quinta-feira, 28 de julho de 2011

Terrorismo na Noruega

Tragédia Kafkiana

Celso Evaristo Silva*


A tragédia ocorrida na Noruega guarda macabras semelhanças com o atentado perpetrado por Timothy McVeigh, em 1995, em Oklahoma, EUA. Em ambos os casos, um terrorista de extrema-direita com simpatias expressas por teses neonazistas explode um prédio público e alega ter cometido o crime sozinho.

Mesmo aceitando-se a tese pouco provável da ação isolada de Anders Breivik, no atentado norueguês, é pouco crível que as ideias inspiradoras de ambas as tragédias tenham brotado em seus cérebros doentios por geração espontânea. Não, não brotaram. Foram implantadas lá por um mecanismo perverso de manipulação psicológica contínua à distância. Em tempos idos, pré Web, para se formar um alucinado controlável (afinal, o sujeito pode ser psicopata, mas, para seus manipuladores, ele tem que ser efetivo e atingir o alvo “certo”) era necessário primeiro encontrá-lo; depois recrutá-lo, catequizá-lo com meia dúzia de clichês com forte apelo emocional e anti-qualquer-coisa, para aguçar seu ódio latente, treiná-lo para a ação objetiva e, por fim, monitorar a fera junto com seus “coleguinhas”. Pronto, estava criada uma falange. Assim fizeram os fascistas italianos, os nazistas de Hitler, a Guarda de Ferro romena etc. Hitler e Mussolini aproveitaram-se do caos em seus países, acusaram os “inimigos internos e externos” de traição à pátria – judeus, bolcheviques, socialistas, ciganos, democratas ocidentais etc – e deram o golpe final nas cambaleantes democracias italiana e alemã, instaurando ditaduras militaristas apoiadas por grandes grupos econômicos e financeiros.

Só para ilustrar, após as eleições legislativas de 1932, o então presidente alemão, o velho Hindemburg, recebe uma carta pedindo a nomeação de Adolf Hitler para o posto de chanceler (primeiro-ministro), assinada por alguns dos mais importantes industriais e banqueiros da Alemanha, tais como Hjalmar Schacht, Kurt von Schröder, Fritz Thyssen, Friedrich Reinhardt, Albert Vögler, Fritz Beindorff, Ewald Hecker, August Rostberg, Emil Helffrich e outros.

Nos dias de hoje esse processo utilizado pelos fascistas do início do século XX seria complicado; exporia demais seus mentores, demandaria muito tempo e recursos; já não seria tão eficaz quanto um clicar de mouse. Um lunático pode sozinho em casa acessar sites divulgadores de mensagens com conteúdo intolerante e violento. Nesse ambiente virtual, ele poderá buscar os valores mais estapafúrdios pra justificar sua ânsia criminosa bem como aprender a fabricar artefatos para explodir escolas, estações de trem e tudo mais. Isso já aconteceu em vários lugares, inclusive no Brasil.

A maior dificuldade para se combater grupos terroristas atualmente é que eles não possuem uma estrutura organizada, mas são células nascidas, na maioria das vezes, pela iniciativa de poucos indivíduos. Basta aos grandes mentores das estratégias globais do terror disponibilizarem na Web: valores, ideias, informações e treinamento à distância; o resto caminha por conta dos organizadores das pequenas células. É claro que, em alguns casos, dependendo do sucesso das ações empreendidas, há o financiamento via lavagem de dinheiro, à semelhança do crime organizado. Mas, esse aspecto não é o determinante para a existência de tais grupos.

Tanto os fundamentalistas religiosos quanto os grupos neonazistas ampliam sua propaganda na internet aproveitando o clima de insegurança econômica, o desemprego e a onda de imigrantes em direção aos países ricos, para instigar o ódio e combater a democracia, seu verdadeiro inimigo. Sim, a destruição da democracia é o seu objetivo maior no longo prazo.

Ao mesmo tempo em que esses grupelhos, como o fórum Nordisk sueco, com o qual o extremista norueguês mantinha contato, partem para o apoio à ação direta, forças conservadoras mais articuladas à política tradicional pressionam a sociedade rumo a uma guinada à direita. O surgimento do Tea Party, nos EUA, o esquentamento da Frente Nacional, na França e de outros partidos ultraconservadores na Europa criam um quadro preocupante quanto ao futuro das conquistas democráticas nos países centrais.

Momentos de crise social, econômica e política sempre formam terreno fértil para o fortalecimento de grupos extremistas já existentes e brotamento de novos. É quando mais precisamos do funcionamento adequado das instituições democráticas. Quando o Estado de Direito sucumbe, sobrevém a barbárie. As circunstâncias atuais possibilitaram o recrudescimento de movimentos fascistoides até mesmo em países de forte tradição democrática.

Isso traz à mente um conto quase premonitório de Franz Kafka (1883-1924), publicado em 1914, chamado Na Colônia Penal.  Nele Kafka conta a história de um regime tirânico implantado pelo comandante de uma colônia penal. Uma máquina terrível era usada para supliciar os condenados. Após a morte do comandante e o fim do regime tirânico, seus seguidores o enterraram numa taverna, embaixo de uma mesa. Sua lápide continha a seguinte descrição:

"Aqui jaz o antigo comandante. Seus adeptos, que agora não podem dizer o nome, dedicaram-lhe esta pedra tumular. Existe uma profecia segundo a qual o comandante, depois de determinado número de anos, quando seus adeptos forem mais numerosos, ressuscitará e os chefiará para a reconquista da colônia. Tende fé e esperai!"

(*) Administrador, Sociólogo e Professor.

quinta-feira, 21 de julho de 2011

Desenvolvimento e cultura

Cultura e desenvolvimento local*
Ladislau Dowbor**

Antes de tudo, é preciso saber de que cultura falamos. Há uma visão estreita de cultura, no sentido ministerial, digamos assim, e na concepção pre-Gilberto Gil, de que se trata de organizar eventos simpáticos com artistas, inaugurar museus, promover eventos no teatro municipal, canalizar os impostos, com os quais empresas estão desgostosas, para financiar produtos culturais. Nada contra essa visão que é necessária e útil. Mas se trata aqui, de uma faceta apenas, e limitada, muito reminiscente de la culture, com sotaque francês, e de imortais maranhenses. Economicamente, é a cultura do mecenato, da generosidade, do verniz elegante de quem já acumulou.

Há também uma visão mais popular, sem dúvida, mas igualmente estreita, que tem sido chamada de “indústria da cultura”, e que os americanos chamam de entertainment industry. Com a expansão do rádio, do cinema, da televisão e do 3G; com a penetração da TV em praticamente qualquer residência (95% dos lares têm TV no Brasil), com crianças assistindo, em média, 4,5 horas por dia; com o controle dos meios de comunicação pertencente, basicamente, a quatro grupos privados, gerou-se uma máquina de fornecimento de produtos culturais padronizados, de alguns pontos centrais para todo o País. É uma cultura de recepção, passiva e não-interativa, centrada na geração de comportamentos comerciais, já que o seu ciclo econômico passa pela publicidade, cujo financiamento, alias, sai do nosso bolso.

O efeito é, por um lado, o consumismo obsessivo, vitimando, particularmente, as crianças; e, por outro lado, uma cultura apelativa, que trata, essencialmente, de manter a audiência, ainda que seja transformando crime em espetáculo. Trata-se, literalmente, da indústria do consumo, em que a cultura entra apenas como engodo. No conjunto, esta dinâmica gerou uma imensa passividade cultural. A criação, esta depende do criador entrar no seleto grupo que uma empresa irá apoiar, para virar, na melhor tradição do “jabá”, um sucesso. A cultura deixa de ser uma coisa que se faz, uma dimensão criativa de todas as facetas da nossa vida, e passa a ser uma coisa que se olha, sentado no sofá, publicidade de sofá incluída.

A era da internet vem, naturalmente, transtornar o confortável universo dos latifundiários das ondas magnéticas, das editoras, dos diversos tipos de intermediários. Filmes simples, mas criativos, a partir de qualquer celular encontram enorme sucesso no YouTube; músicas alegres, tristes ou debochadas passam a circular no planeta sem precisar da aprovação de emissoras; artesãs do vale do Jequitinhonha, que vendiam artesanato a 10 reais para se espantarem ao saber que eram revendidas por R$150, passaram a furar os bloqueios dos atravessadores e a vender na internet. Livros que nunca estão disponíveis nas livrarias aparecem online, com muito mais leitores. Nas universidades, surge o OCW – Open Course Ware, que assegura ciência gratuita e dinamiza a pesquisa. É a desintermediação em marcha, fim do controle absoluto de quem não cria, mas fornece o suporte material para a criação, e se apropria do copyright em nome dos interesses do autor. E sempre o argumento de que estão ajudando o pobre autor.

Na favela de Antares, no Rio de Janeiro, dotada de banda larga, os jovens plugados passam a fazer design e a prestar serviços informáticos diversos, o que lhes rende dinheiro, e fazem cultura por prazer e diversão. Nas cidades com acesso WiMax, banda larga sem fio, as crianças têm na ponta dos dedos acesso a criações científicas, lúdicas ou artísticas de qualquer parte do mundo, esbarram no inglês macarrônico mas suficiente, criam comunidades virtuais.

De certa forma, a reapropriação dos canais de criação cultural pelas comunidades gera uma outra cultura, agora, sim, no sentido mais amplo. Uma comunidade periférica ou um município distante já não são isolados, ou inviáveis, como os classificam os economistas. O resgate da identidade cultural é central para um resgate muito mais amplo do sentimento de pertencer ao mundo que se transforma, de participar da criação do novo. E o desenvolvimento é apenas em parte uma questão de fatores materiais, de investimentos físicos. A atitude criativa está no centro do processo de desenvolvimento em geral. Estamos entrando na era da economia do conhecimento, e a cultura, longe de ser a cereja no bolo dos afortunados, passa a ser o articulador de novas identidades locais.

*Extraído de Blog Acesso.
**Formado em Economia Política pela Universidade de Lausanne, na Suíça; Doutor em Ciências Econômicas pela Escola Central de Planejamento e Estatística de Varsóvia, na Polônia (1976). Atualmente, é professor titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP, e continua com o trabalho de consultoria para diversas agências das Nações Unidas, governos e municípios. Atua como conselheiro na Fundação Abrinq e no Instituto Polis, entre outras instituições

quinta-feira, 14 de julho de 2011

Unidades de Polícia Pacificadora

Resultado de nossa enquete: as unidades de polícia pacificadoras – UPP têm condições de contribuir para o desenvolvimento socioeconômico das regiões onde estão instaladas?
   
  • Sim, porque ao serem eficazes no enfrentamento da violência naturalmente o mercado responde de modo favorável e direciona investimentos privados necessários, o que estimula também a presença dos poderes públicos  7%
  • Sim, desde que estejam estrategicamente articuladas com outras políticas públicas e ações empresarias que enfatizem investimentos sociais e geradores de trabalho e renda  48% 
  • Não, porque somente enfrentar o problema da violência não é suficiente para reverter o quadro de mazelas econômico-sociais presente nessas regiões  16% 
  • Não, porque essas unidades de polícia têm apenas a finalidade de dar uma satisfação à mídia em virtude dos eventos internacionais previstos para acontecerem no Rio de Janeiro nos próximos anos  24%
  • Não tenho acompanhado os debates sobre as UPP  5%

Nossa opinião

O resultado da enquete, onde o maior número de nossa audiência identifica que as UPPs apenas terão condição de serem efetivas políticas de desenvolvimento socioeconômico, desde que estejam estrategicamente articuladas com outras políticas públicas e ações empresarias que enfatizem investimentos sociais e geradores de trabalho e renda, demonstra de certa forma um amadurecimento na percepção de que, nenhuma ação isolada é capaz de resolver demandas tão complexas quanto as questões sociais, urbanas, de uma metrópole do tamanho da cidade do Rio de Janeiro.

É claro que concordamos com essa ideia expressa no resultado, mas o mais importante aqui nos parece ser o destaque ao fato de que essa política de pacificação das localidades mais empobrecidas da cidade pode ser uma excelente oportunidade de estender outros atendimentos em prol da melhoria de vida de uma parcela da população que durante tantos anos se viu alijada das mínimas condições de sobrevivência digna, porque se via cerceada do direito básico de circular pela cidade. Itens tão básicos quanto o atendimento de serviços de infra-estrutura, transporte, equipamentos urbanos etc. Nesse sentido, acabar com a violência pode ser um excelente primeiro passo.

Por último, cabe concordar com um outro ponto destacado que é o fato de que, além de políticas articuladas – segurança, habitação, infra-estrutura etc., deveríamos ter atores articulados por um objetivo que transcenda a “maquiagem para as grandes festas de 2014 e 2016”. Só assim, reunindo Estado, Sociedade civil organizada e o mercado (empresários, empresas e suas visões estratégicas), talvez pudéssemos começar a reconstruir a nossa cidade maravilhosa, articulando mudanças profundas de planejamento urbano e justiça social, pelo desenvolvimento do Rio de Janeiro e de todos os cariocas.

Devemos estar otimistas, com muita expectativa, mas, sobretudo sempre envolvidos em todos os processos, programas, projetos e oportunidades de representatividade nos fóruns decisórios que capitanearão essa grande oportunidade de mudança.

Desarmamento e educação

É possível dar escola a todas as crianças imediatamente*

Jorge Abrahão e Cristina Spera

Seis dias por ano dos gastos militares das nações ricas garantiriam todas as crianças do mundo na escola. É o que se deduz no novo relatório da Unesco.

Relatório divulgado no início da semana pela Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) mostra que tem havido avanços na universalização do acesso ao ensino fundamental no mundo todo, mas eles são lentos. E que, se houver vontade política, em pouco tempo todas as crianças do mundo podem ir à escola.

Em abril de 2000, os governos de 160 países que integram o sistema da Organizações das Nações Unidas (ONU) reuniram-se em Dacar, capital do Senegal, no Fórum Mundial de Educação, organizado pela Unesco, e criaram a iniciativa Educação para Todos, que estabeleceu seis metas a serem atingidas até 2015 e o monitoramento delas, com a publicação de relatórios periódicos.

As seis metas do programa, assumidas como compromisso de Estado pelos 160 países participantes do fórum (inclusive o Brasil), são as seguintes:
  • ampliar a educação para a primeira infância;
  • universalizar o acesso à educação básica;
  • garantir o atendimento de jovens em programas de aprendizagem;
  • reduzir em 50% a taxa de analfabetismo;
  • eliminar as disparidades de genêro no acesso ao ensino; e
  • melhorar a qualidade da educação.
O monitoramento é feito a cada ano. No último dia 4 de julho, foi lançado um estudo específico sobre a situação educacional das crianças em países em conflito. O trabalho se chama A Crise Oculta: Conflitos Armados e Educação e traz números bastante dramáticos sobre infância e escolarização, principalmente nos países envolvidos em guerras. Este recorte específico foi feito para alertar e inspirar os governos e a sociedade civil no resgate dos valores sobre os quais a Unesco (e a própria ONU) foi criada: libertar o mundo do flagelo da guerra, por meio da educação, da cultura e da difusão do conhecimento científico, tendo como diretriz a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Como o próprio relatório concluiu, infelizmente o mundo ainda está bem longe desse ideal preconizado pelos arquitetos do sistema multilateral. Mas não é uma distância tão grande que impeça a vontade política de superar os conflitos e atingir as metas do programa.

Hoje, mais do que em qualquer outra época, a humanidade tem conhecimento e recursos para resolver os graves problemas que sempre a afligiram. Por que não o fazemos?

Os resultados do relatório

A Crise Oculta destaca que o mundo não está no caminho certo para atingir as metas do programa Educação para Todos em 2015. Enfatiza que houve avanços importantes, como a paridade de gênero nas matrículas da educação primária, a redução pela metade do número de crianças fora da escola, principalmente na Ásia e na África subsaariana, e o avanço da educação pré-escolar na América Latina, onde 62% das crianças até 5 anos estão na escola.

Todavia, ainda há 67 milhões de crianças fora da escola. Metade delas se concentram em 15 países, entre os quais o Brasil (a Unesco contabiliza 700 mil crianças brasileiras ainda fora da escola).

Se os entraves à educação universal não forem superados, o mundo não conseguirá dar um futuro bom para as crianças de hoje. Entre os obstáculos a superar, a Unesco destaca:
  • a fome. Nos países em desenvolvimento, 195 milhões de crianças de até 5 anos de idade (uma em cada três) sofrem desnutrição que causa danos irreparáveis ao seu desenvolvimento cognitivo e ao seu processo educacional, no longo prazo;
  • o abandono da escola antes de completar o ensino fundamental;
  • as disparidades de gênero, que continuam a dificultar o progresso da educação. Se o mundo tivesse alcançado a paridade de gênero no nível primário em 2008, teria havido um adicional de 3,6 milhões de meninas na escola primária;
  • a desvantagem de gênero, que custa vidas. Se a taxa média de mortalidade infantil da África subsaariana caísse para o nível associado às mulheres que têm alguma educação secundária, haveria 1,8 milhão de mortes a menos;
  • a qualidade da educação, muito baixa em vários países. Milhões de crianças saem da escola primária com níveis de leitura, escrita e competências matemáticas muito abaixo do esperado;
  • a falta de professores. Serão necessários mais de 1,9 milhão de professores até 2015 para que a educação primária universal seja atingida;
  • o analfabetismo de adultos. Há 796 milhões de adultos analfabetos no mundo, a maioria deles vivendo em dez países, entre os quais o Brasil. Para a Unesco, nosso país ainda possui 14 milhões de analfabetos.
Essas lacunas exigem investimento dos próprios países e, no caso das nações mais pobres, de ajuda internacional. A Unesco calculou o quanto a sociedade global precisa investir por ano para garantir as metas do programa Educação para Todos até 2015: US$ 16 bilhões por ano. É muito? Certamente não. Essa quantia corresponde a seis dias por ano de gastos militares dos países ricos.

*Extraído do Instituto Ethos. Para acesso completo ao artigo acesse Ethos.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

João Gilberto

Hô-ba-lá-lá, JOÃO
Celso Evaristo Silva*

E João Gilberto chega aos 80. Nasceu em 10 de junho de 1931.

O ano é 1958. O long-play Canção do Amor Demais é gravado com 13 músicas da parceria Tom Jobim/Vinicius de Morais. A intérprete é Elizeth Cardoso, a divina. Nas faixas ‘1’ (Chega de saudade) e ‘8’ (Outra vez), um baiano de Juazeiro tocava um violão diferente de qualquer coisa já ouvida antes aqui e alhures. Foi o início dum frisson no meio artístico cultural do Rio de Janeiro, que só aumentou quando, no mesmo ano, foi lançado o LP Chega de Saudade, já com o baiano cantando músicas suas, da citada parceria e do compositor Carlos Lyra.

Passados 52 anos, fica difícil dimensionar o tamanho da celeuma gerada pela nova forma de cantar, tocar violão e de apresentar-se sintetizada por João Gilberto. Mais tarde esse impacto se estenderia para o restante do Brasil e a influência impressionista de João alcançaria o mundo.

Um ano antes do Canção do Amor Demais, João fizera uma visita a Roberto Menescal, em seu apartamento na Galeria Menescal, Copacabana (o nome da galeria e o sobrenome de Roberto são coincidências): - Roberto, vim te mostrar duas músicas minhas. As músicas eram: Bim-Bom e Hô-ba-lá-lá. Menescal ficou alucinado, não tanto com as letras das músicas, mas com a nova bossa de tocar e cantar de João. Pegou-o pelo braço e foi apresentar a novidade à turma: Tom, Ronaldo Bôscoli, Nara Leão, Carlos Lyra e tutti quanti.

Menescal e a galera da futura Bossa Nova conheciam o João fuçador de boates, que perambulava pela madrugada da zona sul do Rio, em busca de brechas para dar seu recado à la Orlando Silva (é . . . muita gente não sabe, mas João é tenor e começou imitando os vozeirões de Francisco Alves e Orlando Silva). Porém, o novo estilo era algo totalmente diferente do João conhecido. Os contratempos musicais, as dissonâncias, o jeito quase falado de cantar, a ausência completa de vibratos; tudo era novo demais; estranho, mesmo para mentes e ouvidos jovens.

Há quem veja nessa revolução estética a continuação da Semana de Arte Moderna de 1922. A expressão, no plano cultural, das mudanças socioeconômicas de um país que se industrializava, urbanizava e cuja classe média ansiava por padrões culturais com os quais pudesse se identificar. Pode ser.

Influência do jazz? Sem dúvida. Ele, Tom Jobim, Johnny Alf e futuros bossanovistas frequentavam as Lojas Murray, ponto de encontro dos amantes do jazz no centro do Rio, onde, para desespero do gerente da loja, curtiam o som de Nat King Cole, Frank Sinatra, Charlie Parker. Quando sobrava algum dinheirinho, levavam pra casa um disco.

João nunca abriu mão do Brasil. Nunca trocou o ‘S’ pelo ‘Z’. Sem jamais resvalar para o chauvinismo tacanho de alguns puristas da brasilidade, sempre foi esteticamente um genuíno artista brasileiro, seguidor da boa tradição de Villa-Lobos, Pixinguinha, Radamés Gnatalli. Junto com a formação clássica de Tom, incorporou ao samba e à canção brasileira novas possibilidades harmônicas e a sintaxe rítmica de improvisação do jazz. É possível garimparmos em sua obra sutis elementos do bebop e do jeito cool de cantar galvanizados na mais pura linhagem de sambistas como Geraldo Pereira, Ciro Monteiro e Roberto Silva; este último, não por acaso, citado por João, numa de suas raras entrevistas, como exemplo de grande cantor.

Como estava equipado com excessos de perfeccionismo conceitual/instrumental, os contornos da música popular tradicional dos anos 1950 já não mais o absorviam. Assim, ele foi procurar novos desafios a resolver utilizando, às vezes, o mesmo material musical, incorporando um conteúdo harmônico mais apurado e extenso, acrescentando ao canto um zig-zag rítmico mais complexo. Em João, voz e violão formam um todo tenso, indissociável e extremamente melodioso.

A “batida” do seu violão, síntese do novo estilo minimalista chamado bossa nova, influenciou gerações sucessivas de violonistas como Luis Bonfá, Baden Powell, Rosinha de Valença, Paulinho Nogueira, Rafael Rabelo, Joe Pass, John Pizzarelli e outros virtuoses. O mesmo se pode dizer do seu jeito de cantar baixinho e Giga afinado.

Enquanto o Brasil pós-64 era aos poucos tragado pelo mainstream da cultura de massas anglo-saxônica, João encantava lá fora dizendo a todo mundo o que ninguém diz. Globalizava a música brasileira, abrindo caminho para a grande diáspora de nossos melhores músicos. Na sua platéia, mestres como Dizzy Gillespie, Miles Davis, Sarah Vaughan e Coleman Hawkins, com ingressos pagos para assisti-lo.

João Gilberto Prado Pereira de Oliveira, baiano de Juazeiro, morador do Rio, cidadão do mundo. Um abraço em você.

*Administrador e Sociólogo

Capital financeiro

Considerações sobre a trajetória de hegemonização do capital financeiro
no sistema do capital contemporâneo - final

Hiran Roedel*

Mercado globalizado e neoliberalismo

Os anos 90, especialmente com o desmonte geopolítico do bloco socialista que sucedeu ao fim da URSS em 1991, duas teses, que dialogam entre si, tornam-se hegemônicas nos campos econômico e político: a tese da globalização e a do neoliberalismo. A primeira oferece a explicação de que o mercado internacional, beneficiado pelas novas tecnologias que alteraram a relação tempo/espaço, modificou-se oferecendo maior rapidez de circulação do capital. Desse modo, o capital financeiro pôde estender seu domínio monetarizando o cotidiano no momento em que as multinacionais passaram a impor a lógica financeira às economias nacionais.

Ou seja, essas empresas, ao se utilizarem da poupança interna dos países onde se instalam, incorporam tais poupanças às suas lógicas financeiras. Com isso, quando as poupanças ganham o mercado globalizado sob a forma de expatriação dos lucros, de pagamento de serviços prestados, de inteligência comprada das multinacionais, podem posteriormente regressar aos países de origem como dívida ou crédito pelo qual devem ser pagos juros [6].

Nesse caso, a integração dos mercados de capitais se constitui em condição fundamental para a mobilidade do capital financeiro em nível internacional, pois possibilita as poupanças internas e os investimentos se espalharem mundialmente. Por isso, tal condição leva os Estados nacionais a perderem sua capacidade de regular ou determinar investimentos internos, dado que as taxas de juros passam a ser os determinantes desses investimentos [7].

A monetarização do cotidiano que se sucede leva à aparente afirmação do homo economicus de Adam Smith sustentado pela ideia de um mercado supostamente auto-regulado e que tem, na figura do rentista, a nova classe própria da globalização, a sua aparente confirmação empírica. Sua lógica agora impregna toda a vida social sustentada pelo discurso da eficiência da livre concorrência contraposta à incapacidade do Estado em gerenciar os recursos públicos. Emergia o discurso neoliberal como ferramenta para não só fundamentar uma lógica econômica, mas com a força enunciativa de uma nova realidade. Realidade esta assentada na “auto-gestão” do mercado, na tecnologia comunicacional e na falência simbólica e prática do Estado nacional.

O discurso neoliberal assume o protagonismo, a partir dos anos 90, da representação da globalização como uma nova realidade que ao permitir a conexão em rede dos mercados, oferecia novas oportunidades de negócios às mais variadas localidades. A maior rapidez de circulação do capital, bem como a sua desterritorialização havia substituído, segundo os teóricos neoliberais, a ideia de imperialismo pela idéia de oportunidade de negócio. Afinal, o mercado deixara de ser organizado de modo hierarquizado para se postar em rede, horizontalizando-se.

A emergência do papel central das cidades

A grande mobilidade que o capital havia alcançado agora o colocava em circulação mundial facilitando sua desterritorizalição e reterritorizalização constante. Porém, a outra face de sua valorização, a força de trabalho, permanecia territorializada.

A força de trabalho, entretanto, havia conquistado, pelas lutas políticas da classe trabalhadora ao longo do século XX, diversas barreiras de proteção e era necessário que fossem removidas. Diante disso, na passagem para o século XXI, ergueram contra elas forte campanha através da rede midiática globalizada.

Nessa perspectiva, o ataque político-ideológico tinha também como alvo a figura do Estado nacional, pois este não só passou a ser visto como entrave para a circulação do capital, como responsável pela regulação do conflito capital-trabalho. Do Estado deveriam ser varridas, portanto, as ferramentas que impediam a liberdade das atividades empresariais de modo a deixar o caminho livre para o mercado descentralizado - globalizado -, o que possibilitaria a ampliação da oferta e da “democratização” do consumo.

Como a conjuntura que se organizava se dava pela hegemonia do capital financeiro, bem como pelo avanço das inovações técnico-científicas, a realidade logo se fez mostrar com o aumento do desemprego. Ou seja, como a atual ampliação do capital não tinha mais a produção como condição central, a capacidade de gerar emprego se reduz e a taxa de desemprego cresce em todo o mundo.

Com o fortalecimento do ataque à figura do Estado nacional em fins do século XX, os olhares empresariais se deslocam do nacional para o local, colocando as cidades no centro de suas políticas, obrigando-as a se atualizarem, o que significa “...adotar os componentes que fazem de uma determinada fração do território o lócus de atividades de produção e de troca de alto nível ...”[8], e por isso não a cidade como um todo, mas apenas em seus espaços privilegiados onde há oferta de mão-de-obra apropriada aos novos meios de produção. Entretanto,

“O espaço é formado por dois componentes que interagem continuamente: a) a configuração territorial, isto é, o conjunto de dados naturais, mais ou menos modificados pela ação consciente do homem, através de sucessivo ‘sistemas de engenharia’; b) a dinâmica social ou o conjunto de relações que definem uma sociedade em dado momento” [9].

Entra em cena o novo ator hegemônico na definição das hierarquias e organizações dos sistemas urbanos e dinâmicas espaciais, o meio técnico informacional. Este passa a desempenhar um papel crucial na circulação, pois além da aceleração dos fluxos de capital, ao produzir consensos consolida visões de mundo assentadas na mercadologia da vida social. Nesse momento, as relações e conflitos sociais igualmente são impregnados por esse pensamento em que o papel do Estado é minimizado e o mercado é afirmado como o espaço privilegiado da administração dos conflitos e antagonismos sociais a partir de ditas organizações não governamentais (ONG). Até mesmo a política se vê dominada pela idéia da supremacia da mercantilização, passando a ser “... feita pelo mercado. Só que esse mercado global não existe como ator, mas como uma ideologia, um símbolo” [10].

As mudanças de conjuntura e com ela a emergência de novas tendências, impuseram uma nova dinâmica na configuração de territórios alterando, inclusive, o modo de se inserir tanto no mercado de trabalho quanto na produção de bens de consumo. A introdução do padrão técnico-científico informacional ao mesmo tempo em que acelerou o ritmo da produção empurrou, também, massas de trabalhadores para o desemprego e/ou o trabalho informal. O “chão da fábrica” se alterou, levando consigo a alteração nas relações de produção.

A mundialização do capital alterou o sistema de representação do mundo, bem como introduziu novos atores no jogo político construindo um novo cenário que intensificou a complexidade do campo social. O seu correspondente foi a variedade de classes e segmentos de classe que se impôs alterando o campo semântico do antagonismo até então fundamental do capitalismo, agudizando antigas tensões e impondo novas.

Diante disso, a interação comunicacional não reconhece mais as barreiras geográficas, permitindo às regiões o desenvolvimento de relações econômicas, políticas e culturais com diversas regiões independente da distância. As particularidades de cada sociedade, construídas historicamente, potencialmente tendem a se amplificar. Contudo, para que tal situação tendencial se manifeste, faz-se necessário o conhecimento das potencialidades locais e suas possibilidades de interconexões com o cenário global.

6 – SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro: Record, 2000, pp. 43-44.
7 – HIRST, Poul e THOMPSON,Grahame. Globalização em questão. Petrópolis: Vozes, 1998, p.65.
8 – SANTOS, Milton. Técnica, Espaço, Tempo – globalização meio técnico-científico informacional. São Paulo: Hucitec, 1998, p.32.
9 – SANTOS, Milton. Metamorfoses do Espaço Habitado. SP: Huicitec, 1997, p.111.
10 – SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. op ci., p.67.

 *Historiador, Doutor em Comunicação e Professor.