Políticas sociais e transformação da sociedade[1] - V/V*
Ladislau Dowbor
O social: um poderoso articulador
social
Um
caminho renovado vem sendo construído através de parcerias envolvendo o setor
estatal, organizações não-governamentais e setores abertos do empresariado.
Surgem com força conceitos como responsabilidade social e ambiental do setor
privado. O chamado terceiro-setor aparece
como uma alternativa de organização que pode, ao se articular com o Estado e
assegurar a participação cidadã, trazer respostas inovadoras. As empresas
privadas ultrapassam a visão do assistencialismo, para assumir a
responsabilidade que lhe confere o poder político efetivo que têm. Passa-se
assim do simples marketing social, frequentemente com objetivos cosméticos,
para uma atitude construtiva onde o setor privado pode ajudar a construir o
interesse público.
Onde
funciona, como por exemplo no Canadá ou nos países escandinavos, a área social
é gerida como bem público, de forma descentralizada e intensamente
participativa. A razão é simples: o cidadão associado à gestão da saúde do seu
bairro está interessado em não ficar doente, e está consciente de que trata da
sua vida. Um pai, associado à gestão da escola do seu bairro, não vai brincar
com futuro dos seus filhos. De certa forma, o interesse direto do cidadão pode
ser capitalizado para se desenhar uma forma desburocratizada e flexível de
gestão social, apontando para novos paradigmas que ultrapassam tanto a pirâmide
estatal como o vale-tudo do mercado.
Outro
eixo renovador surge com as políticas municipais, o chamado desenvolvimento
local. A urbanização permite articular o social, o político e o econômico em
políticas integradas e coerentes, a partir de ações de escala local,
viabilizando — mas não garantindo, e isto é importante para entender o embate
político — a participação direta do cidadão, e a articulação dos parceiros. O
surgimento de políticas inovadoras nesta área é muito impressionante. Peter Spink
e um grupo de pesquisadores na Fundação Getúlio Vargas em São Paulo têm hoje um
banco de 400 descrições de experiências exitosas e premiadas. A Secretaria de
Assuntos Institucionais do Partido dos Trabalhadores tem um banco de dados com
algumas centenas de experiências. O Pólis publica excelentes resumos no quadro
das Dicas Municipais. A
Fundação Abrinq está ajudando a dinamizar um conjunto de atividades no quadro
do movimento Prefeito-Criança.
Efeito indireto da urbanização, assistimos a uma aceleração de iniciativas
locais que estão transformando o contexto político da gestão social.
Uma
vantagem muito significativa das políticas locais é o fato de poderem integrar
os diferentes setores, e articular os diversos atores. Pelo país afora,
constatamos a expansão de conselhos locais de desenvolvimento econômico e
social, de articulações inovadoras buscando no conjunto melhorar a qualidade de
vida da população. São Paulo criou em 2013 um conselho de desenvolvimento
sustentável, na linha da rede de Cidades Sustentáveis que hoje envolvem 31% da
população do país.
Não
há fórmula universal na área social. Como demonstra a riqueza do projeto médico de família, por exemplo, a
dimensão diferenciada das relações humanas é fundamental nas políticas sociais.
Uma das mais significativas riquezas do desenvolvimento local resulta
justamente do fato de se poder adequar as ações às condições extremamente
diferenciadas que as populações enfrentam.
Isto
não implica, naturalmente, que as políticas sociais possam se resumir à ação
local, às parcerias com o setor privado, e à dinâmica do terceiro setor. A
reformulação atinge diretamente a forma como está concebida a política nacional
nas diversas áreas de gestão social, colocando em questão a presente
hierarquização das esferas de governo, e nos obriga a repensar o domínio das
macroestruturas privadas que se apropriam das áreas da saúde, dos meios de
informação, dos instrumentos de cultura.
Mais
uma vez, não se trata aqui de redescobrir coisas óbvias. Mas devemos nos
colocar uma pergunta elementar: se as atividades da área social estão se
tornando o setor mais importante, que tipo de relações sociais de produção o
seu surgimento traz no seu bojo? Seguramente, serão diferentes das que foram
geradas com o desenvolvimento industrial. Apontam para uma sociedade mais
horizontalizada, mais participativa, mais organizada em rede do que as
tradicionais pirâmides de autoridade. Ou podem ainda gerar um tipo de
capitalismo de pedágio centrado na indústria da doença, na indústria do diploma,
na manipulação cultural através da publicidade e do controle da mídia.
A universidade frente ao novo
continente: primeiros passos
Não
há dúvida que no Brasil a discussão ainda é muito recente, sobretudo se
considerarmos que se trata de uma revisão profunda dos nossos paradigmas de
como a sociedade se gere. Ainda estamos impregnados da visão de que a empresa
só se interessa pelo lucro e será por tanto inacessível a uma visão social ou
ambiental, de que organizar a participação da sociedade civil é apenas uma
forma de desresponsabilizar o Estado e assim por diante. A contribuição
acadêmica ainda está muito fragmentada, separada por setores, fatiada por assim
dizer.
É
muito significativo constatarmos que uma série de conceitos básicos da
reformulação política e social que está ocorrendo em muitos países sequer
encontra tradução em português: é o caso de empowerment, que os hispano-americanos já traduzem
de empoderamiento, no
sentido de resgate do poder político pela sociedade, e que estamos
nacionalizando como empoderamento;
de stakeholder, ou seja,
de ator social que tem um interesse numa determinada decisão; de advocacy, que representa o original
etimológico de ad-vocare, de criar capacidade de voz e defesa a uma causa, a um
grupo social; de accountability,
ou seja, da responsabilização dos representantes da sociedade em termos de
prestação de contas; de devolution,
recuperação da capacidade política de decisão pelas comunidades, como
contraposição ao conceito de privatização; trata-se também de entitlement, de self-reliance e tantos outros.
Além do conceito chave de governance,
que envolve capacidade de governo do conjunto dos atores sociais, públicos e
privados, onde o conceito tradicional de governança, tal como existe no Aurélio, tem de ser
reconstruído.
A articulação
que temos pela frente envolve uma aproximação articulada de empresários, de
administradores públicos, de políticos, de organizações não governamentais, de
sindicatos, de pesquisadores acadêmicos, de representantes comunitários. É interessante
a PUC-SP, como a FGVSP a USP e outras instituições acadêmicas terem criados
centros de estudos do Terceiro Setor. É significativo a pós-graduação em
Economia da PUC ter criado um Laboratório de Economia Social. De certa forma,
se trata da superação de uma separação acadêmica tradicional no Brasil, onde
Economia e Administração tratavam de como maximizar lucros, enquanto o Serviço
Social tratava de encontrar muletas para as vítimas do processo. Hoje quem
estuda gestão social se preocupa com as novas formas participativas de
elaboração do orçamento, com um imposto de renda negativo (renda-mínima), com
novas formas de representação política e o novo potencial da comunicação. A
gestão social está buscando novos espaços em termos políticos, econômicos e
administrativos. Não é mais apenas um setor, é uma dimensão humana do próprio
desenvolvimento, que envolve tanto o empresário como o pesquisador, ou o
ativista do Movimento dos Sem Terra.
Os
avanços não devem ser subestimados. Nos últimos anos, o Brasil tem dado passos
impressionantes na expansão das políticas sociais. A América Latina, com o
relatório A hora da igualdade publicado
pela CEPAL, está entrando com força neste caminho de novos equilíbrios. As
tendências recentes da gestão social nos obrigam a repensar formas de
organização social, a redefinir a relação entre o político, o econômico, o
social e o ambiental, a desenvolver pesquisas cruzando as diversas disciplinas,
a escutar de forma sistemática os atores estatais, empresariais e comunitários.
Trata-se hoje, realmente, de um universo em construção. O impacto convergente
da urbanização, das novas tecnologias, da descentralização política e da
ampliação das políticas sociais oferece por tanto perspectivas particularmente
interessantes de reorganização da gestão da sociedade em geral.
-x-
[1]Versão atualizada do artigo originalmente publicado na coletânea Costos Sociales da las Reformas Neoliberales en América Latina, (org) Anita Kon, Catalina Banko, Dorothea Melcher, Maria Cristina Cacciamali, publicado por PUC-SP, FAPESP, USP e UCV. 2000.
*Extraído de Dowbor
Bibliografia
Cepal – La hora de la Igualdad – CEPAL,
Santiago, mayo de 2010, 289 p. Documento
síntese com 58 páginas em português: http://bit.ly/bqwYAh Documento completo em espanhol: http://bit.ly/bA9yrl
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Pnud - Relatório sobre o Desenvolovimento Humano no Brasil – vários anos
Pólis - número especial, 50 experiências de gestão municipal
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Sen,
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Unctad - Trade and Development Report 1997, Unctad, New York, Geneva 1997
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