações e mentes já puxadas para acontecimentos que por si só são desoladores (desemprego, inflação, crise do PIB, decréscimo da atividade econômica, crise política etc.).

Na atualidade brasileira, o momento sobressai pela potência dos fatores envolvidos: a corrupção, chamada ontem de “mar de lama” (Governo Vargas) e a “subversão da ordem” (Governo João Goulart), para ficarmos nos últimos 70 anos, justificaram as intervenções de 1954 e 1964.

De fato, elas esconderam o quanto as forças populares e os pobres capitaneados por Getúlio Vargas (PTB), Leonel Brizola (PTB, depois PDT) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT) agregaram legitimidade à democracia brasileira.

Nem sequer concluímos a transição do regime militar para o Estado Democrático de Direito e já há aqueles que postulam nas ruas, na mídia, e no sistema judiciário, o afastamento peremptório dos pobres: nada de bolsas-família e correlatas, nada de pobres nas universidades, nada de políticas sociais inclusivas, nada de acesso dos brasileiros menos aquinhoados ao sistema de crédito e menos ainda ao mercado consumidor, nada de direitos para empregadas domésticas, nada de manutenção ou extensão de direitos, sejam previdenciários, sejam trabalhistas; nada de educação fundamental universal de tempo integral e laica etc. etc.

André Singer diz que soluções que deixam a base da sociedade sem opção têm voo curto (alguns cientistas sociais falam em “voo de galinha”, voo baixo e curto para contrastar com “voo de águia”, longo e altaneiro). E é para este atoleiro que o tradicionalismo, o elitismo e o conservadorismo das forças políticas brasileiras querem levar os brasileiros pobres e remediados.

Mas isso não é tudo. País de bacharéis, acabamos por encontrar na judicialização dos conflitos sociais uma suposta solução para a resolução do Conflito. Cada vez mais o aparelho judiciário é convocado a agir, numa doce ilusão que tudo será resolvido nesta instância. Que responsabilidade decisória para juízes, desembargadores, ministros dos tribunais superiores!…

Neste contexto, há de incidir a inflexão do instante político brasileiro, pois o recente pedido de prisão preventiva de Luiz Inácio Lula da Silva precipita os acontecimentos, encurta o tempo histórico e converte a conjuntura política entendida nos termos tradicionais em “conjuntura do instante” (político), como sugere Javier Cercas no seu livro “Anatomia do instante” sobre a transição política na Espanha, então ainda fortemente influenciada pelo “franquismo”.

Não se trata apenas de uma demanda por prisão preventiva que pede uma resposta com certa urgência, muito menos da discussão sobre a aceitação do processo propriamente dito com relação à imputabilidade penal por lavagem de dinheiro e falsidade ideológica.

A questão aqui é, como sugere o jurista Joaquim Falcão, o debate, correlato àquele da saída do franquismo em Espanha, com relação ao livre direito de expressão e manifestação que o cidadão tem no Estado Democrático de Direito. Ou ainda do efetivo direito à liberdade de associação. Inclusive de usar o patrimônio político (seja nacional ou internacional) em sua própria defesa fora dos autos?

Inspiremo-nos no exemplo da Turquia contemporânea no que concerne à relação do Estado com a imprensa. Ou pensamos que a imprensa hegemônica pode ser a única detentora do direito à liberdade de imprensa traduzindo o pensamento único na economia para o campo da comunicação? “Prudência e caldo de galinha não fazem mal a ninguém”; acautelemo-nos todos, pois “pau que bate em Chico bate em Francisco”.

Ainda que estejamos falando da “anatomia” de um instante singular, não podemos nos resignar ao exclusivo dos cliques dos promovidos pelas novas tecnologias de informática e redes sociais. Mas elas devem ser levadas em conta, e não devemos deixar de lado as novas gerações; aquelas que não viram 1954, 1964, 1988. Vamos à História para entender melhor o abismo a que as forças conservadoras estão empurrando o país.

Aqui, uma primeira advertência: uma das tarefas de maior empenho do regime ditatorial civil-militar dos anos 1960-70 foi a construção do PENSAMENTO ÚNICO.

Trata-se de uma intervenção institucional profunda, mesmo que, como era de se esperar, não tenha sido plenamente exitosa; caso contrário, nem teríamos a reorganização do campo democrático plural, divergente e vigoroso como temos hoje.

O pensamento único, monolítico, fundado no autoritarismo moderno (desenvolvimentista, nacionalista e empreendedor; envolto na ideologia da segurança nacional), foi esculpido cuidadosamente nos currículos de formação estratégica como: a Escola Superior de Guerra (ESG), as Escolas de Alto Comando e Estado Maior da Forças Armadas, as Academias Militares, inclusive das Polícias Militares, as Faculdades de Direito, as Faculdades de Comunicação, e as de Educação.

Identificar e reconhecer este fato é importante para entendermos como um esforço de democratização das instituições policiais feito pelos constituintes do campo democrático em 1988, que criou o Ministério Público para acompanhar, conter os arbítrios do judiciário e das polícias, torna-se ele próprio instrumento de arbítrio em que as práticas jurídicas antigas (do Antigo Regime, onde estava presente a processualística da Inquisição) estão sendo atualizadas e apropriadas na conjuntura presente e produzindo efeitos neste exato instante político).

Esta prática implica primeiro julgar (o juiz, o policial ou o promotor chegarem a um veredicto) e depois buscar as provas (ver Carlo Ginzburg: “O Juiz e o Historiador. Anotações à Margem do Caso Sofri”. Nele, Ginzburg analisa a lógica processual criminal contra um militante das Brigadas Vermelhas. Sua análise identifica, em pleno século XX, a permanência dos procedimentos dos tempos da Inquisição).

Mas onde está o PENSAMENTO ÚNICO no campo jurídico brasileiro? Aí entra a história das Faculdades de Direito no Brasil. Desde sua criação, em 1827, nos marcos da apropriação do pragmatismo político pombalino, de inspiração benthamiana, as duas Faculdade de Direito (uma no norte, em Olinda, depois Recife; outra no sul, o Largo São Francisco em São Paulo) apresentaram variações políticas que permitiam escolhas políticas, ideológicas e filosóficas divergentes.

A Escola do Recife abria-se para atualizações e apropriações da Ilustração. A Academia de São Paulo reproduziu o autoritarismo e o pragmatismo de forma mais fechada, politicamente. No início da República, a intelligentsia do Recife desloca-se para o Rio de Janeiro e se apresenta na formação das Faculdades de Direito criadas na primeira metade do século XX.

Os juristas da Capital Federal atuavam nos dois principais centros de formação universitária: a Faculdade Nacional de Filosofia e a Faculdade Nacional de Direito. Com o Golpe Civil-Militar de 1964, não ficou “pedra sobre pedra” nas duas faculdades (Nacional de Filosofia e Nacional de Direito).

O PENSAMENTO ÚNICO, do Largo São Francisco em São Paulo, e o seu autoritarismo, tornaram-se prevalecente, hegemônico em todo o país.

O mesmo ocorreu na Academia Militar de Agulhas Negras; o pensamento militar inspirado na Escuela de las Americas, mantida no Panamá pelos EUA para formar militares latino-americanos (aqueles que deram os golpes nos anos 1960-70) impôs-se como PENSAMENTO ÚNICO nos meios militares.

Talvez o que diferencie a conjuntura atual e, sobretudo, o instante (político) em relação a 1964, seja, quem sabe, a clareza da oficialidade, seja a postura profissional, pois no plano internacional a estratégia de desestabilização política de governos contrários aos interesses norte-americanos e europeus tem sido a declaração de guerras (Iraque, Afeganistão, Líbia, Ucrânia, Síria, por exemplo).

E também certa consciência de que o que as classes dominantes querem, no momento, é fazer das forças armadas meros capitães-de-mato para contenção das chamadas classes perigosas – os pobres que as elites querem afastar da política.

Em relação à formação universitária em Comunicação Social, há que se lembrar que sua criação e designação nasceram com a reforma universitária de 1969, conhecida como Reforma Passarinho.

Do mesmo modo, altos investimentos foram aplicados para a formação no campo dos estudos sobre Educação (Filosofia e Psicologia), tendo em vista a erradicação do escolanovismo, de Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro, para que o PENSAMENTO ÚNICO contasse com o forte apoio do campo religioso, especialmente do campo católico, que fez oposição por décadas a fio (desde 1930) ao ensino público de qualidade, laico, em horário integral. Esta luta está em curso e subjaz ao instante que vivemos.

Por tudo isso, (mal)dito instante… pois o Brasil está vivo e se mexe, uma parte considerável de brasileiros não quer confusão, nem ódio, quer sim trabalhar e participar para a grandeza de todos e todas. Brasil bem dito. Não vamos jogar fora esse patrimônio.

*Extraído de Theotonio dos Santos

quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação

Florestan Fernandes continua a ter razão*


Zacarias Gama**


A Presidente da República Dilma Rousseff acaba de sancionar a Lei nº 13.243, de 11 de janeiro de 2016, que dispõe sobre estímulos ao desenvolvimento científico, pesquisa, capacitação científica e tecnológica e à inovação. O autor do Projeto de Lei foi o deputado federal Bruno Araújo (PSDB-PE) que presidiu a Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara dos Deputados em 2011. Um Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação era esperado há muito tempo pela comunidade de cientistas brasileiros, ansiosa por “medidas de incentivo no ambiente produtivo, com vistas à capacitação tecnológica, ao alcance da autonomia tecnológica e ao desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional do País”.

Os princípios em que se baseia o Marco Legal não apenas visam a promoção das atividades científicas e tecnológicas estratégicas, mas também a continuidade dos processos de desenvolvimento científico; redução das desigualdades regionais; espraiamento das atividades científicas pelo território nacional; promoção da cooperação entre os setores público e privado e entre empresas; estímulo à atividade de inovação nas instituições científicas e nas empresas; promoção da competitividade empresarial interna e externamente; incremento da capacidade operacional, científica, tecnológica e administrativa das instituições científicas, tecnológicas e de Inovação (ICTs); desburocratização e simplificação de procedimentos para a gestão de projetos de ciência, tecnologia e inovação; e apoio, incentivo e integração dos inventores independentes às atividades das ICTs e ao sistema produtivo.

Nas bases em que foi sancionado, sua justificativa é a necessidade de incrementar o desenvolvimento científico, tecnológico e de inovação do País e à crise de financiamento vivida pelas agências governamentais de fomento. A abertura à iniciativa privada na área de ciências, tecnologia e inovação, conforme os cânones privatistas do PSDB, deverá se traduzir em substantivos aportes de recursos financeiros e tecnológicos, permitindo que o País nominalmente se insira no que está sendo chamado de Sociedade e Economia do Conhecimento. Mas, como era de esperar há perversidades e entreguismos aparentes, aliás bem característicos do modus operandi deste partido político.

A primeira e mais visível tem a ver com a exclusiva prioridade à ciência, tecnologia e inovação e o consequente alheamento das demais áreas do conhecimento, condenando-as a estados de incerteza e indefinição. Em sua redação ficou parecendo que a ciência, tecnologia e inovação prescindem de qualquer humanidade. A história, entretanto, nos mostra que a desumanização da ciência pode gerar exclamações trágicas como as do físico Julius Robert Oppenheimer (1904 –1967) após o sucesso de sua bomba termonuclear: “Agora eu me torno a morte, o destruidor de mundos”. Mahatma Ghandi, em sua sabedoria, também já nos dizia que a ciência sem humanismo é um pecado capital produtor de injustiças sociais.

No Brasil, lamentavelmente a tendência de desumanização da ciência anda a passos largos. As Estratégias Nacionais de Ciência, Tecnologia e Inovação para o período 2012 – 2015, divulgadas pelo Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT, 2012) e aqui tomadas como exemplo, consideram o ser humano apenas como capital social destinado a engrossar os recursos compassivos para o desenvolvimento nacional. O foco que coloca na sociedade visa diminuir as desigualdades e elevar bem-estar social e faz parecer que o objetivo é a construção de um “Admirável Mundo Novo”, que à semelhança daquele pensado por Aldous Huxley também se edificaria essencialmente científico e harmonizado com as leis e regras sociais, pouco se importando com o distanciamento de vários princípios éticos e de valores morais. Como no mundo de Huxley, o soma, ou outra droga alucinógena qualquer, é que diminuiria o sofrimento e a infelicidade; Shakespeare, ao que tudo indica, ao mesmo tempo tenderia a ser uma coisa exótica e própria de alguns selvagens.

Outro problema certamente mais grave é a privatização da produção científica, tecnológica e inovadora. A abertura das nossas instituições ICTs, parques e polos tecnológicos à entrada de empresas privadas ávidas de lucro, se de um lado garante os recursos financeiros e materiais para o desenvolvimento científico e tecnológico do País, de outro facilita que tais empresas se utilizem do capital intelectual das ICTS brasileiras e retenham para si a propriedade e a titularidade intelectual sobre os resultados ainda que na forma da legislação corrente. Não é insensato pensar o risco de vivermos um ciclo de colonização da nossa produção de conhecimentos pelos centros orgânicos do capitalismo mundial. Ajuizar que tais empresas investirão no desenvolvimento de ciência, tecnologia e inovação de modo a contribuir para o desenvolvimento independente e sustentável do Brasil é de uma ingenuidade pueril. As inversões estrangeiras servirão antes à acumulação de riquezas nos centros orgânicos do capital e à manutenção da nossa dependência.

O Marco Legal poderia ter mais cores nacionais. Por que não ser prioritariamente indutor do desenvolvimento científico, tecnológico e inovador do Brasil contando com a cooperação das forças sociais existentes? Por que não comprometer a área com a modernização, desenvolvimento e fortalecimento País, levando-o a se mover independente pelo conhecimento?

Ora, sabidamente as nossas ICTs, parques e polos tecnológicos têm múltiplos objetivos e fins, nem todos, porém, podem ser redutíveis às estreitas percepções do mundo capitalista. Assim, vale então perguntar: por que não se insurgir contra a apropriação dos conhecimentos científicos, tecnológicos e de inovação pela propriedade privada, na qual se funda o capital? Por que se tornar basicamente um facilitador do vigoroso processo de privatização dos recursos humanos e do patrimônio científico público? O Sindicato Andes-SN, ao criticá-lo, observa inclusive que em médio prazo é possível que o conhecimento produzido nas ICTs brasileiras sequer possa ser publicado por seus desenvolvedores, visto que serão patenteados e controlados por financiadores privados.

A análise desse Marco Legal nos remete inexoravelmente a Florestan Fernandes e aos padrões que enunciou para explicar a dominação externa na América Latina. O querido e saudoso Mestre continua a ter razão, na medida em que permanecemos incapazes de impedir a nossa incorporação dependente, desta vez em uma Sociedade e Economia do Conhecimento. Por incrível que possa parecer a institucionalização de nossa produção científica prossegue sendo realizada com a exclusão permanente dos interesses nacionais e sacrifício de um estilo democrático de vida.

Ainda insistimos em estabelecer “uma conexão estrutural interna para as piores manipulações do exterior” (FF, 2008).

*Extraído de Carta Maior

**Professor Associado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Membro do corpo docente do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH) e do Comitê Gestor do Laboratório de Políticas Públicas (LPP).