quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Tempos sombrios

La idiotización de la sociedad como estrategia de dominación*

 

  La gente está imbuida hasta tal extremo en el sistema establecido, que es incapaz de concebir alternativas a los criterios impuestos por el poder.


Por Fernando Navarro

Para conseguirlo, el poder se vale del entretenimiento vacío, con el objetivo de abotagar nuestra sensibilidad social, y acostumbrarnos a ver la vulgaridad y la estupidez como las cosas más normales del mundo, incapacitándonos para poder alcanzar una conciencia crítica de la realidad.

En el entretenimiento vacío, el comportamiento zafio e irrespetuoso se considera valor positivo, como vemos constantemente en la televisión, en los programas basura llamados “del corazón”, y en las tertulias espectáculo en las que el griterío y la falta de respeto es la norma, siendo el fútbol espectáculo la forma más completa y eficaz que tiene el sistema establecido para aborregar a la sociedad.

En esta subcultura del entretenimiento vacío, lo que se promueve es un sistema basado en los valores del individualismo posesivo, en el que la solidaridad y el apoyo mutuo se consideran como algo ingenuo. En el entretenimiento vacío todo está pensado para que el individuo soporte estoicamente el sistema establecido sin rechistar. La historia no existe, el futuro no existe; sólo el presente y la satisfacción inmediata que procura el entretenimiento vacío. Por eso no es extraño que proliferen los libros de autoayuda, auténtica bazofia psicológica, o misticismo a lo Coelho, o infinitas variantes del clásico “cómo hacerse millonario sin esfuerzo”.

En última instancia, de lo que se trata en el entretenimiento vacío es de convencernos de que nada puede hacerse: de que el mundo es tal como es y es imposible cambiarlo, y que el capitalismo y el poder opresor del Estado son tan naturales y necesarios como la propia fuerza de gravedad. Por eso es corriente escuchar: “es algo muy triste, es cierto, pero siempre ha habido pobres oprimidos y ricos opresores y siempre los habrá. No hay nada que pueda hacerse”.

El entretenimiento vacío ha conseguido la proeza extraordinaria de hacer que los valores del capitalismo sean también los valores de los que se ven esclavizados por él. Esto no es algo reciente, La Boétie, en aquel lejano siglo XVI, lo vió claramente, expresando su estupor en su pequeño tratado Sobre la servidumbre voluntaria, en el que constata que la mayor parte de los tiranos perdura únicamente debido a la aquiescencia de los propios tiranizados.

El sistema establecido es muy sutil, con sus estupideces forja nuestras estructuras mentales, Y para ello se vale del púlpito que todos tenemos en nuestras casas: la televisión. En ella no hay nada que sea inocente, en cada programa, en cada película, en cada noticia, siempre rezuma los valores del sistema establecido, y sin darnos cuenta, creyendo que la verdadera vida es así, nos introducen sus valores en nuestras mentes.

El entretenimiento vacío existe para ocultar la evidente relación entre el sistema económico capitalista y las catástrofes que asolan el mundo. Por esto es necesario que exista el espectáculo vacuo: para que mientras el individuo se autodegrada revolcándose en la basura que le suministra el poder por la televisión, no vea lo obvio, no proteste y continúe permitiendo que los ricos y poderosos aumenten su poder y riqueza, mientras las oprimidos del mundo siguen padeciendo y muriendo en medio de existencias miserables.

Si seguimos permitiendo que el entretenimiento vacío continúe modelando nuestras conciencias, y por lo tanto el mundo a su antojo, terminará destruyéndonos. Porque su objetivo no es otro que el de crear una sociedad de hombres y mujeres que abandonen los ideales y aspiraciones que les hacen rebeldes, para conformarse con la satisfacción de unas necesidades inducidas por los intereses de las élites dominantes. Así los seres humanos quedan despojados de toda personalidad, convertidos en animales vegetativos, siendo desactivada por completo la vieja idea de luchar contra la opresión, atomizados en un enjambre de egoístas desenfrenados, quedando las personas solas y desvinculadas entre ellas más que nunca, absortas en la exaltación de sí mismas.

Así, de esta manera, a los individuos ya no les queda más energía, para cambiar las estructuras opresoras (que además no son percibidas como tales), ya no les queda fuerza ni cohesión social para luchar por un mundo nuevo.

No obstante, si queremos revertir tal situación de enajenamiento a que estamos sometidos, solo queda como siempre la lucha, solo nos queda contraponer otros valores diametralmente opuestos a los del espectáculo vacuo, para que surja una nueva sociedad. Una sociedad en que la vida dominada por el absurdo del entretenimiento vacío sea tan solo un recuerdo de los tiempos estúpidos en que los seres humanos permitieron que sus vidas fueran manipuladas de manera tan obscena.

*Extraído de AnnurTV

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

O ovo da serpente

Brasil, Bannon e Bolsonaro: alegoria antecipada em “O Ovo da Serpente.”*


Pedro Felipe Narciso

O ano é 1923, a Alemanha está devastada pelo cenário do Pós-Guerra e pela rapinagem de Versalhes. A economia está um caos e a inflação explode, um pacote de cigarros chega a custar 4 bilhões de Marcos. O desemprego, a fome e o desespero são normalizados como o cotidiano de milhões de alemães.

No coração desse país devastado está uma Berlim burlesca e decadente, por onde vagam prostituas, artistas, malandros, militares desempregados e toda sorte de gente sem esperança. É também por essa Berlim que flana o personagem principal de O Ovo da Serpente, filme de Ingmar Bergman. Trata-se de Abel, um trapezista judeu estadunidense que se mudara para a cidade com o seu irmão Max e com Manuela, a ex-esposa desse último.

O enredo é disparado com o suicídio de Max, o fato misterioso a ser resolvido pelo personagem principal e a problemática pela qual os acontecimentos subsequentes se desencadeiam. No entanto, embora tenha centralidade incontestável para a estória, essa não se desenvolve linearmente a partir de causas que produzem efeitos que, costurando-se, lançam luz sobre o enigma inicial, o suicídio. Trata-se de um filme de atmosfera, cuja proposta parece ser a de transmitir ao espectador a angústia de estar sem rumo, sem perspectiva e sem esperança.

A atmosfera dessa Berlim é construída pela ausência de linearidade, pela iluminação sombria e pelo desafio diário que os personagens enfrentam para obter recursos necessário à manutenção da vida e da, não menos importante, embriaguez que dê conta suportá-la. Nos diálogos diversos observa-se a proliferação do discurso paranoico de orientação antissemita e anti-bolchevique. A prostituição e a mendicância generalizam-se. A sensação é de desordem absoluta. Nas ruas hordas de soldados desempregados pelo fim da Guerra perseguem todo tipo gente. Os soldados empregados, identificados e solidários com seus ex-colegas, nada fazem perante as cenas de violência gratuita.

Após passar por esses cenários diversos de decadência e desesperança, Abel é convencido por Manuela a aceitar a ajuda do seu amigo e cliente, o Dr. Vérgerus, que, além de lhes emprestar um pequeno apartamento, arranja para Abel um emprego em sua clínica, onde esse executaria a monótona tarefa de organizar arquivos médicos secretos. É nessa nova situação, quando o enredo parece caminhar para lugar nenhum, que o mistério, como num estalo, se resolve. Abel percebe que o apartamento é monitorado por câmeras e que na parte dos fundos daquele encontra-se uma clínica abandonada, semelhante aquela em que ele trabalha como arquivista.

Após vencer o enfrentamento físico com o personagem anônimo que o observava pelos espelhos do apartamento, Abel vai até a clínica, encontrando-se na área restrita com o Dr. Vérgerus que, com uma calma psicopática, explica o que motiva a existência da clínica e da casa vigiada, revelando, também, as causas desconhecidas que levaram o seu irmão ao suicídio. Abel, assim como o seu irmão e Manuela estavam sendo observados como cobaias de uma série de experimentos psicológicos comportamentais. Esses experimentos têm como objetivo mensurar e controlar a relação entre os estímulos necessários de angústia capazes de produzir como resposta reações extremadas e irracionais, em que os sujeitos sejam levados “a um total desequilíbrio emocional, sejam despojados de suas defesas sociais, percam as inibições, vacilem como loucos e entre as mudanças rápidas de humor respondam com reações absurdas”. Dr. Vérgerus mostra alguns dos experimentos filmados para Abel, segue abaixo a transcrição da explicação de um deles:
 – Este é um experimento de resistência. Esta mulher de 30 anos se ofereceu para cuidar de um bebê de quatro meses com uma lesão cerebral que o fazia chorava dia e noite. Queríamos ver o que aconteceria a esta mulher normal e bastante inteligente se nós a fechássemos com um bebê que chorasse ininterruptamente. Como vê, depois de 12 horas ela ainda se controla perfeitamente. Entretanto, 24 horas depois podemos ver que está afetada. Sua compaixão pelo bebê doente desapareceu e se transforma em uma profunda depressão, que por sua vez, paralisa qualquer iniciativa. Ela abandona o bebê a sua sorte. Aqui podemos ver claramente que seu impulso por atacar o bebê amadureceu. Passaram-se seis horas antes de materializar suas intenções. Uma resistência extraordinária. Infelizmente, nossa câmera não conseguiu documentar o acontecimento em si.
 Após seguir com a sessão de filmes dos experimentos, o Dr. Vérgerus conclui,
 – Em um ou dois dias, talvez amanhã de manhã, o exército da Alemanha do Sul começará uma revolta comandada por um demente chamado Adolf Hitler. Será um fiasco descomunal. Herr Hitler carece de capacidade intelectual e de técnica e não sabe as forças tremendas com as que se enfrentará. Será arrasado, como um grande fiasco no dia em que desatar esta tormenta. Observe esta imagem. Observe toda esta gente. São incapazes de uma revolução. Estão muito humilhados, muito temerosos, muito oprimidos. Mas em dez anos os de 10 terão 20 e os de 15 terão 25. Eles terão herdado o ódio de seus pais, mas com a adição de seu idealismo e impaciência. Alguém se adiantará e colocará seus sentimentos em palavras. Alguém prometerá um futuro. Alguém fará suas exigências. Alguém falará de grandeza e sacrifício. Os jovens e inexperientes brindarão seu valor e sua fé aos cansados e indecisos.
 Ao fim, enquanto a polícia arromba a porta da clínica, Dr. Vérgerus se suicida tomando uma cápsula de cianureto. Adentrando o local, o inspetor de polícia noticia:
 – Herr Hitler falhou com seu golpe de estado em Monique. Foi um fiasco descomunal. Herr Hitler e seu bando subestimaram a força da democracia alemã.
 O filme é incrível em todos os sentidos, quase que nos transporta para a República de Weimar. O desencantamento absoluto, o cansaço e a ausência de perspectiva estão ali. Pela película transmite-se também uma contradição de sentimentos extremamente angustiantes e paralisantes, ao mesmo tempo em que se tem revolta, tem-se impotência; ao mesmo tempo em que se tem medo, tem-se a sensação de que nada pode piorar. O aspecto realístico do filme é impecável.

Observando então a radicalidade da situação de Weimar e o final trágico gestado ali é quase óbvio que não cabe comparação histórica com a situação que estamos vivendo. A variante germânica do fascismo só é comparável em brutalidade e violência com as campanhas coloniais contra os povos americanos, africanos e asiáticos. No entanto, curiosamente, o elemento ficcional, não histórico, do filme de Bergman é bastante pertinente se entendido como uma alegoria antecipada do momento em que estamos vivendo no Brasil de hoje. O Dr. Vérgerus, como relatado acima, conduzia pesquisas que mapeavam modalidades comportamentais mediante o estudo de grupos focais. Os estudos de Vérgerus tinham como base teórico-metodológica a orientação behaviorista, cujo princípio básico é identificar padrões de relação entre determinados estímulos e determinadas respostas, ou seja, sob determinadas condições e sob determinados estímulos obtêm-se, quase que invariavelmente, determinados comportamentos.

Poderia imaginar o Dr. Vérgerus que no futuro os grupos focais seriam substituídos por quase a totalidade da população? Poderia imaginar o Dr. Vérgerus que quase todas as pessoas morariam em casas cercadas por câmeras e sensores e voluntariamente quase que 24 horas por dia produziriam padrões de comportamento dando detalhes sobre localização, itens preferidos de consumo, estado de ânimo e exporiam em minúcias seus medos, fragilidades e desejos? Pois bem, esse cenário distópico que a ficção não se atreveu a imaginar é a realidade de todos os contemporâneos do Facebook, Twitter, whatsApp e afins.

Já é do conhecimento de todos que as informações produzidas pelos os usuários das redes sociais são vendidas por essas mesmas companhias para empresas especialistas em propaganda. Essas empresas, tais como a Cambridge Analytica, de Steve Bannon (o Dr. Vérgerus da vida real), cruzam essas informações traçando perfis psicológicos detalhados, podendo, assim, mapear esses perfis diferencialmente, produzindo estímulos personalizados para cada grupo. Alguns podem ser mais sensíveis ao “Kit-gay”, outros à “bolivarianização do Brasil”, outros, ainda, ao “direito de armar-se contra a bandidagem”. Por esses meios as fake-news são produzidas quase que por encomenda, adequando-se ao perfil do receptor das mensagens. É dessa produção personalizada e direcionada das falsas notícias que se deriva a fé inabalável dos seus consumidores e divulgadores espontâneos, o que anula qualquer possibilidade de convencimento pelo diálogo racional. Os crentes não acreditam somente porque estão sendo manipulados por uma força externa, mas porque querem e, sobretudo, porque precisam.

Esse fenômeno é explicado por Slavoj Zizek como sintoma de um impasse simbólico generalizado. O filósofo esloveno, seguindo pela tradição da psicanálise, entende que o mundo exterior se apresenta ao homem comum como uma fonte inesgotável de restrições e ameaças. Esse mundo externo, além de ameaçador, está cada vez mais complexo, descentrado, ininteligível e imprevisível, “tudo que é solido se desmancha no ar.” Portanto, o homem comum além de sentir-se ameaçado, não sabe sequer identificar a origem da ameaça, menos ainda é capaz de identificar os meios necessários para combate-la.

É nesse contexto que o discurso paranoico e simplificador cativa a sua audiência. Os medos são lidos de modo personalizado e a origem desses medos diversos é unificada como sendo consequência da existência de um ponto único, do qual emana toda a diversidade de males. Com essa operação de simplificação grotesca do real resolve-se o impasse simbólico das massas dispersas, afinal, basta eliminar aquele pontinho e toda a gama de medos, restrições e frustrações desaparece.

Agora tudo fica mais fácil, o real está dividido entre aqueles que são do bem e estão comigo e aqueles que estão com o ponto e contra mim. Qualquer argumentação que siga por outro caminho e tente demonstrar que, talvez, por acaso, o ponto não tenha responsabilidade sobre tudo o que se julgue desagradável, é entendido como mais uma manifestação malévola do ponto querendo confundir aqueles que são cidadãos de bem. Deriva-se disso o anti-intelectualismo que sempre acompanha essa massa carente e apaixonada.

Obviamente, o bom senso indica que as origens explicativas do fascismo tupiniquim têm outros elementos, inclusive, mais importantes que os destacados neste texto que não tem, sequer, a pretensão de explicar o fenômeno. No entanto, uma questão importante que merece ser frisada pela novidade que significa é o aparato técnico e científico de que dispõem atualmente os grupos obscurantistas que visam manipular o sentimento popular. O trabalho de militância via panfleto virou quase que trabalho artesanal se comparado ao trabalho científico desenvolvido por Bannon e seus assessores, que é de causar inveja até à imaginação de Bergman e ao seu inventivo e doentio personagem, o Dr. Vérgerus, que em uma das suas provocações finais adverte Abel:
 – Cômico, não é verdade, Abel? Algum dia poderá dizer isto a quem quer que lhe dê ouvidos. Ninguém vai acreditar em você!

*Extraído de Lavra Palavra

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Distopia brasileira

Neoliberalismo, distopias e Bolsonaro* 

Leda Paulani**

A eleição de Jair Bolsonaro para a presidência da república do Brasil deixa o mundo estarrecido. Seu estilo autoritário e agressivo, sua apologia à tortura, suas continuadas ofensas a determinados grupos ao longo de seus quase 30 anos de vida parlamentar (mulheres, negros, LGBTQs) e seu desprezo aos princípios democráticos são tão impressionantes que mesmo para um nome de destaque mundial da extrema-direita, como a francesa Marie Le Pen, ele causa repulsa: “suas declarações são inaceitáveis”, ela diz. Não por acaso, só Trump parece relevar tudo isso e louva, pelo Twitter, a conversa alvissareira que teve, em 30 de outubro, com o presidente eleito.
 
Considerando que o Brasil não é um país pequeno e sem importância no cenário mundial, bem ao contrário, e considerando, portanto, que essa eleição significa o voto de mais de 57 milhões de pessoas em alguém como Bolsonaro (ainda que esse contingente represente apenas 39,2% dos eleitores do país), cabe uma reflexão profunda e que mobilize todo o arsenal teórico à disposição para que se possa identificar as causas desse terremoto anticivilizatório. Evidentemente não é possível fazê-la no curto espaço de um artigo e, com certeza, independentemente do que possa vir a acontecer a partir de agora, esse resultado será discutido e estudado, analisado e dissecado por décadas a fio. É possível, contudo, antecipar alguns elementos, que podem jogar alguma luz em episódio tão sombrio.
 
Um fenômeno dessa magnitude nunca é isolado, de modo que não pode ser explicado mobilizando-se apenas variáveis relativas às questões sociais e políticas internas ao país. Além disso, o mundo é hoje cada vez mais integrado, seja por conta da forma que foi tomando o processo de acumulação de capital desde o início dos anos 1980, num sistema econômico que é hoje (depois da transformação capitalista da China) verdadeiramente mundial, seja pelo estupendo desenvolvimento das assim chamadas tecnologias de informação e comunicação (elemento, por sinal, de extrema importância no resultado das eleições brasileiras). Nosso primeiro olhar vai, portanto, para o cenário externo.
 
Depois de mais de três décadas de ascensão e difusão da cartilha e das políticas neoliberais mundo afora (como se sabe, mesmo países europeus geridos por longos períodos por partidos social democratas acabaram por sucumbir a essas políticas – e o Brasil comandado pelo Partido dos Trabalhadores tampouco foi diferente), o neoliberalismo parece ter chegado num ponto de saturação e sem ter entregue aquilo que prometera. No início dos anos 1980, as teorias da “repressão financeira” alegavam que a estrutura institucional herdada do pós-segunda guerra mundial – com seus controles, regras, tributos e quarentenas – era deletéria para o desenvolvimento, e que a liberalização financeira, ao tornar mais eficiente a alocação de capitais no globo, traria melhores tempos para todos os países, potenciando o crescimento. O mesmo se dizia da generalização da abertura comercial, pois que a economia mundial viria a ser então uma harmônica aldeia global, em que todos os países, beneficiados por suas vantagens comparativas mútuas, sairiam ganhando materialmente.
 
Mas o resultado dessas políticas, três décadas depois, foi o aumento da desigualdade (inclusive entre os países), o crescimento muito lento e o surgimento de um desemprego que tem características estruturais. Tudo isso piorou substantivamente com o advento da crise financeira internacional de 2008-09, que não só tornou ainda mais indigestos os resultados desse modelo, como, ao longo da última década e graças aos meios segundo os quais se tentou equacionar os problemas, aprofundou as contradições que estão em sua base. O voto antissistema é uma consequência imediata dessa situação. É por aí que devem ser explicados, a meu ver, a eleição de Trump nos Estados Unidos, o Brexit britânico e a ascensão de partidos e políticos de extrema direita em todo o planeta (Hungria, Polônia, Itália, Filipinas, Turquia, Bulgária, e agora, infelizmente, também o Brasil – que já estava nesse caminho, deve-se notar, desde o injustificável impeachment da presidenta Dilma em 2016 e o início do governo Temer). O cenário é distópico.
 
Cabe no entanto perguntar: por que o sentimento antissistema vem resultando majoritariamente numa aposta que parece antes contribuir para o aprofundamento do modelo que é o responsável pela geração dessa situação ruim e desguarnecida de perspectivas, do que no sentido contrário? É verdade que o voto antissistema também flui para esse último lado: Bernie Sanders quase se tornou candidato nas últimas eleições presidenciais americanas, Obrador venceu no México, temos a primavera socializante e alvissareira de Portugal e a surpreendente vitória de Jeremy Corbin no tradicional e ainda poderosíssimo Labour Party inglês. O predomínio, contudo, parece estar no primeiro movimento. Por que?
 
A resposta a essa pergunta passa por caminhos que vão além das variáveis e análises puramente econômicas e/ou políticas. É preciso aqui mobilizar os filosófos, os pesquisadores de costumes, os antropólogos urbanos, os sociólogos. Lendo Pierre Dardot e Christian Lavall, Nancy Fraser, Dany-Robert Dufour, Wolfgang Streeck, Naomy Klein, André Gorz dentre outros, vai sendo possível perceber que, na quadra histórica que se inicia ao final dos anos 1970, não foram apenas as máximas e as políticas neoliberais que ganharam proeminência: a vitória ideológica foi também retumbante.
 
A insistente pregação neoliberal, quase nunca desacompanhada do mote there is no alternative, foi transformando corações e mentes e instituindo, no ideário de boa parte da população, sobretudo daqueles mais negativamente afetados pela ascensão das políticas neoliberais, os valores da concorrência, do cada um por si, do self made man, do mérito próprio, do empresário de si mesmo, do cidadão como “cliente” do Estado. A cooperação, a solidariedade, a importância do coletivo, do comum, da comunidade, foram atirados nos desvãos da história junto com o muro de Berlim e os “velhos” e empoeirados expedientes do Estado-Nação, da sociedade de classes, das políticas universais, dos controles sociais/estatais impostos à sanha acumulativa. Como lembra Nancy Fraser, mesmo as chamadas pautas identitárias (mulheres, LGBTQs, minorias raciais) foram inteiramente capturadas pelo espírito the winner takes all. Não é de espantar que a reação às mazelas do mundo neoliberal, aprofundadas pela crise de 2008-2009, se virem “contra” o sistema na direção errada e acabem por fortalecê-lo, arrastando para os mesmos desvãos da história a própria democracia.
 
No caso da vitória de Bolsonaro somaram-se a esse espírito de época decorrente das quase quatro décadas de neoliberalismo, alguns elementos domésticos não menos importantes para o resultado funesto produzido em 28 de outubro. Entre 2003 e meados de 2016 (até o impeachment de Dilma Roussef) o Brasil foi governado pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Sob esses governos, a economia brasileira, apesar de continuar submetida, em boa parte do tempo, a uma política econômica de corte neoliberal, que beneficiava continuamente a riqueza financeira, floresceu e conseguiu resultados positivos impulsionados pela boa fase da economia mundial pré-crise e pelo efeito multiplicador dos massivos programas de renda compensatória (Bolsa Família), associados à substantiva elevação do valor real do salário mínimo. Contra o sentido neoliberal, esses governos também brecaram as privatizações e, a partir de 2006, deram forte impulso aos investimentos públicos. No mesmo sentido, a política externa “ativa e altiva” do país ao longo desse período recusou a ALCA, fortaleceu os BRICS e o Mercosul e retirou o país do costumeiro alinhamento direto com os interesses dos países centrais, EUA em destaque.
 
Apesar do sucesso em termos de crescimento, nível de emprego e redução da desigualdade, sem que os interesses dos muito ricos tivessem sido afetados, as elites do país, de feição ainda extremamente senhorial, nunca aceitaram o PT e sua maior liderança, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O sentimento de “perda” de poder se instalou e, no caso das classes médias altas, esse sentimento foi magnificado por conta das políticas públicas dos governos do PT, que colocaram os mais pobres em espaços antes exclusivos das elites: os aeroportos, as universidades, os shoppings mais chiques.
 
Assim, desde pelo menos 2005, iniciou-se, com a inestimável colaboração da grande mídia, uma implacável campanha de difamação e demonização do Partido dos Trabalhadores e de suas principais lideranças. Sempre ao abrigo da justa demanda social pelo combate à corrupção, o sistema judiciário do país, com o beneplácito das elites econômicas e dos partidos mais à direita, foi empreendendo uma “operação de limpeza” seletiva, que passou a “julgar” e punir apenas os políticos e partidos de esquerda, sobretudo do PT, enquanto os demais políticos e partidos continuavam a ser tratados com a habitual camaradagem. É nesse sentido que se deve entender a ação penal 470 (no processo conhecido como “mensalão”), o infundado impeachment da presidenta Dilma, a operação Lava-Jato, a juridicamente insustentável prisão de Lula no bojo da citada operação, e seu impedimento de concorrer às eleições – sendo o candidato de longe favorito e aparecendo com quase o dobro das intenções de voto de Bolsonaro no início do processo eleitoral (e isto mesmo com a determinação, duas vezes enviada ao governo brasileiro pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU, de que se garantisse a Lula o exercício de todos os seus direitos políticos).
 
No corpo a corpo com os eleitores que as forças democráticas do país empreenderam nas últimas semanas do segundo turno para tentar virar as intenções de voto em Bolsonaro, um dos argumentos que mais se ouvia era que o PT era sim o partido mais corrupto do país, porque afinal a maior parte dos políticos condenados era ou havia sido ligada ao partido. Mesmo argumentando que o PT, por qualquer critério que se escolha (políticos cassados, processados etc.) está sempre em 9º ou 10º lugar, aparecendo na frente dele a maior parte dos partidos de direita e aqueles que estão hoje no comando do país, sob o governo Temer, os eleitores continuavam desconfiados, preferindo continuar a crer na imagem do partido em que foram sendo doutrinados a acreditar por mais de uma década.
 
A crise econômica internacional, que atinge o Brasil a partir de 2011, ajudou a engrossar as críticas ao PT e a seus governos. Os movimentos de maio de 2013, iniciados por uma juventude de esquerda horizontalista e apartidária, tendo como foco reivindicações ligadas ao transporte público, foram rapidamente capturados pela direita, com o auxílio sempre determinante da grande mídia. A quarta vitória consecutiva do PT nas eleições presidenciais de 2014, que ainda assim acontece, detonou a operação conjugada do judiciário, grande mídia, empresariado e partidos de direita para usurpar o poder delegado a Dilma Rousseff pelo voto de mais de 54 milhões de brasileiros e pôr em marcha uma agenda fortemente neoliberal, que havia sido rechaçada nas urnas (privatizações, entrega do patrimônio natural do país, cortes nos direitos dos trabalhadores).
 
Os interesses do grande capital internacional, com destaque para o petróleo das camadas do pré-sal, também tiveram papel determinante. É hoje de conhecimento público o fato de magistrados brasileiros como Sérgio Moro, o todo poderoso juiz de primeira instância, comandante da operação Lava Jato, que quase destruiu a Petrobrás e a respeitada indústria de construção pesada do país, terem sido treinados nos Estados Unidos e apetrechados com os instrumentos e as ferramentas da chamada lawfare. Tampouco é por acaso que uma das primeiras medidas do governo de Temer foi a alteração de algumas regras do regime de exploração do pré-sal, buscando dar maior espaço para as grandes petroleiras mundiais.
 
Finalmente não se pode deixar de mencionar a relação despolitizada da população beneficiada pelas políticas implantadas pelos governos do PT com essas mesmas políticas e programas, por culpa, é preciso que se diga, do próprio partido. Combinada com a irrefreável ascensão das igrejas pentecostais e sua teologia da prosperidade (não estranha, muito ao contrário, ao referido ideário do neoliberalismo), essa despolitização foi decisiva para a aceitação totalmente acrítica do tsunami de fake news advindo da campanha de Bolsonaro contra o candidato do PT no segundo turno, Fernando Haddad – que ele incentivaria o incesto, que teria estuprado uma menina de 11 anos, para mencionar apenas duas das incontáveis mentiras sobre ele que foram sendo persistentemente propagadas por milhares de robôs, cujos links apresentavam como local de origem os EUA.
 
A dez dias da realização do segundo turno, a divulgação pela imprensa do financiamento desse ataque digital nas fechadas redes de whatsapp por dinheiro de caixa 2 proveniente de empresas, o que é proibido pela atual legislação brasileira e considerado crime eleitoral, deu alguma esperança de que o fascismo da campanha de Bolsonaro seria afinal derrotado, mas esse desfecho feliz não aconteceu. O juiz Sergio Moro, que disse que a corrupção destinada a caixa 2 de campanha eleitoral é ainda mais perniciosa do que a corrupção destinada ao enriquecimento pessoal porque constitui um ataque direto à democracia, acaba de aceitar o convite de Bolsonaro para ser o seu ministro da justiça. Não é preciso dizer mais.

*Extraído de Outras Palavras
** É formada em Economia pela FEA-USP e em Comunicação Social pela ECA-USP. Possui Doutorado em Teoria Econômica pelo Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade de São Paulo - IPE/USP (1992). É livre-docente junto ao Departamento de Economia da FEA-USP (2004). É professora do Departamento de Economia e da Pós-graduação em Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo - FEA/USP desde 1988 e professora titular na mesma unidade desde 2007. De janeiro de 2013 a março de 2015 foi secretária municipal de planejamento, orçamento e gestão da Prefeitura de São Paulo (gestão Fernando Haddad).