quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Educação


Avaliação da OCDE

Assista a entrevista do Historiador Hiran Roedel, diretor da Plurimus, na Globonews, sobre o Brasil e a avaliação da educação feita pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico - OCDE.

Clique em
Educação.

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Preconceito


As razões do medo*

Por Mauro Santayana

É com amargura que somos obrigados a retomar o tema, mas o silêncio, nesse caso, é criminosa cumplicidade. Trata-se da estúpida e perigosa reação de jovens dos estados do Sul, sobretudo de São Paulo, contra os brasileiros do Nordeste, desta vez com relação aos resultados eleitorais. O racismo é abominável, ao não aceitar os seres humanos diferentes, mas é também incômodo ao revelar a profunda ignorância dos que o praticam. Todos os homens são iguais em sua essência, e a moderna biologia vai além: as diferenças entre os seres humanos e os demais mamíferos são insignificantes.

A vida é a aventura comum da matéria. Não conhecemos suas razões e provavelmente jamais as conheceremos. Os grandes aceleradores de partícula podem identificar o bóson de Higgs, em que, conforme a presunção de alguns físicos, Deus poderá ser encontrado. Mas, ainda que ali o encontrássemos, seria impossível com ele dialogar e conhecer as suas razões para criar o cosmo. Restará sempre a dúvida: por quê? Por que a vida, por que a morte, por que o ódio?

Como seres humanos, tivemos que lutar pela sobrevivência contra outros seres vivos, das feras pré-históricas aos vírus e bactérias identificados em nosso tempo, e contra seus vetores, como os ratos e os insetos. Como seres humanos, não temos sabido conviver uns com os outros, como provam as guerras, e o racismo – suprema manifestação da ignorância – não é só um sentimento dos homens primitivos, que sobrevive entre nós. É a exposição mais transparente da debilidade, do medo. Esses jovens de São Paulo e de outras cidades meridionais, no fundo, não desprezam os nordestinos. Temem, apenas, que eles os venham suplantar, o que já começa a ocorrer. O desempenho intelectual de moças e rapazes das universidades de Campina Grande, de Natal, de Recife – entre outras – está surpreendendo os observadores, principalmente no que se refere ao conhecimento científico.

As pessoas, quando aprendem a pensar, tornam-se poderosas – e riem dos preconceitos. Para aprender a pensar, basta duvidar das verdades tidas como absolutas. A única verdade absoluta é a morte. Temos que combater todos os racismos, mesmo quando eles se disfarçam na “defesa” da própria “raça”. Esse combate se inicia na constatação de que raça é substantivo abstrato. Não existem raças humanas. Houve, como confirma a ciência, durante a peregrinação da espécie, a partir da África, a adaptação dos seres humanos às condições próprias das latitudes, da alimentação, do clima, o que resultou na cor da pele e em outras alterações do corpo. Somos todos “afrodescendentes”, para fazer concessão a outra violação do bom-senso, que é o uso dos termos “politicamente corretos”. Se black is beautiful, por que rejeitar a palavra negro?

Mas, no caso dos nordestinos, não é o preconceito “racial” que atua. Eles são discriminados porque, em sua imensa maioria, são pobres. Sua pobreza secular é resultado de duas catástrofes: uma, natural, a da seca; outra, social, a da cruel opressão das oligarquias. Essas duas tragédias os tangeram à migração. Sendo-lhes negada a educação, viram-se, nos estados desenvolvidos, obrigados aos trabalhos mais penosos e mal remunerados. Da mesma forma que não há preconceito contra os negros ricos, tampouco há contra os nordestinos ricos; nem há no Nordeste mais mestiços do que no resto do Brasil. Ao contrário: numerosas de suas famílias descendem dos holandeses e franceses que ocuparam a região, e deixaram sua marca genética, na cor da pele, dos cabelos, dos olhos. O que eles temem é a ascensão dos pobres ao poder, nordestinos ou não, como é o caso de Lula.

É necessário impedir que a infecção se alastre. Ela deve ser cauterizada logo, pela ação rápida e severa da Justiça.

*Extraído do Jornal do Brasil. Para acesso clique em JB.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Poder


O poder corrompe?*


Emir Sader

Algumas frases que correm soltas e parecem, inclusive pela força da sua formulação, parecer evidentes por si mesmas, se prestam a somar-se à desmoralização da política, das ações coletivas, do Estado, favorecendo, como contrapartida, o individualismo, o egoísmo, o mercado – que busca congregar a todos como indivíduos na sua dimensão de consumidores.

Há poderes corruptos e outros não. Absolutizar é fazer o jogo dos que querem governos e Estados fracos, como os monopólios privados da mídia. Como dizer que “político é corrupto”, que “partidos são tudo a mesma coisa”, que “as pessoas não prestam”, que “todo mundo é egoísta”, “que o mundo não tem jeito”, “que as coisas estão cada vez pior no Brasil e no mundo”.

O senso comum costuma ser a representação popular de grandes preconceitos. Aparece como “verdades” evidentes por si mesmas, que nem precisam demonstração. E camuflam valores muito reacionários. Para isso, precisam naturalizar as coisas, tirando seu caráter histórico.

O poder da ditadura, o do Collor, o do FHC e o do Lula são iguais? Basta se chegar ao poder, para alguém se tornar corrupto? O poder de uma grande potência imperialista, como os EUA, é mais ou menos corrupto que o poder de um país da periferia? O poder de um grande conglomerado econômico transnacional é maior ou menor do que o dos governos?

Uma ONG internacional publica anualmente o ranking do que seriam os governos mais corruptos do mundo. Um deles colocou o o Haiti entre os lideres. Será que o governo do Haiti é mais ou menos corrupto que o governo dos EUA?

Mas o principal problema dessa lista é que ela lista os corruptos, mas não os corruptores, que certamente estão entre as grandes corporações multinacionais. Mas se trata de uma ONG, busca criminalizar os governos e, por dedução, absolver as empresas privadas.

Essa visão criminalizadora da política e do poder sugere que as pessoas são “boas” na “sociedade civil” e quando “entram” para o Estado, para a política, se corrompem. É a visão que sustenta a opinião, tão disseminada, de “quanto menos imposto se paga, melhor”, de que “o seu imposto está sustentando aos burocratas”, etc.

Do que se trata é de historicizar o tema. Há poderes e poderes. Todos eles têm natureza de classe. Mas mesmo nesse marco, há poderes assentados diretamente em organizações populares, em dirigentes com compromisso ideológico com os processos de transformação profunda da realidade.

Senão contribuiríamos para a rejeição da política, deixando para que ela seja feita justamente pelos políticos tradicionais, acostumados a tirar proveitos do Estado e dos governos, a desmoralizar a política.

SUGESTÕES DE LEITURA

- MEXICO INSURGENTE
John Reed
Boitempo Editorial

- AS GAROTAS DA FÁBRICA
Leslie T. Chang
Editora Intrinseca

- VITÓRIA
Joseph Conrad
Editora Revan

*Extraído de Carta Maior. Para acesso clique em Carta.


quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Mídia


Resultado de nossa enquete


Você pretende utilizar as informações da grande imprensa para decidir quais serão os seus candidatos nas próximas eleições?

  • Sim, afinal, grande imprensa tem contribuído para o aperfeiçoamento da democracia no país. (2%)
  • Não, porque a grande imprensa tende a se manifestar a partir de seus próprios interesses econômicos e políticos. (49%)
  • Não pretendo votar em nenhum candidato nas próximas eleições. (8%)
  • A grande imprensa será mais uma dentre todas as fontes que pretendo considerar. (41%)
Nossa opinião

Notamos, pelo resultado de nossa enquete uma acentuada descrença na mídia brasileira por parte da maioria dos nossos leitores. Aqueles um pouco menos incrédulos na neutralidade do conteúdo veiculado em períodos eleitorais (parte igualmente considerável dos respondentes da nossa pesquisa), quando muito a consideram entre as muitas fontes consultadas na busca por informações sobre os candidatos que disputam, com as mais diferentes e variadas estratégias a nossa atenção.

Se por um lado, esses números podem ser lidos otimistamente como uma ampliação no rigor da população na pesquisa de dados que qualifiquem sua escolha eleitoral, por outro, pode ser interpretada como uma queda na percepção da reputação dos veículos de informação. E em alguns casos um repúdio mesmo à consideração de algumas fontes, que já não fazem mais qualquer sentido para as pessoas mais exigentes com a mídia.

Por fim, cabe registrar que quase inexiste a crença de que a imprensa tem contribuído para o aperfeiçoamento da democracia no país. O que é um grande pesar para todos nós, uma vez que sim, a grande mídia deveria ser percebida – e atuar – como uma ‘instituição’ de capital importância para a consolidação e a garantia da democracia nos países. Principalmente, num momento em que os veículos de comunicação assumem como bandeira a causa da liberdade de imprensa e de expressão em clara oposição aos governos.

Se o Brasil por um lado não pode confiar 100% nessa instância, por outro, não pode prescindir de cobrar insistentemente uma mídia séria, profissional e transparente. Mesmo que essa cobrança se dê por meio do boicote a esses veículos como fonte de informação.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Administração


Congresso Mundial de Administração

Será realizado no período de 13 a 17 de setembro, em Québec, Canadá, o VI Congresso Mundial de Administração. Com apoio dos Conselhos Regionais de Administração do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul, e do Conselho Federal de Administração o evento terá como tema central A Administração Face a um Ambiente Mundializado e Turbulento: Novos Desafios e Novos Paradigmas. Específicamente, o evento abordará ainda:

1. Gestão da Inovação e Empreendedorismo Tecnológico.
2. Gestão do Conhecimento nas organizações, nova filosofias de gestão.
3. Gestão do desenvolvimento sustentável.
4. Novos modelos de negócios
5. Estratégias de internacionalização das empresas.
6. Desenvolvimento de uma parceria – ganha – ganha entre Quebec – Brasil.

Mais informações podem ser obtidas no endereço do evento http://www.mundialdeadministracao.com.br/

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Raça, ideologia e prática social

As raças não existem* - final 

Verônica Bercht**

A teoria neodarwinista, proposta na virada dos anos de 1940 por Ernst Mayr, Theodozius Dobzanky e Julian Huxley, reuniu a teoria da evolução proposta por Darwin com os achados de Mendel e as novi-dades da nascente genética das populações, mas ainda mantinha em suas bases o dogma da Criação. Aceitava a evolução das espécies como um processo progressivo em cuja base estão as espécies inferiores que gradativamente progridem até chegar ao ápice dominado pela figura humana, como se a evolução seguisse um plano previamente traçado. O neodarwinismo propõe que a evolução consiste no surgimento de novas variantes de genes em grupos isolados de uma espécie; essas variantes surgem ao acaso provocadas por mutações e não ocorrem de maneira homogênea em toda a espécie. Gradualmente, sob a ação da seleção natural, as variantes genéticas que conferem vantagens adaptativas aos indivíduos do grupo são incorporadas ao seu patrimônio genético. O isolamento e o acúmulo progressivo de mutações em seu patrimônio genético torna-o, ao longo do tempo, incompatível com a espécie original – definindo uma nova espécie. As raças ou subespécies, por sua vez, seriam os estágios intermediários desse processo.

Esta teoria não rompeu com as idéias racistas que, ao contrário, a evocavam para afirmar que as raças negra e amarela seriam estágios anteriores e inferiores da raça branca e inspirou correntes reacionárias, como a sociobiologia e o ultradarwinismo.

Mas o neodarwinismo expôs também a fragilidade do conceito de raça, subespécie ou variedade ao demonstrar como sua significância depende do momento do processo evolutivo de uma certa espécie. Como saber se as variações observáveis dentro de uma espécie dariam vantagens evolutivas aos seus portadores a ponto de diferenciá-los numa raça? Em que momento um conjunto de variações poderia conferir status de raça a uma população? Inspirou, também vários estudos que tentaram quantificar a variação genética entre populações de uma mesma espécie, inclusive na espécie humana. Esses estudos mostraram que a variação genética entre indivíduos de uma mesma população humana é menor do que a variação entre indivíduos de “raças” diferentes. Outros estudos demonstraram que os traços que orientam as noções de raças – a cor da pele, o formato do nariz e dos lábios e o tipo de cabelo – não são típicos de cada “raça”. Existem, por exemplo, pessoas de pele clara e pessoas de pele escura portadoras de cabelos crespos, ondulados e lisos; de nariz achatado e de nariz aquilino; de lábios finos ou carnudos. As variações genéticas para cada uma dessas características estão espalhadas em toda a população humana. 

Raça, um conceito ideológico, e não biológico

A luta contra as idéias racistas foi intensa. Apesar dos avanços posteriores à Segunda Guerra Mundial, o debate sobre a existência de raças recrudesceu na década de 1970, quando foram publicados livros como O Macaco Nu, de Desmond Morris, Gene Egoísta de Richard Dawkins e Sociobiologia de Edward O. Wilson. As idéias racistas e deterministas dessas obras, fartamente divulgadas pela imprensa da época, foram atacadas por cientistas progressistas, de inspiração marxista, como Richard Lewontin, Steven Rose, Leon Kamin, Marcel Blanc, Stephen J. Gould, entre outros, que promoveram uma verdadeira campanha de divulgação de experimentos e pesquisas científicas e demonstraram como as idéias apresentadas por aqueles autores não tinham fundamentos científicos e eram, apenas, conclusões de ordem moral e ideológica.

Nessa época os livros do paleontólogo Stephen J. Gould começaram a chegar às livrarias mostrando que a teoria neodarwinista não era a única explicação para a origem de espécies novas. Uma das idéias combatidas por Gould é a de que as raças ou subespécies são estágios transitórios do processo de especiação. Ele é veemente no combate à idéia de que a evolução é um processo de “melhoramento” das espécies e de que há uma hierarquia entre elas. Ao contrário, ele defende que a seleção natural é um fator menor na origem das espécies e considera que o acaso é o principal motor da evolução. O acaso representado por catástrofes naturais, por alterações gradativas no ambiente, por mutações genéticas ou alterações mais profundas no material genético são responsáveis pelo desaparecimento da maior parte das espécies e pelo surgimento de novas.

Algumas idéias de Gould (muitas delas inspiradas em colegas que no início do século foram solapados pela força do neodarwinismo, como Richard Goldschmidt), foram reconhecidas e incorporadas por cientistas como Ernst Mayr, fundador do neodarwinismo.

Na segunda metade do século XX os achados de fósseis de ancestrais humanos acrescentaram novos argumentos contra a existência de raças ao mostrarem que a espécie humana é muito nova na face da Terra – surgiu há apenas cerca de 160 mil anos, tempo insuficiente para que houvesse se diferenciado em raças. Além disso, mostraram que o intercruzamento, ao contrário do isolamento, é uma característica da espécie impossibilitando a ocorrência do processo de especiação neodarwinista.

Atualmente, portanto, é consenso de que não existem raças biologicamente definidas entre os homens. Mesmo tendo destruído o conceito biológico de raça humana, não será a ciência que destruirá o racismo, cujas origens não são científicas e nem fazem parte da natureza humana. O racismo também não é um mero problema de atitude, um preconceito residual do tempo da escravidão, como a visão liberal tradicional deseja. As origens do racismo são ideológicas e suas bases se mantêm na medida em que o racismo reforça o sistema capitalista. As conclusões da paleoantropologia e da genética de populações, no entanto, devem ser incorporadas à luta contra o racismo com a mesma veemência que as conclusões pseudocientíficas o foram a seu favor em tempos de triste memória.

*Texto da Revista Princípios ed. 79
**Bióloga e Jornalista

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Raça, ideologia e prática social

As raças não existem* - parte I

Verônica Bercht**

As ciências biológicas, assim como as ciências sociais, deram durante muito tempo estatuto científico ao racismo. Nelas, ele baseava-se especialmente na afirmação de que a espécie humana era composta de três grandes raças e cada uma delas tinha atributos intelectuais e comportamentais específicos que justificavam uma hierarquia biologicamente estabelecida. Quem pensava assim via na prática social a comprovação dessa hierarquia. O conceito de raça – ou subespécie – era, portanto, o alicerce científico para o passo seguinte, o racismo e seu corolário, a superioridade racial de um grupo privilegiado.

A principal pergunta pertinente às ciências biológicas sobre esta questão é: a espécie humana é, objetivamente, composta por raças diferentes? Respondida esta pergunta poderíamos então partir para a seguinte: uma raça é superior a outra?

Essas questões receberam respostas diferentes ao longo dos últimos 200 anos. Hoje, o desenvolvimento e o acúmulo dos conhecimentos sobre a evolução da espécie humana, fornecidos principalmente pela paleoantropologia e pela genética, estabeleceram provas irrefutáveis sobre a inexistência de raças na espécie humana e desmascararam a camisa de força imposta por cientistas para adequar a realidade à prática social e à ideologia.

Podemos identificar duas posturas bem marcadas em relação ao conhecimento científico. Uma delas considera o fato científico como a revelação da verdade. Assim, o experimento científico, ou descoberta, é apresentado como um fato isolado, sem relação com outros fatos, científicos ou não, e totalmente alheio ao desenvolvimento científico e histórico que o antecedeu, e o fato é então incorporado como uma “verdade” científica que, por sua vez, é cultuada como solução para o problema que suscitou a pesquisa.

No outro extremo estão os que percebem que as promessas feitas com base na “verdade científica” nem sempre se realizam; que sabem que a ciência é feita por homens e mulheres com suas ideologias, e que, hoje, a prática científica baseia-se nos mesmos mecanismos capitalistas que regem as sociedades atuais. Por isso, negam a validade da metodologia científica para a aproximação do conhecimento da realidade, que em última análise, para eles, é inalcançável.

Essas duas posturas, apesar de distintas, têm a mesma conseqüência: invalidam a prática científica como instrumento para o conhecimento da realidade, negam os benefícios que esse conhecimento pode representar para a humanidade e, acima de tudo, impedem a análise crítica da ciência atual. Com isso, esvaziam as propostas de luta para a democratização e socialização dos conhecimentos científicos e de suas aplicações e para a reorientação dos objetivos da prática científica, atualmente definidos pela organização capitalista e neoliberal da sociedade.

Para entendermos o estágio em que a ciência se encontra é necessário ter em mente que por trás de toda prática científica estão as idéias, que, por sua vez, são resultado do contato do homem com a natureza, com os outros homens e suas criações. As ciências biológicas não são exceção à regra. Elas também estão imersas no universo ideológico, e o debate sobre a existência de raças biologicamente definidas na espécie humana é uma demonstração de que a ciência e a ideologia são inseparáveis e de como é tortuoso o caminho que nos leva ao conhecimento da realidade. Mas, é, ao mesmo tempo, a demonstração de que a ciência pode nos dar elementos importantes para o entendimento do mundo em que vivemos e auxiliar na proposição de lutas para torná-lo mais justo e mais humano.

A origem da variedade de seres que habitam nosso planeta é uma questão fundamental das ciências biológicas. Elas têm, em sua origem, a concepção religiosa judaico-cristã que estabelecia a origem divina das espécies e, até 1858, quando Charles Darwin publicou A origem das espécies e a seleção natural, acreditava-se que elas eram fixas, criadas por Deus, e as variações entre os indivíduos de uma mesma espécie não passavam de imperfeições nas criaturas, provocadas pelas falhas do mundo material. Os mesmos argumentos explicavam a existência das raças humanas e estabeleciam os níveis hierárquicos entre elas. A versão bíblica (Gênesis 9, 18-27) conta que quando Noé e seus filhos Sem, Cam e Jafé saíram da Arca, Cam cometeu uma irreverência contra o pai que, para puni-lo, o condenou ao sofrimento no tórrido continente africano e à eterna escravidão: “Maldito seja Canaã! Que se torne o último dos escravos dos irmãos”. A descendência dos três filhos de Noé teria formado, segundo essa interpretação religiosa, as raças que se espalharam pelos diferentes continentes.

Essa concepção predominou nas ciências biológicas até mesmo depois de Darwin ter mostrado que as espécies não eram fixas, mas resultado de um longo processo de transformações sucessivas. Numa época em que, de um lado, a prática da escravidão estava no auge e, de outro, a ciência não dispunha de elementos para compreender a evolução humana – a paleoantropologia ainda engatinhava à procura de fósseis dos ancestrais humanos e não se conheciam os mecanismos de herança das características dos seres vivos – a ciência biológica europeia, é bom lembrar, associava traços culturais que não conseguia entender à variedade física dos povos, alegando que eram determinados pelo clima onde esses povos viviam. Assim, os traços culturais dos povos asiáticos e africanos eram associados às suas características físicas e como essas culturas eram consideradas inferiores à cultura europeia, que então procurava se impor nas diversas colônias, os povos mongolóides e negróides eram considerados inferiores.

Pode-se dizer que essas ideias predominaram nas ciências biológicas até o início do século XX, acaçapando as visões discordantes. O desenvolvimento de dois ramos das ciências biológicas, a paleoantropologia e a genética evolutiva, na primeira metade do século XX, e a ameaça representada pelas idéias nazistas e eugenistas durante a Segunda Guerra Mundial foram determinantes para destronar temporariamente aquela concepção no âmbito das ciências biológicas. E após a derrota do nazismo, mesmo biólogos conservadores, como Edward O. Wilson, um dos fundadores da sociobiologia, diziam que a noção de raça ou subespécie era tão arbitrária que deveria ser abandonada.

Não auxiliava na classificação de plantas e animais e nem no entendimento dos fenômenos evolutivos. Ao contrário, confundia-os.


*Texto da Revista Princípios ed. 79 
**Bióloga e Jornalista

quinta-feira, 10 de junho de 2010

A arte de José Nasser


Reflexão

Célia Seabra


A primeira impressão, outras impressões, inúmeras impressões dialogam através do olho do artista, estabelecendo uma sutil rede de conexões entre a materialidade do objeto , a ambigüidade da luz e da cor, o dito e o não-dito, o que grita e o que se retrai.


A arte, esse campo aberto onde o encontro de todos os tons, consonantes e dissonantes, se torna possível, rege, com mestria (mestria que não só da técnica, mas uma outra, mais obscura) a formação de uma pele – profunda e instigante superfície – que palpita.







quinta-feira, 20 de maio de 2010

Diplomacia


Por que Washington rejeita a paz
*

Antonio Martins

O desfecho da disputa que Estados Unidos e Irã travam, em torno da energia nuclear, tornou-se imprevisível, após uma série de reviravoltas diplomáticas. Tão logo Brasil e Turquia anunciaram, em 16 de maio, um acordo que cria espaço para entendimento, a secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, saiu a campo para bombardear a iniciativa. Na manhã desta terça-feira (18/5), ela anunciou, no Comitê de Relações Exteriores do Senado dos EUA, ter costurado com Rússia e China um rascunho de resolução contra Teerã, a ser submetido ao Conselho de Segurança da ONU. Apesar de ter adesão aparente dos cinco membros-permanentes do conselho, a aprovação desta proposta é incerta. Tanto a articulação brasileiro-turca quanto a resposta-relâmpago do governo Obama são fatos novos e surpreendentes, que ajudam a revelar traços da conjuntura global que se abre na virada da década.

Revelado no final da noite de segunda-feira, o texto anunciado por Hillary é, como afirmou a própria secretária, particularmente “duro”. As sanções previstas transformam o Irã, na prática, num Estado-pária. Fica proibido de construir instalações de enriquecimento de urânio (algo que o Tratado de Não-Proliferação Nuclear – TNP – considera um direito de qualquer país). É interditado de atividades banais (como a mineração de urânio). As nações são impedidas de vender-lhe oito tipos de armamentos convencionais (os mesmos oferecidos a todos os seus vizinhos), e mesmo de fornecer assistência técnica e treinamento militares.

Estabelecem-se, além disso, constrangimentos humilhantes. Barcos com destino ao Irã podem ser inspecionados em alto-mar. Fundos iranianos no exterior tornam-se passíveis de bloqueio, bastando para isso que algum Estado ofereça “bases razoáveis para acreditar” que o negócio “poderia contribuir” para que Teerã livre-se das sanções.

A proposta de Hillary obriga os EUA a renegar posições já assumidas, afronta possíveis aliados e tende a ampliar a oposição e o ressentimento contra Washington, em especial no mundo árabe. Os compromissos que que Brasil e Turquia convenceram o Irã a assumir são, em essência, idênticos ao que os EUA exigiam de Teerã, em outubro último. Brasília e Ancara apostaram que, na condição de países do Sul, não-hostis ao Irã, teriam maiores chances de obter um compromisso. Esta tentativa foi comunicada previamente à Casa Branca – que a encorajou, em palavras.

Ao renegar esta atitude, Washington sugere que não desejava, no ano passado, um entendimento: fazia apenas uma provocação. Ainda mais porque as novas ameaças contrastam com o prolongado apoio norte-americano a Israel – que mantém e desenvolve armas nucleares e se recusa a assinar o TNP.

Na manhã de quarta-feira (19/5), surgiram, aliás, os primeiros sinais de que a tramitação do texto, no Conselho de Segurança, poderá ser lenta, complexa e desgastante para os EUA. Embora admitisse que seu país participou da redação do esboço de Hillary, o embaixador chinês na ONU, Li Badong, fez ressalvas. “Fazer circular este rascunho não significa que as portas para a diplomacia estão fechadas (…) Acreditamos que o diálogo, a diplomacia e as negociações são a melhor maneira de lidar com a questão iraniana”.

Brasil e Turquia mantiveram-se firmes, anunciando que enviarão ao Conselho de Segurança um relato de suas gestões, que julgam suficientes para colocar o debate em novo tom. O chanceler brasileiro, Celso Amorim, afirmou que, após os sinais de boa-vontade emitidos por Teerã “não há nenhum motivo para manter uma linha de pressões e sanções”.

Na própria sociedade norte-americana, não parece haver unanimidade em favor da postura de ameaças e confrontos. Na manhã de quarta-feira (19/5), uma ampla maioria dos leitores do New York Times pronunciava-se de forma francamente crítica à nova cartada da Casa Branca. O jornal elogiou Hillary Clinton em editorial. Mas na página de comentários aberta aos internautas, todas as dez opiniões mais pontuadas estavam contra as sanções. Um comentário emblemático perguntava: “Por que será que estou me tornando mais inclinado a acreditar em propostas feitas por países como a Turquia e o Brasil que nas manifestações de China, Rússia e Estados Unidos”?

Nove votos, entre os quinze países que compõem o Conselho de Segurança, são necessários para aprovar sanções. Há enormes probabilidades de que Brasil, Turquia e Líbano rejeitem a resolução articulada pelos EUA. Ainda que os cinco membros permanentes confirmem adesão à proposta de Hillary, será preciso cabalar mais quatro apoios, entre os sete integrantes que faltam (Áustria, Bósnia, Gabão, Japão, México, Nigéria e Uganda). O sucesso é duvidoso. A maior parte dos que se atrevem a fazer previsões imaginam que as negociações deverão se estender até julho.

Por que, então, a sofisticada Hillary Clinton agiu tão brusca e rudemente? Dois textos publicados em Outras Palavras ajudam a encontrar respostas. Em A política de desarmamento de Obama, que foi ao ar no final de abril, o economista José Luís Fiori aponta como o presidente “mudou de foco”, depois de enfrentar o primeiro ano de crise econômica profunda, resistências no Congresso, movimentos sociais ultra-conservadores e queda de popularidade.

*Extraído de Outras Palavaras. Para acesso completo clique em Diplô.


Dipomacia

De como exercer a ousadia moral
Mauro Santayana

Velha teoria explica as guerras generalizadas como inevitável irritação da História: as situações envelhecem e se tornam insuportáveis, para estourar nos conflitos sangrentos. Alguns as veem como autorregeneração do mundo, ao contribuir para o equilíbrio demográfico. Outros a atribuem à centelha diabólica que dorme no coração dos homens e incendeia o ódio coletivo. O mundo finará sem que entendamos a fisiologia do absurdo. Para os humanistas, são repugnantes os massacres coletivos tanto como os assassinatos singulares.

De qualquer forma, a História tem como eixo a tensão permanente entre guerra e paz; entre a competição e o entendimento; entre o egoísmo que se multiplica no racismo e a solidariedade internacional. Uma coisa é inegável: quando os mais fortes querem, não lhes faltam argumentos trôpegos para justificar a agressão. La Fontaine soube reduzir esse comportamento no diálogo entre o lobo e o cordeiro. Quando o lobo quer, os filhos são responsáveis por falsas culpas dos pais e as águas sobem os rios.

É interessante registrar, no episódio da questão do Irã, algumas dúvidas que assaltam o homem comum. A primeira delas – e devo essa observação a um amigo – é a do direito de os possuidores das armas atômicas decidirem quem pode e quem não pode desenvolver a tecnologia nuclear. Mais ainda, quando o árbitro maior é o governo do país que a usou criminosamente, ao arrasar, sem nenhuma razão tática ou estratégica, duas cidades inteiras e indefesas do Japão. Reduzidas as dimensões do absurdo, podemos aceitar como lícitas as associações criminosas, como as dos narcotraficantes dos morros. Possuidores de bom armamento, impõem sua lei às comunidades e constroem sua própria legislação, cobram tributos e exigem obediência, sob a ameaça dos fuzis e da tortura. Chegaremos assim a uma sociologia política, abonada indiretamente por Weber e outros, que admite todo poder de facto, sem discutir sua legitimidade ética.

O momento histórico é de grande oportunidade para a Humanidade – e de grande perigo, também. A República dos Estados Unidos é um lobo ferido em suas entranhas. Por mais disfarcem o choque, a eleição de Barack Hussein Obama lanhou as glândulas da tradição conservadora da Nova Inglaterra. A águia encolheu suas asas. A maioria dos estados e, neles, a maioria dos eleitores, decidiu por um homem mestiço, filho de pai negro e mãe branca, nascido em uma colônia dissimulada em estado, o Havaí; e que passou o período mais importante da formação, o da adolescência, na Ásia: na Indonésia muçulmana e no arquipélago em que nasceu.

No inconsciente coletivo, os Estados Unidos já sentem a decadência, que se acelerou com o neoliberalismo. Eles poderão administrá-la com inteligência, integrando-se em uma Humanidade que necessita, com urgência, de novos parâmetros e de nova tecnologia, capazes de preservar a natureza, hoje em acelerada erosão, ou entrar em desespero. Se entrarem em desespero, conduzirão o mundo a nova guerra, mas isso não parece provável, diante da crescente consciência antibélica de seu povo.

Por enquanto os falcões parecem contar com a Europa e com a China, no caso do Irã. Mas não há, nos horizontes movediços de hoje, país suficientemente forte, capaz de impor-se aos demais. A Europa desce a ladeira, com sua bolsa de euros de barro, e a União Europeia se encontra ameaçada de fragmentação. A China é uma nebulosa impenetrável. O capitalismo financeiro descolou-se de qualquer compromisso ético, se é que o teve um dia. O sistema se torna mais selvagem quando se vale dos instrumentos tecnológicos de operação universal e instantânea.

É nesse momento que a presença do Brasil começa a impor-se no cenário internacional. Não temos armas atômicas, não dispomos de exércitos numerosos e bem equipados, mas somos chamados a manter o bom-senso, e manter o bom-senso é exercer a ousadia moral.

Digam o que disserem os quislings domésticos, o Brasil ganhou o respeito do mundo ao buscar a paz no Oriente Médio. Se contribuirmos para evitar o conflito, nosso será o mérito; se não houver o êxito, fica, na História, o testemunho de um esforço destemido e honrado – e não menos meritório.

quinta-feira, 8 de abril de 2010

Lei Rouanet


Conhecimento: patrimônio público ou apropriação privada*

Emir Sader

Esta é uma das discussões mais importantes que se travam atualmente, que contrapõe duas concepções de cultura e de direitos individuais e coletivos. Numa economia de mercado, tudo se torna mercadoria, os recursos são incentivados pelo custo/benefício, os direitos de apropriação privada dos lucros teria que ser garantido, para que o investimento fosse atraente.


O resultado tem sido o incentivo a projetos rentáveis, conforme os critérios de mercado. Que editora se proporia a publicar as obras completas de um autor clássico, se o preço seria muito caro, se o retorno – caso houvesse – seria de longo prazo? O incentivo é a que se encenam obras com poucos personagens no teatro, provavelmente com casais que protagonizam simultaneamente novelas na televisão, com caráter erótico-sentimental. Quem se atreveria a encenar uma obra de Shakespeare ou do teatro grego, pelos custos que significa, pela falta de interesse de investidores privados?

Conta-se o caso de um autor teatral paulista que, tendo escrito uma comédia com o título “O presunto”, buscou uma empresa que produz presuntos e teve a seguinte resposta: Estamos lançando um novo produto – o chester. Não daria para o senhor mudar o titulo da peça?

Essa mercantilização da produção cultural levou a que, conforme as normas tradicionais da Lei Rouanet – pelas quais o governo renunciava a seu papel de fomentador cultural, transferindo-a ao mercado, que por sua vez, ao invés de promover suas empresas com recursos específicos, passaram a fazê-lo simplesmente deixando de pagar impostos – um empresário chegasse a afirmar, durante o governo FHC, que eles passarem a decidir que tipo de cultura se faria no país, porque tudo dependeria do que eles estivesse dispostos a financiar.

A questão da propriedade intelectual opõe duas concepções contrapostas da propriedade. O capitalismo é o único tipo de sociedade que sacraliza, absolutiza o direito à propriedade, independente do seu caráter social ou anti-social. Uma editora – para dar um exemplo – que compra os direitos de um livro, caso esse livro se esgote e não lhe interesse – por razões de falta de retorno econômico – republicá-lo, impede que esse livro esteja accessível, dando-se o direito de não publicá-lo.

Da mesma forma as empresas produtores de músicas se locupletaram de lucros, ao produzir CDs caros, fazendo com que se tivesse que comprar uma mercadoria com 12 ou 15 músicas, quando se queria ter acesso apenas a uma ou duas delas. Agora reclamam que os jovens tiram as músicas que lhes interessam na internet, levando essa indústria gananciosa à crise.

Tentam qualificar de “pirataria”, o que é o livre acesso um patrimônio público. Da mesma forma que tentam usar essa desqualificado para as “rádios comunitárias”, que permitem que um amplo espectro de setores da sociedade possa se comunicar com os outros, alterando o monopólio que alguns poucos grupos querem exercer sobre a comunicação social.

À propriedade e a apropriação privada dos lucros da produção de conhecimentos se opõe o critério da propriedade comum, do patrimônio público da humanidade, considerando que toda produção de conhecimento costuma ser financiada e apoiada por recursos públicos, desenvolvida em âmbitos públicos de pesquisa, por investigadores formados em instituições públicas. Seu resultado deve ser de acesso amplo e gratuito a todos. Esses são os verdadeiros termos da discussão da democratização do conhecimento.

*Extraído de Carta Maior. Para acesso clique em Carta.

Enchentes

Mauro Santayana

A tempestade que se abateu, segunda-feira, sobre o Rio de Janeiro – em uma estação de natureza particularmente impiedosa no mundo inteiro – tem muitas explicações, todas elas válidas, e todas elas, até o momento, inúteis. Há que se registrar, em primeiro lugar, e sem a histeria imobilizadora de alguns fanáticos, a enlouquecida agressão destruidora do capitalismo. A busca do lucro sem limites destrói as montanhas, a vegetação e suas águas, seja para a extração mineral, seja para a especulação imobiliária, e trata os seres humanos como se coisas fossem.

O Estado, historicamente, tem sido servidor dessa ação depredadora. Mesmo antes do consumo alucinante de recursos naturais, na produção de energia e de artigos industriais, que se acelerou nos últimos 100 anos, o Estado dividia seus súditos em duas categorias. Uma, a dos bem nascidos, senhores, por direito de herança, do bem-estar e do mando; outra, a dos servos, cativos pela cor ou pela origem social. As favelas cariocas, como sabemos, nasceram em Canudos, com a desmobilização das forças que combateram Antonio Conselheiro, no fim do século 19.

Os veteranos das tropas legalistas vieram para o Rio, acamparam-se em um de seus morros, e, em seus descendentes e agregados históricos, continuaram a morrer, como no sertão baiano: a tiros, de fome, e, por fim, nos desabamentos. Ainda assim, tiveram mais sorte do que os vencidos em Canudos, mortos em combate e degolados os prisioneiros inermes, entre eles, mulheres e crianças, em um dos momentos mais abjetos da história brasileira.

Como o Rio não fosse exceção na ordem social de domínio, em todas as cidades, reproduziu-se o mesmo modelo de ocupação urbana e de exploração do trabalho. Em todas elas há, em dimensões equivalentes, os redutos da miséria, sem falar nos casebres dispersos nas regiões perdidas do interior. Há várias humanidades na Humanidade, e, em algumas delas, a vida, em lugar de ser uma graça, constitui terrível castigo.

Quando a Nêmesis da Natureza resolve exercer vingança contra os que a ofendem, pune mais os inocentes do que os culpados. Tivemos, nestes últimos meses, os grandes terremotos, como sofremos, em nossos semelhantes indonésios, o mais violento maremoto registrado pela História. O terremoto do Haiti foi impiedoso, porque impiedosos haviam sido os colonizadores espanhóis e franceses e, bem mais tarde, os homens de negócios norte-americanos. Foram dizimados os pobres: os poucos ricos, estrangeiros em sua maioria, salvaram a vida e o patrimônio.

No Chile, com todo sofrimento e destruição, os mortos foram relativamente poucos, porque, apesar de todos os males – e, nesses males, inclua-se Pinochet – os chilenos conseguiram construir uma sociedade mais justa. Os desastres naturais atingem qualquer lugar do mundo, e os sismólogos preveem abalos telúricos em várias regiões do globo, nos tempos próximos. É de se esperar que quanto mais pobres forem as áreas de ocupação, mais mortes haverá.

Durante os últimos 100 anos, moveu-nos a ilusão de que as cidades grandes eram mais seguras. Nos anos 40, o êxodo para os grandes centros foi explicado pelo desemprego e a segurança do salário mínimo, naquele tempo restrito aos trabalhadores da indústria. A iluminação pública também serviu de atração para os homens do campo. Nos anos 50, uma pesquisa da Arquidiocese de São Paulo revelou que a afluência dos pobres à grande capital era motivada, mais do que pelo emprego, pela assistência hospitalar. Era o medo de morrer à míngua, sem chance de cura, o principal fator da migração. Hoje, a automação das indústrias e dos serviços tem descartado a mão de obra, expulsando até mesmo os trabalhadores especializados para a periferia das cidades. É hora de a ciência encontrar uma forma de produção que confira vida digna e segura a todos os homens.

*Extraído do Jornal do Brasil. Para acesso completo clique em JB.

quinta-feira, 1 de abril de 2010


Considerações sobre a crise da educação no Brasil


Fernando Vieira*

A educação no Brasil se encontra em crise. Melhor dizendo, a educação no Brasil mantém sua estrutura fundada para não dar certo. A crise é inerente ao modelo de educação brasileiro. A crise é estrutural, não se trata de uma conjuntura, de um momentâneo tropeço, não! É inerente ao modelo gestado no país.

Esse modelo não buscou incorporar o conjunto da sociedade na vida escolar brasileira. Em parte por considerar que o país não demandava letrados e intelectuais, mas sim, de indivíduos dinâmicos e pragmáticos para o trabalho braçal cotidiano. Criava-se o mito que diferenciava o pensar e o fazer. Além disso, a exclusão dos analfabetos do jogo eleitoral definido pela Constituição de 1891 reforçava o desinteresse do poder público pela educação.


Mais do que desobrigar o Estado a arcar com o ensino básico, a Constituição de 1891 que se pretendia republicana, isto é, vinculada ao conjunto da sociedade buscando promovera cidadania, ao negar o direito à educação básica, transformou a educação numa mera mercadoria, a ser adquirida no mercado.


Com isso, proliferaram as escolas privadas vendendo educação a granel a um preço que ora elitizava o conhecimento, ora banalizava o mesmo. Educação como um produto e não um direito. Esse é o primeiro elemento estrutural que fundamenta a crise da educação no país. A sociedade brasileira, historicamente, não via ou vê a educação como um elemento central para seu cotidiano num quadro de graves exclusões – moradia, alimentos, empregos – a escola pública podia ser relegada a um segundo plano.


Dessa forma, a defesa de uma escola de qualidade pública, laica e gratuita, não se incorporou – salvo raríssimos – momentos na pauta das lutas da sociedade brasileira. Lideranças nacionalistas com forte influência positivistas passaram a cobrar nos anos 20 do século passado um outro posicionamento do poder público ante a educação.


Olavo Bilac assumiu a defesa da maior instrução da sociedade brasileira como forma de regeneração do país visando alcançar o progresso. A educação se ligava ao ideal de progresso que deveria ser conquistado pelo país. A educação pública se inseriria nesse contexto formando agentes da modernidade. No entanto, o projeto defendido por Bilac nunca chegou a ser, de fato, apropriado pelo Estado nacional. A ele se juntariam outros fatores que estruturam o modelo falido da educação no país.


*Mestre em História do Brasil (UFRJ) e Doutor em Sociologia (UFRJ)


quinta-feira, 25 de março de 2010

Cuba


Para compreender a encruzilhada cubana
Le Monde Diplomatique Brasil*

Em “Cuba, Israel e a dupla moral”, artigo provocador publicado hoje no site Opera Mundi, o jornalista Breno Altman fustiga a hipocrisia da mídia comercial brasileira em relação a Cuba. Os mesmos jornais e tevês que cobram do governo Lula uma condenação do regime cubano, lembra Altman, escondem o desrespeito sistemático aos direitos humanos em Israel – onde há cerca de 11 mil presos políticos e a tortura é admitida por decisão da Corte Suprema...

Mas denunciar a manipulação não deveria levar os que admiram a independência de Cuba a menosprezar as dificuldades da ilha – nem a pensar que a trajetória seguida nos últimos cinquenta anos pode continuar a ser trilhada sem mudanças. Alguns artigos recentes, publicados em Le Monde Diplomatique, ajudam a debater problemas e alternativas.

Escrito em 2007, pouco após a substituição de Fidel por Raúl Castro, “Encruzilhada em Havana, de Pablo Stefanoni, reporta que, àquela altura, o pior da crise que se seguiu ao fim do “campo socialista” havia passado. Já não se sofria com "apagões" diários; as lojas ofereciam algum sortimento de eletrodomésticos; o petróleo oferecido pela Venezuela, em regime de escambo, completava a produção interna (equivalente a 50% do consumo), sem exigir o pagamento de divisas.

Ainda assim havia, além enorme ineficiência econômica, graves problemas sociais e políticos. Frequentemente ouvida nas ruas, a frase “o governo finge que nos paga e nós fingimos que trabalhamos” expressava o desencanto com um sistema de produção que não havia superado o dirigismo estatal. A existência de um duplo sistema de moedas (pesos desvalorizados para as maiorias, dólares para os setores em contato direto com turistas) mantinha e ampliava as desigualdades. O poder resistia a tentativas de uma democratização ampla, o que produzia episódios como a “revolução dos emails”.

À mesma época, Carlos Gabetta, diretor da edição argentina do Le Monde Diplomatique, discutia, em “Cuba, hora de mudanças”, as alternativas. Ele frisava, primeiro, um dado positivo: os dirigentes e intelectuais cubanos têm plena consciência dos três graves problemas que marcaram o “socialismo real” e foram herdados pela formação contemporânea de seu país: o regime de partido único, a ausência de pluralismo de opinião verdadeiro e a centralização completa da economia, nas mãos do Estado e do partido comunista. Por isso (e ao contrário do que ocorreu no Leste Europeu), há, pensa Gabetta, a possibilidade de uma transição que não signifique mero retorno ao capitalismo.

Esta opção prevalecerá? Quem aborda o tema é Stefanoni – e ele tem dúvidas. Segundo suas observações, os dirigentes cubanos, de quem dependerá em boa parte a resposta, dividem-se entre duas posições. A primeira equivale a algo como uma “saída à chinesa”: mais liberdade econômica, forte estímulo às empresas privadas mas... manutenção do controle rígido do partido comunista sobre o poder. A segunda, cuja força estaria crescento especialmente entre setores não diretamente ligados ao Estado, seria uma tentativa de aproximação com as experiências políticas em curso na América Latina. Nesta hipótese, a transição – certamente difícil e arriscada – significaria deixar para trás o modelo de partido único, abrir-se a uma ampla democratização e estimular o surgimento de uma sociedade civil crítica e forte. Mas não equivaleria a reforçar as relações capitalistas (Antonio Martins).

M A I S

Além destes dois textos, densos e estimulantes, é possível encontrar, na Biblioteca Diplô vasto material sobre Cuba, China e os balanços do “socialismo real”.

*Para acesso clique em Diplô.

Fidel X Obama


A reforma sanitária dos Estados Unidos*

Fidel Castro

BARACK Obama é um fanático crente do sistema capitalista imperialista imposto pelos Estados Unidos ao mundo. "Deus abençoa os Estados Unidos", conclui seus discursos.

Alguns de seus fatos feriram a sensibilidade da opinião mundial, que viu com simpatias a vitória do cidadão afro-americano frente ao candidato de extrema direita desse país. Apoiando-se numa das mais profundas crises econômicas que conheceu o mundo, e na dor causada pelos jovens norte-americanos que morreram ou foram feridos ou mutilados nas guerras genocidas de conquistas de seu predecessor, obteve os votos da maioria de 50% dos norte-americanos que acodem às urnas nesse democrático país.

Por elementar sentido ético, Obama deveu abster-se de aceitar o Prêmio Nobel da Paz, quando já tinha decidido o envio de 40 mil soldados a uma guerra absurda no coração da Ásia.

A política militarista, o saque dos recursos naturais, o intercâmbio desigual da atual administração com os países pobres do Terceiro Mundo, em nada se diferencia da de seus antecessores, quase todos da extrema direita, com algumas exceções, ao longo do século passado.

O documento antidemocrático imposto na Cúpula de Copenhague à comunidade internacional — que acreditara na sua promessa de cooperar na luta contra a mudança climática — foi outro dos fatos que desenganaram muitas pessoas no mundo. Os Estados Unidos, o país maior emissor de gases de efeito estufa, não estavam dispostos a realizar os sacrifícios necessários, apesar das palavras lisonjeiras prévias de seu presidente.

Seria interminável a lista de contradições entre as ideias que a nação cubana defende com grandes sacrifícios durante medio século e a política egoísta desse império colossal.

Apesar disso, não sentimos nenhuma animadversão por Obama, e muito menos pelo povo dos Estados Unidos. Consideramos que a Reforma da Saúde constitui uma importante batalha e um sucesso de seu governo. Não obstante, parece algo realmente insólito que 234 anos depois da Declaração de Independência, na Filadélfia, em 1776, inspirada nas ideias enciclopedistas francesas, o governo desse país aprovasse o atendimento médico para a imensa maioria de seus cidadãos, coisa que Cuba conseguiu para toda sua população há mais de meio século, apesar do cruel e desumano bloqueio imposto e ainda vigente por parte do país mais poderoso que jamais existiu. Antes, depois de quase um século de independência e sangrenta guerra, Abraham Lincoln conseguiu a liberdade legal dos escravos.

Não posso, por outro lado, deixar de pensar num mundo onde mais de um terço da população não tem atendimento médico e os medicamentos essenciais para garantir sua saúde, situação que se agravará na medida em que a mudança climática, a escassez de água e de alimentos sejam maiores, num mundo globalizado onde a população cresce, os bosques desaparecem, a terra agrícola diminui, o ar se torna irrespirável, e a espécie humana que o habita — que emergiu há menos de 200 mil anos, ou seja 3,5 bilhões de anos depois que surgiram as primeira formas de vida no planeta — corre o risco real de desaparecer como espécie.

Admitindo que a reforma sanitária significa um sucesso para o governo de Obama, o atual presidente dos Estados Unidos não pode ignorar que a mudança climática significa uma ameça para a saúde e, pior ainda, para a própria existência de todas as nações do mundo, quando o aumento da temperatura — além dos limites críticos que são visíveis— dilua as águas gélidas das calotas polares, e dezenas de milhões de quilômetros cúbicos armazenados nas enormes camadas de gelo acumuladas na Antártida, Groenlândia e Sibéria degelem numas poucas dezenas de anos, inundando todas as instalações portuárias do mundo e as terras onde hoje vive, se alimenta e trabalha grande parte da população mundial.

Obama, os líderes dos países ricos e seus aliados, seus cientistas e centros sofisticados de pesquisas sabem disso; é imposível que o ignorem.

Compreendo a satisfação com que se expressa e reconhece, no discurso presidencial, a contribuição dos membros do Congresso e da adminitração que tornaram possível o milagre da reforma sanitária, o qual fortalece a posição do governo face a lobistas e mercenários da política, que limitam as faculdades da adminitração. Seria pior se os que protagonizaram as torturas, os assassinatos por contrato e o genocídio ocupassem novamente o governo dos Estados Unidos. Como pessoa incontestavelmente inteligente e suficientemente bem informada, Obama sabe que não exagero nas minhas palavras. Espero que as tolices que, às vezes, expressa sobre Cuba não obnubilen sua inteligência.

Extraído do Jornal Granma. Para acesso completo clique em Granma.

quinta-feira, 4 de março de 2010

GEDUC 2010


Gestão da educação superior
Daniel Roedel*

Ao receber a divulgação do GEDUC 2010 - VIII Congresso Brasileiro de Gestão Educacional, cujo tema central é "a excelência na gestão como diferencial competitivo" e do qual participam, principalmente, dirigentes de Instituições de Ensino Superior - IES, coordenadores acadêmicos e de cursos, além de docentes, imediatamente me lembrei da edição 2009, que tive oportunidade de participar com o apoio do CRA-RJ.

Havia de minha parte, muita expectativa com relação aos temas sustentabilidade e responsabilidade social das IES. Ricardo Young, do Instituto Ethos, foi um dos palestrantes. Fez uma exposição clara e sensata a respeito da urgente necessidade de se trabalhar (e de se educar) visando a sustentabilidade socioambiental do planeta, apresentando números relevantes para confirmar suas preocupações com relação a uma orientação exclusiva para os resultados econômico-financeiros.

Ao meu lado, alguns dirigentes de IES se entreolhavam indiferentes ao tema e comentavam que a sustentabilidade pouco ou nada tinha a ver com os compromissos da educação superior. Para eles era mais urgente a busca da competitividade! Decididamente esses e outros dirigentes de IES não gostaram da exposição do Ricardo Young... Mas gostaram, e muito, de um famoso consultor, que já ocupou cargos públicos durante o infeliz período militar do país.

Em sua exposição o consultor deu dicas de como ser competitivo mesmo durante a crise (estávamos em março de 2009). No seu receituário se destacaram a renegociação dura de salários com os docentes (inclusive redução), a radicalização com os alunos inadimplentes e um maior aproveitamento do apoio governamental no preenchimento de vagas ociosas. Porém, o que causou grande conforto e satisfação na maioria dos dirigentes das IES foi a afirmação do consultor de que "... o lucro das IES era sagrado e não deveria ser mexido". Ora, mas estávamos justamente inseridos numa crise mundial decorrente da busca incessante por lucros e da financeirização do capital !!! E o consultor propunha a privatização do lucro e socialização do prejuízo... Sair da crise com mais choque de mercado e financiamento público. Aliás, recorrer ao apoio público é uma contradição dessa economia de mercado ou uma característica desse modelo?

A participação no GEDUC 2009, aliada a estudos e experiências dos anos recentes me permitiram confirmar esse forte movimento da educação superior em direção ao mercado. Hoje, o que tem predominado na gestão das IES é a busca incessante de resultados financeiros. A qualidade do ensino, o conteúdo e as metodologias perdem espaço ou têm seu campo reduzido e se subordinam a uma maximização dos ganhos financeiros de curto prazo. O tema não é novo. Aqui neste blog já publicamos algumas considerações a esse respeito.

Essa é uma prática que tem predominado em todos os ambientes submetidos à orientação neoliberal. Parece que vale tudo em nome do pragmatismo do fazer dinheiro no mercado. Os resultados estão aí na sucessão de crises, no aumento da miséria, na dilapidação do planeta, e principalmente na forte concentração de renda nas mãos de tão poucos...

E a educação superior, processo de longo prazo que deve formar cidadãos antes de formar profissionais, submetida a essa regra tem o seu escopo geralmente esvaziado para se tornar "eficiente" e "competitiva".

E então, vale a pena participar do GEDUC 2010? A responsabilidade social é tema de um dos fóruns. Mas e a audiência? Estará buscando o quê? Será que é possível nessas regras de mercado uma competitividade sustentável além da perspectiva eminentemente econômica? Que educação superior é requerida para formar cidadãos de um país que se pretende protagonista na ordem mundial?

A sociedade civil precisa se posicionar e nós voltaremos a esse importante assunto neste espaço.

*Diretor da Plurimus

segunda-feira, 1 de março de 2010

Homenagem


Palavra cantada, palavra escrita


Simone Amorim*

No fim de semana que passou, nos deixaram duas grandes personalidades da cultura brasileira, o sambista e compositor carioca Walter Alfaiate e o bibliófilo e empresário paulista José Mindlin. Cada um a seu modo, ambos dedicaram boa parte das suas vidas a admirar as palavras com um tipo especial de se relacionar com a linguagem. Um tipo apaixonado.

Alfaiate se relacionava com elas de forma mansa e boêmia, desde os anos 60 do século passado compunha como quem molda com palavras uma vestimenta especial para a vida. O sorriso sempre estampado no rosto parecia dizer que mais importante que o reconhecimento amplo de seu trabalho era fazer exatamente o que gostava e sem perder a elegância jamais.

Mindlin, o apaixonado pelos livros e pela palavra escrita, gostava de repetir que não saberia viver sem a companhia dos livros, muitos, milhares. A sua relação com a palavra escrita era apaixonada e voraz. Lia como quem precisa das palavras para descobrir-se, para sorrir. Os livros eram a sua casa, o seu refúgio. Difícil precisar se na verdade amava mais os livros ou a palavra escrita. Mais que um bibliófilo era, sobretudo, um leitor apaixonado.

A gente se acostuma a ter essas pessoas por perto e se orgulha de saber que são brasileiros, como nós, com prazeres que também cultivamos – samba e livros. Então quando acontece uma despedida dessas a gente sente uma pontinha de tristeza e saudade, nunca maior que a alegria de tê-los “conhecido”, admirado e compartilhado como ícones da nossa cultura brasileira.

Saudades!

*Mestre em Bens Culturais e Projetos Sociais pela FGV-RJ

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

Neoliberalismo e crise


Reflexões sobre a trajetória de hegemonização do capital financeiro no sistema do capital contemporâneo - Final

Hiran Roedel*


A emergência do papel central das cidades

A grande mobilidade que o capital havia alcançado agora o colocava em circulação mundial facilitando sua desterritorialização e reterritorialização constante. Porém, a outra face de sua valorização, a força de trabalho, permanecia territorializada.

A classe trabalhadora, entretanto, havia conquistado, pelas suas lutas políticas travadas ao longo do século XX, diversas barreiras de proteção e que agora, devido às novas exigências do capital, deveriam ser removidas. Diante disso, na passagem para o século XXI, ergueram contra elas forte campanha através da rede midiática globalizada.

Nessa perspectiva, o ataque político-ideológico tinha também como alvo a figura do Estado nacional, pois este não só passou a ser visto como entrave para a circulação do capital, como responsável pela regulação do conflito capital-trabalho. Do Estado deveriam ser varridas, portanto, as ferramentas que impediam a liberdade das atividades empresariais de modo a deixar o caminho livre para o mercado descentralizado - globalizado -, o que possibilitaria a ampliação da oferta e da “democratização” do consumo.

Como a conjuntura que se organizava se dava pela hegemonia do capital financeiro, bem como pelo avanço das inovações técnico-científicas, a realidade logo se fez mostrar com o aumento do desemprego. Ou seja, como a atual ampliação do capital não tinha mais a produção como condição central, a capacidade de gerar emprego se reduz e a taxa de desemprego cresce em todo o mundo.

Com o fortalecimento do ataque à figura do Estado nacional em fins do século XX, os olhares empresariais se deslocam do nacional para o local, colocando as cidades no centro de suas políticas, obrigando-as a se atualizarem, o que significa “...adotar os componentes que fazem de uma determinada fração do território o lócus de atividades de produção e de troca de alto nível ...” [1], e por isso não a cidade como um todo, mas apenas em seus espaços privilegiados onde há oferta de mão-de-obra apropriada aos novos meios de produção. Entretanto,

“O espaço é formado por dois componentes que interagem continuamente: a) a configuração territorial, isto é, o conjunto de dados naturais, mais ou menos modificados pela ação consciente do homem, através de sucessivo ‘sistemas de engenharia’; e b) a dinâmica social ou o conjunto de relações que definem uma sociedade em dado momento” [2].


Entra em cena o novo ator hegemônico na definição das hierarquias e organizações dos sistemas urbanos e das dinâmicas espaciais, o meio técnico informacional. Este passa a desempenhar um papel crucial na circulação, pois além da aceleração dos fluxos de capital, ao produzir consensos consolida visões de mundo assentadas na mercadologia da vida social. Nesse momento, as relações e conflitos sociais são igualmente impregnados pelo pensamento de que o papel do Estado é minimizado e o mercado é afirmado como o espaço privilegiado da administração dos conflitos e antagonismos sociais a partir de ditas organizações não governamentais (ONG). Até mesmo a política se vê dominada pela ideia da supremacia da mercantilização, passando a ser “... feita pelo mercado. Só que esse mercado global não existe como ator, mas como uma ideologia, um símbolo” [3].

As mudanças de conjuntura e com ela a emergência de novas tendências, impuseram uma nova dinâmica na configuração de territórios alterando, inclusive, o modo de se inserir tanto no mercado de trabalho quanto na produção de bens de consumo. A introdução do padrão técnico-científico informacional ao mesmo tempo em que acelera o ritmo da produção empurrou, também, massas de trabalhadores para o desemprego e/ou o trabalho informal. O “chão da fábrica” se modificou, levando consigo a alteração nas relações de produção.

A mundialização do capital reconfigurou, desse modo, o sistema de representação do mundo, bem como introduziu novos atores no jogo político reconstruindo o cenário e intensificando a complexidade do campo social. O seu correspondente foi a variedade de classes e segmentos de classe que se impôs alterando o campo semântico do antagonismo até então fundamental do capitalismo, agudizando antigas tensões e impondo novas.

Diante disso, a interação comunicacional não reconhece mais as barreiras geográficas, permitindo às regiões o desenvolvimento de relações econômicas, políticas e culturais com diversas regiões, independente da distância. Por isso, as particularidades de cada sociedade, construídas historicamente, potencialmente tendem a se amplificar. Logo, para que tal situação tendencial se manifeste e se adapte às exigências do capital financeiro, faz-se necessário o conhecimento das potencialidades locais e suas possibilidades de interconexões com o cenário global para que, então, possam se constituir no “lócus de atividades de produção e de trocas de alto nível”.

*Diretor da Plurimus

Referências

[1] SANTOS, Milton. Técnica, Espaço, Tempo – globalização meio técnico-científico informacional. São Paulo: Hucitec, 1998, p.32.
[2] SANTOS, Milton. Metamorfoses do Espaço Habitado. SP: Huicitec, 1997, p.111.
[3] SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. op ci., p.67.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

Sustentabilidade


Os avisos do Apocalipse*

Mauro Santayana

Os nova-iorquinos estão chamando Apocalipse 2 à tempestade de neve que se abate nestas últimas horas sobre o noroeste dos Estados Unidos. O primeiro teria sido registrado durante a semana passada. Não é ainda o fim do mundo, mas não deixa de ser um aviso. A concentração humana nas grandes metrópoles, com a perturbação da natureza, agrava as consequências dos desastres. Enquanto a neve desaba no Hemisfério Norte, atingindo a região mais densamente povoada e de ocupação pioneira dos Estados Unidos, no Brasil e em outros países do Sul as grandes chuvas fazem desabar as casas pobres e matam impiedosamente. Há também os terremotos, esses males inseparáveis do destino do planeta, posto que a ele congênitos. Mas, também no caso dos terremotos, desde os registrados na Antiguidade, os danos são equivalentes à densidade da ocupação nas áreas atingidas.

A partir do terremoto de Lisboa, ocorrido no dia 1 de novembro de 1755, discute-se essa relação, e o desastre chegou a alimentar a ideia de que a sede do Império deveria deslocar-se para o Brasil. Não há cifras confiáveis, mas se calcula que entre 30 mil e 90 mil pessoas tenham morrido, em uma população de 270 mil. Como relatam os historiadores, o terremoto causou profundo impacto no pensamento europeu. Todas as crenças, filosóficas e religiosas, sofreram grande abalo e, até hoje, filósofos ainda discutem os seus efeitos na razão humana.

A grande discussão que se faz é em torno do chamado “progresso”. Qualquer restrição ao desenvolvimento da técnica, com seus efeitos sobre a natureza, costuma ser considerada atitude reacionária. O mito do progresso infinito, no entanto, se choca com a consciência dos limites da vida humana e dos recursos do mundo. Parece impossível impor rédeas à busca do conhecimento e à aplicação tecnológica das descobertas. O físico brasileiro José Israel Vargas resume o raciocínio em uma frase linear: é impossível “desinventar”. Uma vez descoberto qualquer processo de intervenção na natureza, imediatamente surge seu proveito industrial, isto é, tecnológico. Se aceitarmos esse postulado, o homem pode estar sendo condenado a sucumbir vitimado pela própria razão, a razão que garantiu sua sobrevivência até o momento.

Há os que recusam a tese de que o homem está envenenando o meio ambiente, e atribuem as mudanças climáticas a fenômenos absolutamente naturais, sobre os quais só podemos ter escassa influência, na previsão de sua ocorrência e nas providências que reduzam os seus efeitos. Outros, no entanto, tentam provar que somos os responsáveis pela degradação do meio ambiente e que estamos nos condenando ao extermínio. É melhor considerar que o homem é um ser precário, e sua sobrevivência é ameaçada pelos fenômenos naturais e pela própria insensatez, como a submissão da técnica à ambição do lucro.

Sófocles, em Antígona, depois de manifestar sua profunda admiração pelos inventores, revela seu pessimismo, ao afirmar que eles ultrapassam toda a expectativa, “o talento e habilidade que conduzem o homem ora à luz, ora a malvados conselhos”. Não obstante o seu culto à inteligência e à razão, que levavam os grandes pensadores gregos à certeza de que a tarefa do homem era a de igualar-se aos deuses, havia os que advertiam contra essa presunção. Há sempre, ao lado do fulgor da inteligência, o perigo de que ela nos conduza aos “malvados conselhos”, identificados por Sófocles. Dentro desse raciocínio, a ciência deve estar submetida à razão política, mas isso só ocorrerá, quando formos capazes de dar razão à política, submetê-la à ética do humanismo. Isso significa planejar a vida para todos, buscando a igualdade e a justiça. Por enquanto morrem sobretudo os pobres, mas é provável que, diante da intensidade dos desastres, os grandes comecem a pensar de outra forma.

A neve sobre Nova York – onde começam a faltar alimentos – é um aviso, assim como foi o tsunâmi da Indonésia e o terremoto de Lisboa. Pouco importa se esses desastres – como o terrível terremoto de Porto Príncipe, com muito mais vítimas do que o de Lisboa – se devem só às terríveis forças cósmicas, ou também ao desvario do homem. O que importa é usar a razão e a ciência na busca da igualdade e da justiça, de forma a que o homem viva melhor, enquanto o mundo existir.

Extraído do Jornal do Brasil. Para acesso clique em JB.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Neoliberalismo e crise


Reflexões sobre a trajetória de hegemonização do capital financeiro no sistema do capital contemporâneo – parte II

Hiran Roedel*

Mercado globalizado e neoliberalismo

Nos anos 1990, especialmente com o desmonte geopolítico do bloco socialista que sucedeu ao fim da URSS em 1991, duas teses, que dialogam entre si, tornam-se hegemônicas nos campos econômico e político: a tese da globalização e a do neoliberalismo. A primeira oferece a explicação de que o mercado internacional, beneficiado pelas novas tecnologias que alteraram a relação tempo/espaço, modificou-se oferecendo maior rapidez de circulação do capital. Desse modo, o capital financeiro pôde estender seu domínio monetarizando o cotidiano no momento em que as multinacionais passaram a impor a lógica financeira às economias nacionais.

Ou seja, essas empresas, ao se utilizarem da poupança interna dos países onde se instalam, incorporam tais poupanças às suas lógicas financeiras. Com isso, quando as poupanças ganham o mercado globalizado sob a forma de expatriação dos lucros, de pagamento de serviços prestados, de inteligência comprada das multinacionais, podem posteriormente regressar aos países de origem como dívida ou crédito pelo qual devem ser pagos juros [1].

Nesse caso, a integração dos mercados de capitais se constitui em condição fundamental para a mobilidade do capital financeiro em nível internacional, pois possibilita a circulação mundial das poupanças internas e dos investimentos. Por isso, tal condição leva os Estados nacionais a perderem sua capacidade de regular ou determinar investimentos internos, dado que as taxas de juros passam a ser os determinantes desses investimentos [2].

A monetarização do cotidiano que se sucede leva à aparente afirmação do homo economicus de Adam Smith sustentado pela idéia de um mercado supostamente auto-regulado e que tem, na figura do rentista, a nova classe própria da globalização, a sua aparente confirmação empírica. Sua lógica agora impregna toda a vida social sustentada pelo discurso da eficiência da livre concorrência contraposta à incapacidade do Estado em gerenciar os recursos públicos. Emergia o discurso neoliberal como ferramenta para não só fundamentar uma lógica econômica, mas com a força enunciativa de uma nova realidade. Realidade esta assentada na “auto-gestão” do mercado, na tecnologia comunicacional e na falência simbólica e prática do Estado nacional.

O discurso neoliberal assume o protagonismo, a partir dos anos 1990, da representação da globalização como uma nova realidade que ao permitir a conexão em rede dos mercados, oferecia novas oportunidades de negócios às mais variadas localidades. A maior rapidez de circulação do capital, bem como a sua desterritorialização havia substituído, segundo os teóricos neoliberais, a dominação imperialista pela concepção de oportunidade de negócio. Afinal, o mercado deixara de ser organizado de modo hierarquizado para se postar em rede, horizontalizando-se.


*Diretor da Plurimus

Referências

[1] SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2000, pp. 43-44.
[2] HIRST, Paul e THOMPSON, Grahame. Globalização em questão. Petrópolis: Vozes, 1998, p.65.