Políticas sociais e transformação da sociedade[1] - I/V*
Ladislau Dowbor
Entre
o cinismo pragmático e o idealismo ingênuo, já é tempo de se construírem as
pontes.
Poderíamos
deixar as coisas evoluir, e aguardar que a estabilidade macroeconômica nos
traga “naturalmente”, por assim dizer, mais empresas, mais investimentos, logo
empregos e salários, e com isto pagaríamos o “resto”, o social. Encontramos
nesta posição muita gente simplesmente inconsciente e ignorante da dimensão do
drama que se avoluma, e que vira as costas para a explosão da criminalidade, o
aumento do desemprego, a desorientação dramática da juventude, a fome, a
corrupção política e empresarial, os desafios ambientais, a perda generalizada
de valores.
Mas
encontramos também nesta zona de indiferença pessoas profundamente imbuídas de
simplificações ideológicas, que defendem absurdos crescentes como fazendo parte
de uma lógica inevitável e nos levam na realidade a um extremismo que assusta:
são os que explicam que a miséria é triste mas inevitável, e que ajudar os dois
terços de excluídos da nossa sociedade constitui “paternalismo”, que a explosão
de violência que está tornando as nossas vidas cada dia mais impossível se deve
aos “maus elementos”. Seria preciso construir mais cadeias, reduzir a idade de responsabilidade
criminal, construir mais viadutos para os carros, mais piscinões para segurar a
água de chuva, mais hospitais para enfrentar a doença e assim por diante.
Patéticos construtores de muletas sociais, que se recusam a ver a evidência: o
sistema é estruturalmente falho.
O
problema vai mais longe. Na boa análise de Anthony Giddens, a visão
conservadora do mundo está ruindo, pois a dimensão de valores que de certa
forma justificava a injustiça social e o lucro desenfreado — a pátria, a
família, a propriedade, o esforço individual, a moral no sentido mais
tradicional — está sendo corroída justamente pelo mecanismo — o mercado — que
devia viabilizá-la. É o liberalismo na sua versão moderna, com poderosas
pirâmides multinacionais de poder, e a crescente desigualdade, que está
diluindo a nação, enchendo as ruas e as televisões de vulgaridade comercial,
substituindo a moral pelo “faça tudo por dinheiro”, desarticulando a família,
generalizando a criminalidade e a corrupção, criando um clima de vale tudo desagregador.
A âncora dos valores conservadores, o mercado, se voltou contra o seu criador,
e na sua dimensão global e totalitária devora o que aparece pelo caminho. É
patética a declaração de Raymond Barre, um dos expoentes do liberalismo
europeu: “Não podemos mais deixar a economia nas mãos de um bando de
irresponsáveis de trinta anos que só pensam em dinheiro”. Não se tratava
justamente disto, de que do egoísmo de cada um surgiria a felicidade geral? Da
respeitável ainda que frequentemente hipócrita ideologia conservadora, restou o
que os americanos exprimem de maneira tão sintética: “fast money, fast women, fast food…”.
Não
se trata aqui de denuncias superficiais. É o próprio edifício filosófico que
deu origem ao liberalismo, com o utilitarismo de Bentham, de Stuart Mill e
outros, tão profundamente enraizados ainda nas cabeças dos norte-americanos e
dos seus seguidores pelo mundo, que está ruindo.
As
mega-empresas que surgem neste fim de século ultrapassaram amplamente a
dimensão de unidades micro-econômicas de produção, e passaram a se arvorar em
construtoras do sistema macrosocial, e o resultado é calamitoso. A empresa
constitui um excelente organizador de produção, e o mercado como um dos
reguladores da economia deve ser incorporado no nosso universo de valores. Mas
a sociedade de
mercado é desastrosa. Não se trata de destruir a empresa, mas de repensar o
universo no qual ela se insere.
O
relatório da Unctad de 1997 já trazia uma análise precisa do que geraria a
crise de 2008: em três décadas, a concentração de renda aumentou dramaticamente
no planeta, desequilibrando profundamente a relação entre lucros e salários. No
entanto, estes lucros mais elevados não estão levando a maiores investimentos:
cada vez mais, são desviados para atividades de intermediação especulativa,
particularmente na área das finanças. O resultado prático é que temos mais
injustiça econômica, e cada vez mais estagnação: a taxa de crescimento da
economia do planeta baixou de uma média geral de 4% nos anos 1970, para 3% nos
anos 1980, e 2% nos anos 1990, com um pouco de avanço nos anos 2000, e
depressão a partir da crise de 2008.
Esta
articulação perversa é muito importante. Apesar de todos criticarmos as
injustiças econômicas, ficava na nossa cabeça, formando um tipo de limbo
semiconsciente, a visão de que afinal o luxo dos ricos bem ou mal se
transformava em investimentos, logo em empresas, empregos e salários, que em
última instância significariam mais bem estar. De certa forma, a desigualdade e
os dramas sociais seriam um mal necessário de um processo no conjunto positivo
e em última instância (e a longo prazo) gerador de prosperidade. É este tipo de
“pacto” que está hoje desfeito. Na análise da Unctad, “é esta associação de
aumento de lucros com investimento estagnado, desemprego crescente e salários
em queda que constitui a verdadeira causa de preocupação”. Estranho foi ter de
esperar 2012 para o Economist se dar
conta das transformações, e publicar o relatório True Progressivism, confirmando este mecanismo[2].
Os
atingidos não são apenas os pobres, mas todo o sistema produtivo. Entre as
vantagens de ser especulador ou produtor, a dúvida já não existe. É
interessante encontrar no Financial
Times este comentário de Martin Wolf: “o que está em jogo, é a
legitimidade da economia capitalista mundial”.
O que
está se tornando evidente, já não numa visão de crítica sistemática
anticapitalista, mas de bom senso econômico e social, é que um sistema que sabe
produzir, mas não sabe distribuir, simplesmente não é suficiente. Sobretudo se,
ainda por cima, joga milhões no desemprego, dilapida o meio-ambiente e remunera
mais os especuladores do que os produtores. Relatórios sobre o Desenvolvimento Humano, das Nações
Unidas, qualificam de obscenas as fortunas de pouco mais de quatrocentas
pessoas no mundo, que dispõem de mais riqueza pessoal do que a metade mais
pobre da humanidade. Esta concentração de renda é considerada tão vergonhosa
como a escravidão e o colonialismo, sem lugar numa sociedade civilizada.
O
debate sobre as culpas e sobre quem tinha razão continuará sem dúvida a
alimentar as nossas discussões, pois a atração do passado é poderosa. Mas a
realidade é que a própria realidade mudou. A construção de alternativas envolve
um leque de alianças sociais evidentemente mais amplo do que o conceito de
classes redentoras, burguesa para uns, proletária para outros, que dominou o
século XX. Estamos trabalhando com o conceito de economia mista e de parcerias
para o desenvolvimento,
reunindo formalmente governos, empresas e organizações da sociedade civil, na
busca de novas articulações.
Terceira
via? Já há candidatos para se apropriar dos eventuais benefícios políticos da
ideia, tentando capitalizar o que ainda mal existe. Mas não é isto que nos deve
impedir de ver uma realidade cada vez mais patente: o mundo que estamos
construindo não está contido nos estreitos limites teóricos que o século XIX
definiu, e que utilizamos de maneira tão simplificadora para o século XX: o
estatismo socialista e o liberalismo capitalista.
Referências
[1]Versão
atualizada do artigo originalmente publicado na coletânea Costos
Sociales da las Reformas Neoliberales en América Latina, (org) Anita
Kon, Catalina Banko, Dorothea Melcher, Maria Cristina Cacciamali, publicado por
PUC-SP, FAPESP, USP e UCV. 2000.