quinta-feira, 20 de maio de 2010

Diplomacia


Por que Washington rejeita a paz
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Antonio Martins

O desfecho da disputa que Estados Unidos e Irã travam, em torno da energia nuclear, tornou-se imprevisível, após uma série de reviravoltas diplomáticas. Tão logo Brasil e Turquia anunciaram, em 16 de maio, um acordo que cria espaço para entendimento, a secretária de Estado norte-americana, Hillary Clinton, saiu a campo para bombardear a iniciativa. Na manhã desta terça-feira (18/5), ela anunciou, no Comitê de Relações Exteriores do Senado dos EUA, ter costurado com Rússia e China um rascunho de resolução contra Teerã, a ser submetido ao Conselho de Segurança da ONU. Apesar de ter adesão aparente dos cinco membros-permanentes do conselho, a aprovação desta proposta é incerta. Tanto a articulação brasileiro-turca quanto a resposta-relâmpago do governo Obama são fatos novos e surpreendentes, que ajudam a revelar traços da conjuntura global que se abre na virada da década.

Revelado no final da noite de segunda-feira, o texto anunciado por Hillary é, como afirmou a própria secretária, particularmente “duro”. As sanções previstas transformam o Irã, na prática, num Estado-pária. Fica proibido de construir instalações de enriquecimento de urânio (algo que o Tratado de Não-Proliferação Nuclear – TNP – considera um direito de qualquer país). É interditado de atividades banais (como a mineração de urânio). As nações são impedidas de vender-lhe oito tipos de armamentos convencionais (os mesmos oferecidos a todos os seus vizinhos), e mesmo de fornecer assistência técnica e treinamento militares.

Estabelecem-se, além disso, constrangimentos humilhantes. Barcos com destino ao Irã podem ser inspecionados em alto-mar. Fundos iranianos no exterior tornam-se passíveis de bloqueio, bastando para isso que algum Estado ofereça “bases razoáveis para acreditar” que o negócio “poderia contribuir” para que Teerã livre-se das sanções.

A proposta de Hillary obriga os EUA a renegar posições já assumidas, afronta possíveis aliados e tende a ampliar a oposição e o ressentimento contra Washington, em especial no mundo árabe. Os compromissos que que Brasil e Turquia convenceram o Irã a assumir são, em essência, idênticos ao que os EUA exigiam de Teerã, em outubro último. Brasília e Ancara apostaram que, na condição de países do Sul, não-hostis ao Irã, teriam maiores chances de obter um compromisso. Esta tentativa foi comunicada previamente à Casa Branca – que a encorajou, em palavras.

Ao renegar esta atitude, Washington sugere que não desejava, no ano passado, um entendimento: fazia apenas uma provocação. Ainda mais porque as novas ameaças contrastam com o prolongado apoio norte-americano a Israel – que mantém e desenvolve armas nucleares e se recusa a assinar o TNP.

Na manhã de quarta-feira (19/5), surgiram, aliás, os primeiros sinais de que a tramitação do texto, no Conselho de Segurança, poderá ser lenta, complexa e desgastante para os EUA. Embora admitisse que seu país participou da redação do esboço de Hillary, o embaixador chinês na ONU, Li Badong, fez ressalvas. “Fazer circular este rascunho não significa que as portas para a diplomacia estão fechadas (…) Acreditamos que o diálogo, a diplomacia e as negociações são a melhor maneira de lidar com a questão iraniana”.

Brasil e Turquia mantiveram-se firmes, anunciando que enviarão ao Conselho de Segurança um relato de suas gestões, que julgam suficientes para colocar o debate em novo tom. O chanceler brasileiro, Celso Amorim, afirmou que, após os sinais de boa-vontade emitidos por Teerã “não há nenhum motivo para manter uma linha de pressões e sanções”.

Na própria sociedade norte-americana, não parece haver unanimidade em favor da postura de ameaças e confrontos. Na manhã de quarta-feira (19/5), uma ampla maioria dos leitores do New York Times pronunciava-se de forma francamente crítica à nova cartada da Casa Branca. O jornal elogiou Hillary Clinton em editorial. Mas na página de comentários aberta aos internautas, todas as dez opiniões mais pontuadas estavam contra as sanções. Um comentário emblemático perguntava: “Por que será que estou me tornando mais inclinado a acreditar em propostas feitas por países como a Turquia e o Brasil que nas manifestações de China, Rússia e Estados Unidos”?

Nove votos, entre os quinze países que compõem o Conselho de Segurança, são necessários para aprovar sanções. Há enormes probabilidades de que Brasil, Turquia e Líbano rejeitem a resolução articulada pelos EUA. Ainda que os cinco membros permanentes confirmem adesão à proposta de Hillary, será preciso cabalar mais quatro apoios, entre os sete integrantes que faltam (Áustria, Bósnia, Gabão, Japão, México, Nigéria e Uganda). O sucesso é duvidoso. A maior parte dos que se atrevem a fazer previsões imaginam que as negociações deverão se estender até julho.

Por que, então, a sofisticada Hillary Clinton agiu tão brusca e rudemente? Dois textos publicados em Outras Palavras ajudam a encontrar respostas. Em A política de desarmamento de Obama, que foi ao ar no final de abril, o economista José Luís Fiori aponta como o presidente “mudou de foco”, depois de enfrentar o primeiro ano de crise econômica profunda, resistências no Congresso, movimentos sociais ultra-conservadores e queda de popularidade.

*Extraído de Outras Palavaras. Para acesso completo clique em Diplô.


Dipomacia

De como exercer a ousadia moral
Mauro Santayana

Velha teoria explica as guerras generalizadas como inevitável irritação da História: as situações envelhecem e se tornam insuportáveis, para estourar nos conflitos sangrentos. Alguns as veem como autorregeneração do mundo, ao contribuir para o equilíbrio demográfico. Outros a atribuem à centelha diabólica que dorme no coração dos homens e incendeia o ódio coletivo. O mundo finará sem que entendamos a fisiologia do absurdo. Para os humanistas, são repugnantes os massacres coletivos tanto como os assassinatos singulares.

De qualquer forma, a História tem como eixo a tensão permanente entre guerra e paz; entre a competição e o entendimento; entre o egoísmo que se multiplica no racismo e a solidariedade internacional. Uma coisa é inegável: quando os mais fortes querem, não lhes faltam argumentos trôpegos para justificar a agressão. La Fontaine soube reduzir esse comportamento no diálogo entre o lobo e o cordeiro. Quando o lobo quer, os filhos são responsáveis por falsas culpas dos pais e as águas sobem os rios.

É interessante registrar, no episódio da questão do Irã, algumas dúvidas que assaltam o homem comum. A primeira delas – e devo essa observação a um amigo – é a do direito de os possuidores das armas atômicas decidirem quem pode e quem não pode desenvolver a tecnologia nuclear. Mais ainda, quando o árbitro maior é o governo do país que a usou criminosamente, ao arrasar, sem nenhuma razão tática ou estratégica, duas cidades inteiras e indefesas do Japão. Reduzidas as dimensões do absurdo, podemos aceitar como lícitas as associações criminosas, como as dos narcotraficantes dos morros. Possuidores de bom armamento, impõem sua lei às comunidades e constroem sua própria legislação, cobram tributos e exigem obediência, sob a ameaça dos fuzis e da tortura. Chegaremos assim a uma sociologia política, abonada indiretamente por Weber e outros, que admite todo poder de facto, sem discutir sua legitimidade ética.

O momento histórico é de grande oportunidade para a Humanidade – e de grande perigo, também. A República dos Estados Unidos é um lobo ferido em suas entranhas. Por mais disfarcem o choque, a eleição de Barack Hussein Obama lanhou as glândulas da tradição conservadora da Nova Inglaterra. A águia encolheu suas asas. A maioria dos estados e, neles, a maioria dos eleitores, decidiu por um homem mestiço, filho de pai negro e mãe branca, nascido em uma colônia dissimulada em estado, o Havaí; e que passou o período mais importante da formação, o da adolescência, na Ásia: na Indonésia muçulmana e no arquipélago em que nasceu.

No inconsciente coletivo, os Estados Unidos já sentem a decadência, que se acelerou com o neoliberalismo. Eles poderão administrá-la com inteligência, integrando-se em uma Humanidade que necessita, com urgência, de novos parâmetros e de nova tecnologia, capazes de preservar a natureza, hoje em acelerada erosão, ou entrar em desespero. Se entrarem em desespero, conduzirão o mundo a nova guerra, mas isso não parece provável, diante da crescente consciência antibélica de seu povo.

Por enquanto os falcões parecem contar com a Europa e com a China, no caso do Irã. Mas não há, nos horizontes movediços de hoje, país suficientemente forte, capaz de impor-se aos demais. A Europa desce a ladeira, com sua bolsa de euros de barro, e a União Europeia se encontra ameaçada de fragmentação. A China é uma nebulosa impenetrável. O capitalismo financeiro descolou-se de qualquer compromisso ético, se é que o teve um dia. O sistema se torna mais selvagem quando se vale dos instrumentos tecnológicos de operação universal e instantânea.

É nesse momento que a presença do Brasil começa a impor-se no cenário internacional. Não temos armas atômicas, não dispomos de exércitos numerosos e bem equipados, mas somos chamados a manter o bom-senso, e manter o bom-senso é exercer a ousadia moral.

Digam o que disserem os quislings domésticos, o Brasil ganhou o respeito do mundo ao buscar a paz no Oriente Médio. Se contribuirmos para evitar o conflito, nosso será o mérito; se não houver o êxito, fica, na História, o testemunho de um esforço destemido e honrado – e não menos meritório.