quinta-feira, 25 de abril de 2013

Mídia e cidadania

Mídia: Inglaterra e México avançam e Brasil não sai do lugar*

Venício Lima**

Na Inglaterra, foi anunciado acordo entre os três principais partidos ingleses – Conservador, Trabalhista e Liberal Democrata – para regulação da imprensa (jornais, revistas e internet) apenas quatro meses após a publicação do Relatório Leveson.

Os principais pontos a serem incluídos na Carta Régia que dará amparo legal ao novo órgão regulador são: a escolha dos membros (no mínimo quatro e no máximo oito e um presidente) deve ser “independente, justa e transparente”; os membros indicados pela mídia não podem manter cargos de editores ou publishers nem ser deputados ou senadores; a maioria dos membros deve ser “independente da imprensa”; o novo “código de conduta” deve descrever parâmetros “especialmente no tratamento de pessoas para obtenção de material jornalístico”; avaliar o respeito à privacidade quando não houver interesse público suficiente para quebrá-la; recomendar rigor das informações e a necessidade de prevenir interpretações equivocadas; deve ser criada uma linha direta para reclamações sobre quebra de conduta por parte de jornalistas; decisões sobre reclamações de quebra de conduta serão tomadas pelo órgão regulador antes de encaminhadas à Justiça; o órgão regulador terá o poder de aplicar sanções financeiras (com valor de até 1 milhão de libras esterlinas, ou cerca de R$ 3 milhões).

No México, o novo governo do presidente Enrique Peña Nieto apresentou projeto de alterações no marco regulatório das comunicações com vistas a quebrar o oligopólio de conglomerados, como América Móvil e Televisa, e promover a concorrência no setor.

O projeto prevê a instituição de um novo órgão regulador com poderes para obrigar a venda de ações de empresas com mais de 50% do mercado, além de multas e regulação de preços para beneficiar empresas menores. Será criada uma infraestrutura estatal de telecomunicações que possibilite o acesso à internet para 70% dos domicílios e 85% das empresas do país.

No que se refere à televisão aberta, o projeto prevê a entrada de duas novas redes de transmissão digital, além de um canal estatal nacional com programas educacionais e culturais. As redes existentes seriam obrigadas a oferecer programação gratuita para operadoras de TV a cabo, sem custo. Prevê-se ainda a eliminação de qualquer restrição ao investimento estrangeiro no setor.

O projeto está em tramitação na Câmara dos Deputados.

E na Terra de Santa Cruz?

Enquanto avanços ocorrem em países tão distintos como a Inglaterra e o México – sem mencionar países vizinhos latino-americanos –, no Brasil autoridades governamentais descartam qualquer iniciativa no que se refere à regulação do setor de comunicações. Ignora-se o que acontece no resto do mundo e se interdita até mesmo o debate público, deliberadamente confundido com ameaças à liberdade de expressão.

É como se, na Terra de Santa Cruz, questões decorrentes das inovações tecnológicas e da ausência de regulamentação de normas e princípios inscritos na Constituição, há um quarto de século, simplesmente não existissem.

Resta à sociedade civil organizada prosseguir trabalhando para mobilizar a “vontade das ruas”.

Todo apoio, portanto, à campanha liderada pelo Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC), “Para expressar a liberdade – uma nova lei para um novo tempo”, e ao esforço para a elaboração de uma proposta que possa se transformar em Projeto de Lei de Iniciativa Popular.

Existe alguma alternativa?

*Extraído de Carta Maior. Publicado originalmente na revista 'Teoria e Debate'
**Jornalista e sociólogo, professor titular de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado), pesquisador do Centro de Estudos Republicanos Brasileiros (Cerbras) da UFMG

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Neoliberalismo

Os herdeiros de Maggie

Celso Evaristo Silva*


There is no alternative”, costumava repetir a primeira-ministra da Inglaterra – período de 1979 a 1990 – Margareth Thatcher (1925-2013), alcunhada de Dama de Ferro. A frase sintetizava a crença xamânica dos liberal-conservadores na desregulamentação absoluta do mercado como imperativo categórico para a felicidade geral. Foi dita por ela tantas vezes que acabou se transformando numa sigla formada a partir das letras iniciais de cada uma das quatro palavras: TINA.

O ideário liberal ainda se refazia, em meados e final dos anos de 1970, do desgaste ideológico causado pelas consequências da Grande Crise de 1929, para cuja solução a ortodoxia do Laissez-faire não encontrara respostas, ou antes, era vista por muitos como principal vilã da tragédia, cabendo ao keynesianismo, com seu intervencionismo estatal e políticas anticíclicas, o papel de “salvador” do sistema capitalista.

Revigorado com o trabalho teórico da Escola Austríaca de Economia – Friedrich Hayek (1889/1992), Ludwig Von Mises (1881-1973), e também pela Escola de Chicago, cujo expoente era Milton Friedman (1912-2006), o discurso liberal ganhou força e atacou firme a obra máxima do pensamento keynesiano: o Welfare State. Surgia o neoliberalismo e seus mandamentos: privatização de empresas estatais, combate ao déficit público, redução drástica da participação do estado na economia, desregulamentação do mercado em geral, mais especificamente, do financeiro; combate duro aos sindicatos, aos direitos trabalhistas, estabilidade monetária e austeridade fiscal.

Na realidade, o prefixo “neo” representa apenas a roupagem nova da antiga confiança ilimitada nas possibilidades do mercado livre, este configurado na chamada “livre concorrência”, qual seja: em cada sociedade, uma miríade de produtores e consumidores se engalfinhariam na batalha do melhor negócio para quem vende e para quem compra. As decisões tomadas por uma ou outra empresa ou um grupo restrito de indivíduos não afetariam o funcionamento geral do sistema autorregulável. A livre concorrência puxaria os preços para baixo, a qualidade das mercadorias para cima, manteria o consumo em alta, além de afastar do páreo os produtores incompetentes, numa espécie de darwinismo empresarial.

Empresários seriam livres para escolher onde e quando investir, a quem contratar; e empregados, pra decidir o que fazer pra quem. Salários e querelas, decididos pelas partes interessadas (sem presunção de assimetria na relação), não interferência de leis trabalhistas e pressão de sindicatos. Não precisa dizer que ao Estado caberia tão só manter a ordem pública e o sistema jurídico garantidor da propriedade privada.

No plano do comércio internacional teríamos o livre-câmbio de mercadorias impulsionado pela inexistência de barreiras alfandegárias. Isso estimularia os países a se especializarem naquilo que produzem melhor com menor custo, levando a uma redução dos preços no mercado internacional.

O paradigma ideológico é sedutor, todavia tem algumas vulnerabilidades práticas, sendo a principal delas, a incompatibilidade de seu funcionamento com a existência de monopólios e oligopólios. Ora, como observara Karl Marx (1818-1883), no séc. XIX, o sistema capitalista tende à acumulação e concentração de capital, o que leva, inexoravelmente, à formação de oligopólios, nos quais, pequenos e médios produtores são absorvidos pelos grandes. Daí, para formação de cartéis controladores de mercado e fixadores de preços é um pulo.

A tese do mercado livre, leve e solto foi atingida em cheio com a crise de 2008. Medidas tomadas pelos governos da maior economia do mundo – Ronald Reagan (1911/2004), Bill Clinton e os dois Bush – desmantelaram boa parte dos mecanismos de controle social sobre o capital financeiro e a atuação das grandes corporações, abrindo espaço para ganhos exorbitantes destinados a poucos e prejuízos para muitos. A maioria dos grandes economistas do mundo concorda em um ponto, ao menos: estivemos muito próximos da tal “crise sistêmica”, cujas graves consequências fariam da crise de 1929 um pequeno contratempo.

There is no alternative” é a versão antecipada thatcherista da tese do “fim da história”, propalada por um dos ideólogos de Reagan, Francis Fukuyama. Para ele, chegamos ao fim da linha com a economia de mercado globalizada, o Estado mínimo e a democracia representativa (votar, ser votado e o direito de manifestar-se comportadamente).

Faltou ao Francis acrescentar em seu livro principal, “O fim da história e o último homem”, o tipo humano resultante desses vetores: alguém personificado por um egoísmo monstruoso.

*Sociólogo e administrador

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Ideologia

O Millenium e as lembranças*

Laurindo Lalo Leal Filho**

O economista Cristiano Costa foi recebido em fevereiro pelo pessoal do grupo A Tarde, em Salvador. A companhia de comunicação, que tem provedor e portal na internet, agência de notícias, jornal impresso, emissora de FM, gráfica, reuniu seus profissionais para servirem-se de uma palestra da série 'Millenium nas Redações'.

Blogueiro e professor de uma universidade capixaba chamada Fucape Business School, Costa é também colaborador cativo do Instituto Millenium, articulador desses eventos destinados a “aprimorar a qualidade da imprensa no Brasil”.

A base de sua explanação são seus artigos reproduzidos no site do instituto, em que critica duramente a política econômica do governo e ataca sem rodeios o ministro da Fazenda, Guido Mantega. 

Em um deles, cita o programa 'Minha Casa, Minha Vida' como um dos responsáveis por inflacionar o setor imobiliário. Isso num ambiente em que até os preços de imóveis de alto padrão dispararam. 

As pessoas estão mais seguras no emprego e foram comprar, a queda dos juros levou mais gente a ter acesso a crédito, ou mais gente a tirar dinheiro de aplicações financeiras para investir em imóveis. Há muitos fatores em jogo, mas lá vai o programa federal destinado a famílias de baixa renda pagar o pato da especulação.

Outras redações de jornais e revistas foram brindadas pelo Millenium com palestras sobre assuntos variados, da reforma do Judiciário à assustadora “crise econômica”. 

O currículo dos palestrantes, colaboradores do instituto, explica o objetivo real das palestras: consolidar no meio jornalístico o papel oposicionista da mídia brasileira.

Há algum tempo os ambientes de redação eram conhecidos por ter profissionais críticos, independentes, e o direcionamento da informação era resultado da sintonia dos editores com os donos dos veículos. 

Não era incomum a conclusão do jornal ou da revista acabar em atrito entre repórter e superiores. Agora, os donos dos veículos preferem formar “focas” que já cheguem às redações comprometidos com suas crenças.

Essas crenças, recheadas de interesses políticos e econômicos, vêm sendo difundidas de maneira afinada pelos meios de comunicação reunidos no Millenium. Resultado concreto desse trabalho pôde ser visto neste início de ano. 

Três assuntos, alardeados como ameaças ao país, ocuparam as manchetes dos grandes jornais e foram amplificados pelo rádio e pela TV: apagão, inflação e crise na Petrobras.

Além do noticiário parcial, analistas emitiam previsões catastróficas. Como elas não se confirmavam, o assunto era esquecido e logo substituído por outro. 

No dia 8 de janeiro, o jornal O Estado de S. Paulo estampou na capa: “Governo já vê risco de racionamento de energia”. Um dia antes a colunista da Folha de S. Paulo Eliane Cantanhêde chamava uma reunião ordinária, agendada desde dezembro, de “reunião de emergência” do Comitê de Monitoramento do Setor Elétrico convocada às pressas por Dilma para tratar do risco de racionamento. 

Diante da constatação de que a reunião nada tinha de extraordinária, a Folha publicou uma acanhada correção. Como de costume, o tema foi sendo lentamente deixado de lado. O risco do “racionamento” desapareceu.

Pularam para o “descontrole” da política econômica e a ameaça de um novo surto inflacionário. “Especialistas” tentavam, a partir dos índices de janeiro, projetar uma inflação futura capaz de desestabilizar a economia. 

Aproveitavam para crucificar o ministro Mantega, artífice de uma política que contraria interesses dos rentistas nacionais e internacionais: a redução dos juros bancários está na raiz da gritaria.

Não satisfeitos, colocaram a Petrobras na roda, responsabilizando a “incapacidade administrativa” dos dirigentes da empresa pela redução dos dividendos pagos aos acionistas. 

Sem considerar que, dentro da estratégia atual de ação da Petrobras, os recursos de parte dos dividendos retidos passaram a contribuir para o desenvolvimento do país na forma de novos investimentos.

Variações de uma nota só
Aparentemente isoladas, essas versões jornalísticas são, na verdade, articuladas a partir de ideias comuns que permeiam as pautas dos principais veículos. 

No site do Instituto Millenium elas estão organizadas e publicadas de maneira clara. O Millenium diz ter como valores “liberdade individual, propriedade privada, meritocracia, Estado de direito, economia de mercado, democracia representativa, responsabilidade individual, eficiência e transparência”.

Faz lembrar a ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher, que chegou a dizer que só o indivíduo existe, a sociedade é ficção.

Fundado em 2005, o Millenium foi oficialmente lançado em abril de 2006 com o apoio de grandes empresas e entidades patronais lideradas pela Editora Abril e pelo grupo Gerdau. 

Trata-se de uma liderança significativa, pois reúne uma empresa propagadora de ideias e valores e outra produtora de aços, base de grande parte da economia material do país. 

A elas juntam-se a locadora de veículos Localiza, a petroleira norueguesa Statoil, a companhia de papel Suzano, o Grupo Estado e a RBS, conglomerado de mídia que opera no sul do Brasil. A Rede Globo, como pessoa jurídica, não aparece na lista, mas um dos seus donos, João Roberto Marinho, colabora.

Essa integração entre empresas de mídia e empresários faz do Millenium uma organização capaz de formular e difundir programas de ação política em larga escala, com maior capacidade de convencimento do que muitos partidos políticos. Com a oposição partidária ao governo enfraquecida, ocupa esse espaço com desenvoltura.

Apesar do apego declarado à democracia, alguns dos colaboradores não escondem o desejo de combater o governo de qualquer forma. 

É o que está explícito na fala de outro de seus colaboradores, o articulista Arnaldo Jabor, quando num dos eventos promovidos pelo instituto disse: “A questão é: como impedir politicamente o pensamento de uma velha esquerda que não deveria mais existir no mundo?”

Essa articulação faz lembrar a de organismos privados como o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), fundado em 1959, e o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes), nascido em 1961. Ambos uniram empresários e mídia conservadora na formulação e divulgação de ideias que impulsionaram o golpe de 1964.

“Ipes e Ibad não eram apenas instituições que organizaram uma grande conspiração para depor um governo legítimo. Elaboraram um projeto de classe. O golpe foi seguido por uma série de reformas no Estado para favorecer o grande capital”, lembra o pesquisador Damian Bezerra de Melo, da Universidade Federal Fluminense (UFF).

No cenário atual, de decadência do modelo neoliberal e de consolidação de políticas desenvolvimentistas no Brasil, o Millenium seria um instrumento ideológico para dar combate a esse processo transformador. 

“Nos anos 1990 ocorreu a disseminação da ideologia do pensamento único, de que o capitalismo triunfou, o socialismo deixou de existir como projeto político”, afirma a historiadora Carla Luciana da Silva, da Universidade do Oeste do Paraná. “Quando surgem experiências concretas que podem desafiar essas ideias, aparece em sua defesa uma organização como o Millenium para manter vivo o ideal do pensamento único.”

A difusão dessas ideias não é feita por meio de manifestos ou programas partidários, observa a pesquisadora. “É muito difícil pegar uma revista como a Veja ou um jornal como a Folha de S. Paulo e conseguir visualizar os sujeitos que estão produzindo as ideias defendidas ali. Cria-se uma imagem do tipo ‘a’ Folha, ‘a’ Veja, como se fossem sujeitos com vida própria. É uma forma de não deixar claro em nome de que projeto falam, como se falassem em nome de todos.”

Contra as versões, fatos
Conhecendo as ações do instituto e seus personagens fica mais fácil compreender como certos assuntos tornam-se destaque de uma hora para outra. A presença nos quadros do instituto de jornalistas e “especialistas” com acesso fácil aos grandes meios de comunicação leva suas “notícias” rapidamente ao centro do debate nacional. 

E fica difícil contra-argumentar com colaboradores do Millenium, não pela qualidade de seus argumentos, mas pela força de persuasão dos veículos pelos quais difundem suas ideias.

Como retrucar, com igual alcance, comentários de Carlos Alberto Sardenberg, na CBN, de Ricardo Amorim, na IstoÉ, na rádio Eldorado e no programa Manhattan Connection, da GloboNews, de José Nêumanne Pinto, no Estadão e no Jornal do SBT, de Ali Kamel, diretor de jornalismo da TV Globo, entre tantos outros?

Não é mera coincidência a preferência dos integrantes do Millenium pela subordinação do Brasil aos grandes centros financeiros internacionais e sua ojeriza diante das relações harmônicas entre governos latino-americanos. 

Trata-se de uma tentativa de ressuscitar um projeto político implementado durante a ditadura que só passou a ser confrontado, ainda que parcialmente, a partir de 2003, com a posse do governo Lula.

Mas parece não haver espaço para uma hipótese golpista, apesar do já citado dilema de Jabor. Para a professora Tânia Almeida, da Unisinos de São Leopoldo (RS) e diretora de relações públicas da Secretaria de Comunicação do Rio Grande do Sul, um dos ganhos da crise política de 2005, com a questão do chamado “mensalão”, foi ter forçado análises e estudos em busca de explicações de como o então presidente Lula conseguiu suportar tanta notícia negativa e manter elevados índices de aprovação.

“Não era só carisma. Desde 2003, havia uma gestão de governo em funcionamento. Não existia somente aquilo de que os jornais e revistas tratavam, não era só escândalo. Outra proposta política estava acontecendo”, observa Tânia. Para a professora, os avanços sociais alcançados não permitem crer em crise que leve a uma ruptura institucional.

“O Millenium é um agente articulador, social, político, que pode fomentar e aquecer debates, mas não teria potencial para causar uma crise nos moldes de 1964. O poder de influência da mídia ficou relativizado desde 2006 em função dessa política que chega lá na ponta e inclui quem estava fora.”

Damian Melo, da UFF, tem visão semelhante, mas com um pé atrás: “O Millenium não possui hoje estratégia golpista. Quer emplacar seu projeto, e isso pode ser pela via eleitoral mesmo. Muito embora nossa experiência nos diga que é melhor ficarmos atentos”. 

*Extraído de Carta Maior. Publicado originalmente na Revista do Brasil, edição de março de 2013.
**Sociólogo e jornalista, é professor de Jornalismo da ECA-USP. Colaborou Rodrigo Gomes.