quinta-feira, 25 de julho de 2013

Mídia

A raposa, o furão e o chupa-cabras

Celso Evaristo Silva*

Certa vez, no tempo em que os bichos falavam, ocorreu súbito desaparecimento de grande número de galinhas. O pânico tomou conta do galinheiro. Para desvendar o mistério, o xerife gavião nomeou uma comissão encarregada de apurar os fatos. Os componentes da comissão eram: a raposa, o furão e o chupa-cabras.

Ao final da apuração, o grupo elaborou um relatório conclusivo: “Durante a noite, alguma galinha meio tontinha caíra do poleiro, assustando as demais. Na confusão, a mais afoita delas lançou-se contra a tela de arame e abriu um buraco por onde muitas galinhas escaparam para a mata, onde se perderam para sempre”.

Todos os animais (com exceção, é claro, das desconfiadas galinhas sobreviventes) aceitaram o parecer final do distinto trio, o galinheiro foi remendado e a vida seguiu seu curso na fazenda.

Apesar de chinfrim, essa pequena fábula nos serve de alegoria lúdica para refletirmos sobre o que tem sido, nos dias de hoje, o papel da grande mídia no controle do fluxo e do cardápio das informações sobre as principais questões a serem levadas ao público; mais do que isso, na formação do imaginário coletivo. É...a mídia não mais informa, ela forma e/ou deforma. Tal qual o relatório dos bichos, ela cria pseudo realidades, a partir de recorte autorreferenciado, as quais devemos placidamente aceitar. É engenharia social na veia. E por que isso acontece? Simples. Não há contraditório. As análises sobre as recentes manifestações de rua não deixam dúvidas (pelo menos pra quem ainda arrisca pensar um pouco com a própria caixola) sobre o papel manipulador exercido pela mídia hegemônica.

Uma grande rede de televisão, por exemplo, não divulga notícias sobre protestos contra ela própria. Os defensores empedernidos da livre iniciativa dirão que é assim mesmo – não se deve esperar de nenhuma empresa a contra-propaganda. Bingo. Se a ética da informação deve ser construída sobre tais bases, ou seja, deve ser tratada como business, bem-vinda, então, a concorrência. Sem ela, o contraditório, o leque de opções, a escolha do consumidor ficam comprometidos na essência.

Mas prestem atenção: não basta, no caso específico da informação e do conhecimento, o aumento quantitativo de concorrentes, é preciso haver entre eles variedade qualitativa no trato da comunicação a ser veiculada. Entendido o qualitativo como a combinação de três elementos: eficácia na arrumação de dados, diversidade de pontos de vista na sua análise e honestidade intelectual na construção dos argumentos. A ausência de qualquer um deles compromete o trabalho final.

A existência de grupos midiáticos ideologicamente afeiçoados, mesmo em grande número (não é o caso brasileiro), não é mais do que um “monopólio repartido”; fato indefensável do ponto de vista ético e estético.

Assim como o consumidor tem direito de saber se o produto adquirido no supermercado foi elaborado ou não com transgênicos, se contém ou não glúten, o consumidor da informação deve ter acesso à mesma informação proveniente de fontes ideológicas quantitativa e qualitativamente distintas, para que ele, o tanto quanto possível, possa construir sua opinião sobre este ou aquele assunto. Necessita do contraditório para exercer o papel concomitante de consumidor e cidadão.

Entenda-se: não se trata de discutir sobre a pobreza ou riqueza argumentativa dos debatedores da gênese, desdobramento e implicações futuras de qualquer fenômeno, mas de matutarmos sobre o perfil ideológico dos analistas recrutados pela mídia na análise de qualquer situação, evitando circunscrever o debate a uma única matriz de pensamento.

Para ilustrar, destacamos as recorrentes críticas ao BNDES e o modo como vem atuando nos últimos anos, promovidas de modo sistemático e acrítico pela mídia hegemônica. A revista “ISTO É Dinheiro” publicou, este mês, matéria de capa intitulada “O jogo duvidoso do BNDES”. Difícil para um Paul Krugman – que dirá para um zé-ninguém-em-economia – como este que vos escreve – descrever em poucas linhas o corolário de contradições da matéria assinada pelos jornalistas econômicos (codinome para intelectual orgânico do liberalismo tupiniquim) Luís Artur Nogueira e Paulo Justus. Ambos escorados na argumentação política isenta do deputado César Colnago (PSDB-ES – surpresa?), nas análises econômicas do pragmático (nem neoliberal, nem desenvolvimentista) economista Mansueto Almeida e nos estudos conduzidos pelos pesquisadores Sergio Lazzarini, Aldo Musacchio e Claudia Bruschi, do Insper, Harvard Business School e FGV/SP, respectivamente. Jovens revelações do velho baluarte de instituições representativas do pensamento liberal.

A tese central é velha conhecida: o BNDES empresta muito a poucos ungidos, a juros subsidiados. Sem querer entrar no mérito da questão, por vezes, escolhas são necessárias. Obama as fez ao injetar dinheiro do contribuinte americano nas três grandes montadoras de veículos – Ford, GM e Chrysler. Os liberais e o partido republicano metralharam o presidente taxado de socialista/intervencionista. As três foram salvas da degola.

Na matéria, os articulistas citam mais críticas do Sr. Lazzarini, do Insper, ao BNDES, o qual não vê sentido em se fazer empréstimos a “países amigos”; deveria. Pra quem foi aluno visitante da Havard, deveria saber que não dá pra ser um player mundial sem arriscar e conquistar mercados. Os anglo-saxões e a China também fazem esse tipo de empréstimo. Desbravam, plantam agora pra colher décadas à frente. Os chineses (pouco afeitos à filantropia) investem direto na África.

A matéria de ISTO É proporcionaria interessante debate se o intuito fosse debater, estabelecer contrapontos, buscar alternativas, mas, na engenharia social a que ficou reduzida nossa mídia, a inoculação de memes, modelos mentais na cabeça de leitores e telespectadores desavisados parece ser a estratégia. Conduzir a opinião pública no sentido de apoiar determinados interesses políticos e econômicos sem o menor senso crítico é o objetivo maior. As galinhas que se cuidem.

*Sociólogo e Administrador

quinta-feira, 11 de julho de 2013

República

Choque de vaidades e poderes

Celso Evaristo Silva*

A teoria da separação de poderes está ligada ao nome do escritor francês, barão Charles de Montesquieu (1689-1755), e está manifesta na sua obra O Espírito das leis, de 1748, um clássico do direito constitucional. No capítulo destinado ao estudo da constituição inglesa, a qual ele tem como paradigma de representação política, Montesquieu identifica as três espécies de poder: o legislativo, o executivo das coisas e o judiciário. Ao primeiro caberia a elaboração das leis; ao segundo, sua execução; e a parte de julgamento dos litígios e o cumprimento legal ficariam com o terceiro poder. A garantia da liberdade dos cidadãos (no caso dos ingleses, súditos) dependeria do funcionamento independente de cada um dos poderes em relação aos outros dois. Além do funcionamento autônomo dessas instâncias, no plano individual, uma pessoa não poderia atuar simultaneamente em mais de uma delas, sob pena de quebrar o princípio básico de que “o poder limita o poder”, ocasionando choque imediato de interesses.

Enquanto fato histórico observável, o modelo de Montesquieu nunca ocorreu na íntegra, pelo menos é no que a maioria dos tratadistas do direito público e da ciência política parece concordar. Condicionantes históricos, um certo relativismo de atuação, assimetrias de poder fazem com que as instâncias acabem por invadir a seara uma da outra, gerando atritos. Tal realidade faria da “separação dos poderes” algo mais parecido com o “tipo ideal” weberiano do que com uma construção científica da teoria do direito, como talvez desejassem os positivistas.

Apesar do grau inevitável de subjetivismo envolvendo a questão, a tentativa de se manter o equilíbrio entre os três poderes, através do diálogo, da negociação e do aperfeiçoamento institucional tem demonstrado ser de fundamental importância para a garantia do Estado de direito e da democracia.

Vivemos no Brasil um momento delicado no que se refere ao princípio de independência dos poderes. A aprovação pelos deputados da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), da Câmara, da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) elevou a temperatura política. A proposta trata de alteração na sistemática do controle de constitucionalidade de normas realizado por tribunais e pela Suprema Corte. Ministros do STF manifestaram de forma clara sua objeção à proposta.

Por outro lado, os presidentes da Câmara e do Senado anunciaram que vão recorrer ao STF para que o plenário julgue a liminar concedida pelo ministro Gilmar Mendes, ao PSB, a qual suspendeu a tramitação do projeto de lei que restringe o acesso ao fundo partidário aos novos partidos, bem como o tempo destinado à propaganda no radio e na televisão. O PSB entendeu ser casuísmo da bancada governista o projeto, em face das eleições de 2014. Alguns parlamentares sentem cheiro de retaliação por parte do ministro do Supremo. Seria a conta da PEC.

Ao suspender a tramitação de um projeto de lei na Câmara, o ministro Gilmar Mendes, em nome de uma eventual inconstitucionalidade, adotou procedimento inédito de questionar algo ainda não aprovado em plenário. Lideranças do legislativo acusam a Corte de intervir em questões internas; ao passo que o STF lembra a demora crônica do congresso em avaliar e votar questões importantes. Um lado acusa o outro de “ativismo judicial”, o outro rebate com o argumento de “imobilismo e casuísmo”congressista.

A sensação é que houve uma troca de posições. O legislativo começa a entrar na seara jurídica, sem estar preparado ou “vocacionado” para isso, enquanto o STF parece sofrer um processo acelerado de politização, ou, melhor qualificando, partidarização, desde o julgamento do chamado “processo do mensalão”, tão bem coberto pela a mídia (o quarto poder, inexistente no modelo de Montesquieu, mas determinante nos dias de hoje).

O parlamento, pela origem de representação dos diversos estratos sociais dos seus integrantes, tem por função debater mais aberta e apaixonadamente os temas políticos, lidar com o jogo de interesses e buscar acordos que possibilitem a governança do país, sem excluir nem deixar de reconhecer a importância de uma oposição atuante. Quanto à Corte Suprema, é dela esperado maior temperança, tecnicidade jurídica – principalmente no que tange à constitucionalidade do que lhe é apresentado – e discrição na sua maneira de atuar. A variável política estará sempre presente em qualquer instituição; seria ingenuidade imaginá-la ausente do STF, mas este fato não elide a necessidade de tratá-la com o máximo cuidado e maturidade coletiva.

Porém o que se tem visto ultimamente é a constância com que questões são transferidas do fórum legislativo para serem debatidas e aprovadas na arena do Supremo (não está o legislativo abrindo mão de sua soberania?); e, não menos recorrente, alguns ministros do Supremo virando verdadeiras celebridades globais, ao ponto de uma simples aparição em um restaurante, show ou qualquer evento público, no Rio ou em São Paulo, ser motivo para vibrante ovação por parte dos presentes. Ministros do Supremo dando longas entrevistas, sendo televisados passando pito em magistrados ou posando para capa de revista não contribuem para o cumprimento de sua missão.

A premissa também é válida para deputados mais preocupados em aparecer na mídia do que em trabalhar pela elevação da atividade política. É sempre bom lembrar aos representantes dos três poderes quem lhes outorgou o poder de representação: a soberania popular.

A quem interessa o desgaste dos três poderes? Essa pergunta não pode ser esquecida por ninguém. Em política, “A quem interessa...?” é a pergunta de onde se deve partir para analisar qualquer situação, pessoa, grupo social ou fato.

Sigmund Freud (1856-1939) tinha uma frase maravilhosa sobre o salto alto nosso de cada dia:

"Uma pessoa pode defender-se das críticas; contra o elogio, ela estará sempre indefesa".

Nossos homens públicos deveriam observá-la à risca.

*Sociólogo e Administrador