quinta-feira, 13 de agosto de 2015

O virtual e o real

Novos movimentos: hora de deixar as redes sociais?*


Thomas Swann**

Em 2011, havia um forte sentimento de que a política radical estava mudando. A Primavera Árabe, os Indignados, o Occupy: tudo dava a impressão de que a ação direta e a democracia direta estavam saindo do gueto onde permaneceram, no movimento de altermundismo. Com assembleias massivas e uma política radical DIY (ou “Façamos nós próprios”- “Do It Ourselves”, DIO em inglês), alguma coisa parecia estar se transformando. Frente à “austeridade” e ao totalitarismo, uma alternativa real estava sendo forjada.

Ao mesmo tempo, as ferramentas usadas nesses protestos e rebeliões vieram para o centro do palco. Não somente os mecanismos de tomada de decisão democráticos, mas também as infra-estruturas digitais que, muitos argumentavam, facilitavam aquilo que era tão promissor nesses movimentos.

As mídias sociais eram cada vez mais vistas como elemento essencial para que grandes grupos pudessem organizar-se sem uma liderança centralizada. Plataformas como o Facebook e o Twitter estavam possibilitando às pessoas mobilizar-se não em estruturas hierárquicas como sindicatos e partidos políticos, mas em redes horizontais. Ativistas autônomos e subgrupos desfrutavam de autonomia tática, enquanto permaneciam sendo parte de um todo maior.

Passaram-se quase quatro anos e agora grande parte do brilho dessa narrativa se apagou. Alguns elementos das revoltas de 2011 foram consumidos pela tragédia da guerra civil e das ditaduras restauradas, enquanto outros se dispersaram.

É claro que quatro anos não significa um tempo longo no grande plano da História, e o exemplo do Podemos e do Syriza sugere que talvez esses movimentos estejam de fato evoluindo e desenvolvendo novas estratégias. Uma vez que a fase de mobilização de massa e movimentos sociais radicais de modo algum foi interrompida, o que está em disputa, talvez mais do que qualquer outra coisa nos últimos quatro anos, é a promessa contida nas ferramentas das rebeliões de 2011.

As mídias sociais, antes consideradas por alguns como a essência mesma da política radical contemporânea, são agora vistas sob uma luz mais crua e menos indulgente. Algumas experiências destacaram as desigualdades e hierarquias implícitas que eram reforçadas pelas mídias sociais.

Outras apontaram para a maneira como as mídias sociais exploram, visando lucro, nosso comportamento online. A saga de Snowden mostrou como nossa organização online é vulnerável, assim como a repressão do ativismo baseado nas mídias sociais ocorrida na Turquia e em outros lugares.

Mas haverá, diante dessas críticas, alguma coisa que possa ser salva? Plataformas como Facebook e Twitter podem ser úteis na política radical? Se sim, como? Eles ainda facilitam o tipo de organização que era tão promissor em 2011 e que continua, de vários modos, a definir política radical de esquerda?

A promessa das mídias sociais

As plataformas de mídia social são frequentemente consideradas meios de comunicação, de auto-expressão e formação do discurso público. Da mesma forma, contudo, as plataformas de mídia social – e as práticas de comunicação em geral – atuam também como infra-estruturas que apóiam as ações que desenvolvemos. Elas nos permitem partilhar informações e recursos, assim como tomar decisões coletivas.

Nesse sentido, práticas de comunicação podem também ser entendidas como um sistema de gerenciamento da informação. Esse é um conceito emprestado do mundo dos negócios e da administração, e refere-se a qualquer sistema, normalmente eletrônico e crescentemente digital, que facilita a organização. Emails de trabalho e intranets pertencem a esse tipo. Não só possibilitam às pessoas falar umas com as outras, mas contribuem também para a realização das tarefas.

O que as mídias sociais podem oferecer, quando consideradas como sistemas de gerenciamento da informação, plataformas que facilitam certas formas de ação, é um modo para tornar organizações radicais e anarquistas mais próximas das estruturas democráticas e participativas que caracterizam os levantes de 2011 e a política radical de esquerda, pelo menos desde a rebelião zapatista, o movimento anti-globalização dos anos 1990 e, antes ainda, o feminismo radical dos anos 1960 e 1970.

As mídias sociais podem oferecer a infra-estrutura tanto para tomadas de decisão democráticas e ações autônomas, possibilitando aos ativistas acesso a recursos e informações que podem capacitá-los para agir – de tal modo que estruturas mais hierárquicas de comunicação fiquem reduzidas aos processos de comando e controle.

Embora haja críticas significativas de ativistas, assim como de acadêmicos, às mídias sociais – com foco na privacidade e vigilância, controle corporativo e estatal, a economia política de trabalho gratuito e a psicologia e comportamento encorajados pela arquitetura das plataformas mainstream – quero sugerir que ainda existe um potencial inerente às mídias sociais, dada a natureza das práticas de comunicação a que dão suporte.

Essas práticas podem ser descritas como comunicação de muitos-para-muitos. São potencialmente construídas sobre diálogos com múltiplos atores, o que expressa um dos elementos necessários à democracia participativa da política radical de esquerda. As mídias sociais podem, portanto, ser vistas como sistemas que facilitam formas de organização radicalmente democráticas e que podem dar suporte a tipos de autonomia e horizontalidade que, em parte, foram vistas nos movimentos de 2011.

Essa é a promessa das mídias sociais. Uma promessa que ainda pode ser cumprida. Se as mídias sociais apresentam oportunidade para a comunicação horizontal, de conversação, e esse tipo de comunicação é consistente com os modos como tentamos imaginar relacionamentos sociais e estruturas de tomada-de-decisão não-hierárquicos, então as mídias sociais podem ser consideradas com potencial para ser parte da política radical de esquerda.

Práticas de comunicação interna e externa

Como parte de minha pesquisa de doutorado, entrevistei muitos ativistas envolvidos na esquerda radical e na cena anarquista holandesas. As imagens que eles apresentaram sobre práticas de comunicação dos grupos com que se relacionavam podem ser usadas para trabalhar algumas ideias em torno da comunicação de muitos-para-muitos, de sua relação com a política radical e a promessa das mídias sociais.

Internamente, todos os grupos de esquerda radical em questão adaptam-se, mais ou menos, ao modelo de comunicação de muitos-para-muitos. Grande parte dessa comunicação é feita por meio de encontros presenciais, nos quais as pessoas tentam chegar ao consenso sobre temas em discussão e decisões que precisam ser tomadas.

Sobre tecnologia de redes sociais, no entanto, os ativistas falaram das listas de discussão por e-mail e dos fóruns on-line, de uso comum na política radical de esquerda desde ao menos a Batalha de Seattle, em 1999, e os primórdios do movimento altermundista.

Embora nenhum dos grupos utilizasse, em suas práticas internas de comunicação, plataformas mais novas e mainstream como o Facebook, um deles usava o site alternativo de relacionamento social Crabgrasscomo parte central de sua infra-estrutura de debate e tomada-de-decisão. O Crabgrass foi desenvolvido por pessoas ligadas ao coletivoRiseUp, que oferece endereços de e-mail seguros a ativistas. O objetivo é facilitar a formação de redes sociais e colaboração em grupo, com inclinação especificamente radical e de esquerda.

Externamente, a comunicação de muitos-para-muitos tornou-se muito mais rara. Embora a maioria dos grupos usem Facebook e Twitter, usam-nos principalmente como extensões de seus sites, que por sua vez atuam principalmente como extensões de seus jornais impressos.

As três exceções ressaltam as potencialidades de ambas as plataformas de mídia social, a mainstream e a alternativa, no desempenho desse papel. Um grupo, envolvido em organização comunitária, era ativo no Facebook não apenas compartilhando artigos e avisos, mas também respondendo a comentários e envolvendo-se em discussões com outros usuários. Outro, usou um mapeamento coletivo, em estilocrowdsourced de forma a refletir o escopo da comunicação de muitos-para-muitos para apoiar a ação autônoma. O terceiro exemplo de uso de mídias sociais alinhado a esse ethos participativo veio de um grupo que publicava comentários e respostas do Facebook e do Twitter em seu jornal, facilitando algum nível de conversação entre os participantes do grupo e aqueles que estavam fora dele.

Institucionalizando a autonomia

A comunicação de muitos-para-muitos facilitada pelas mídias sociais – na medida em que permite a conversa, em vez de simplesmente a transmissão de informações, ou mesmo ordens –, está intimamente ligada a uma visão de organização de esquerda radical e anarquista. Se a representação do futuro, a realização dos objetivos políticos no aqui e agora, são tidas como parte das principais preocupações dos movimentos sociais radicais, então o compromisso com a comunicação de muitos-para-muitos pode ser considerado tão importante quanto o compromisso com a democracia e a igualdade.

Ela tem o potencial de empoderar ativistas para agir com autonomia e ser um alicerce da democracia participativa. Nesse sentido, as plataformas de mídia social podem contribuir para libertar o ativismo das estruturas de cima para baixo que costumavam ser comuns em partidos políticos e dos sindicatos.

Haverá todavia outros modos de olhar para esses tipos de organização e de estrutura sugeridos pelas mídias sociais e pela comunicação de muitos-para-muitos? No início deste artigo mencionei que as mídias sociais e o exemplo das rebeliões de 2011 perderam parte daquilo que os tornava tão atrativos. Os ativistas são, parece, cada vez mais cautelosos (e talvez com razão, dadas as limitações) com as organizações de relacionamento e a comunicação em rede. Há cerca de um ano, contudo, a política radical teve uma ligeira mudança.

Em lugar de movimentos sociais que se opõem completamente aos partidos políticos e guardam autonomia com relação a eles, o ascenso do Podemos e do Syriza, e certamente a onda de apoio aos Verdes, na Inglaterra e no País de Gales, e ao Partido Nacional Escocês, na Escócia, pode apontar para um retorno do partido de massas como elemento da estratégia dos movimentos sociais radicais de esquerda.

O Podemos e o Syriza, sob muitos pontos de vista, tornaram-se articulações institucionais de movimentos sociais de massa. Não os substituíram e têm clareza de que pretendem atuar como braços parlamentares a serviço desses movimentos – embora as tensões atuais no Syriza sugiram que isso é muito mais problemático do que alguns querem fazer parecer.

No caso do Podemos, significou uma continuidade da democracia direta radical do movimento 15-M. Para tanto, o partido contou com as mídias sociais e a comunicação de muitos-para-muitos não para levar suas mensagens até os eleitores, mas na definição do próprio conteúdo dessas mensagens e de suas políticas.

As mídias sociais podem continuar a ter um papel na política radical de esquerda, afinal de contas. As práticas de comunicação de muitos-para-muitos a que dão suporte podem, na sua melhor forma, ser prefigurativas das metas da política radical, de tomadas-de-decisão participativas e democráticas. Como sistema de gerenciamento da informação, facilitam a ação concreta – os exemplos dos grupos de esquerda radical em minha pesquisa de doutorado apontam para essa conclusão.

As diversas mídias sociais mainstream (como Facebook e Twitter), e as plataformas alternativas (tais como Crabgrass e n-1), podem ser parte importante da política radical de esquerda, seja na forma de mobilização dos movimentos sociais de massa ou de articulação desses movimentos em partidos políticos mais democráticos.

*Extraído de Outras Palavras
**Tradução: Inês Castilho

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Crise e mídia

Virada gramatical tenta curar tiro no pé da grande mídia*


Wilson Roberto Vieira Ferreira


Depois de décadas de jornalismo adversativo onde dominavam conjunções como “mas”, “porém”, “contudo” etc. para minimizar impactos negativos e, com os governos petistas como oponentes, inverter o sinal e as adversativas minimizarem impactos positivos, a grande mídia dá uma virada gramatical: adjuntos adverbiais de concessão como “apesar da crise, indústria cresce...” ou “mesmo com a crise, setor de informática vende mais...” passam a se repetir ao ponto de tornarem-se bordões ridicularizados em redes sociais. Por que essa virada gramatical? Depois de 12 anos em uma cavalgada suicida querendo provar que o País está no abismo econômico detonando bombas semióticas da crise autorrealizável, a grande mídia chegou ao limite: a presunção da catástrofe volta-se contra ela própria, com queda de audiência e anunciantes. Depois do tiro no pé a grande mídia parece tentar sinalizar ao mercado: “apesar da crise, anuncie aqui!”.

Lá pelo final do século passado, em plena crise do Plano Real com as maxidesvalorizações logo depois da reeleição presidencial de Fernando Henrique Cardoso, um helicóptero da TV Globo sobrevoava os pátios lotados de veículos das montadoras da região do ABC paulista. A voz ao vivo do repórter aéreo falava em pátios lotados, crise e férias coletivas. Corta para o estúdio. E o apresentador Chico Pinheiro contemporizou: “Mas quem ganhará é o consumidor com os descontos que as concessionárias oferecerão...”.

Essa era ainda a época do jornalismo adversativo. Embora o jornalismo sempre tenha vivido da presunção da catástrofe (o acidente, o bizarro e o endêmico prendem a atenção do espectador), a utilização das conjunções coordenadas adversativas (mas, porém, contudo, todavia etc.) sempre tiveram duas funções primordiais.

Primeiro, a função existencial – relativizar ou minimizar o impacto negativo é a sua função comercial de entretenimento. Afinal, não importa se as notícias são boas ou ruins. No todo, seja o jornalismo televisivo ou impresso, deve ser uma experiência visual, gráfica e informativa agradável.

Anunciantes não querem associar subliminarmente suas marcas e serviços a experiências desagradáveis. Por exemplo, no dia dos atentados de 11 de setembro de 2001 as redes de TV dos EUA tiveram um prejuízo de US$ 200 milhões com a suspensão de inserções publicitárias. Um ano depois, ao fazer reportagens especiais em horário nobre sobre o evento, a FOX News teve mais prejuízos: anunciantes ficaram relutantes em associar suas marcas à lembrança de um evento tão negativo.

Segundo, a função política – desde a ditadura militar, a grande imprensa tentava conciliar a sua função informativa com a adesão às políticas dos governos militares e, mais tarde, o apoio e confiança irrestrita ao Plano Real. Inflação aumentou? Mas em termos relativos diminuiu comparando-se com o mesmo período do ano anterior... O desemprego cresceu? Porém, é a oportunidade de criar seu próprio negócio...

Marteladas adversativas

Conjunções coordenadas (aditivas, adversativas, conclusivas, explicativas etc.) sempre foram retoricamente interessantes para o jornalismo: conciliavam interesses muitas vezes contraditórios (publicitários e políticos), além de criarem uma percepção aos leitores/espectadores de um jornalismo articulado, explicativo ou investigativo. Parece haver isenção ao mostrar um pretenso “outro lado”. Ao contrários das conjunções subordinadas (causa, comparativa etc.), suspeitas de intenções ideológicas ao tentarem criar subordinações entre afirmações – porque, do que, mais, contanto etc.

A partir de 2003 e início da era dos governos petistas Lula e Dilma, a grande mídia manteve esse traquejo adversativo, mas agora com o sinal trocado: deve-se agora relativizar e minimizar o impacto positivo – O PIB cresceu? Mas o desemprego aumentou. A economia está aquecida? Entretanto, o “gargalo estrutural” não vai permitir escoar a produção...

Foram 12 anos de marteladas adversativas, até chegar a um ponto onde as duas funções dessa conjunção gramatical (existencial e política) começaram a entrar em choque: de um lado, a experiência do jornalismo como infotenimento começou a perder o seu lado do “entretenimento” – a experiência para o leitor/espectador tornou-se cada vez mais desagradável, alarmista, baixo astral com alusões recorrentes de abismos, crises, precipícios, buracos e quedas.

E do outro, a condição que a grande mídia passou a se auto-investir de ser a única opção viável de oposição ao Governo Federal, pautando as ações da oposição política e parlamentar.

A crise autorrealizável

Após a transformação diuturna de cada trepidação da Bolsa, de cada variação sazonal de preços de hortaliças e legumes (os vilões tomate e cebola, por exemplo) ou de cada flutuação do câmbio em sintomas de uma presumível catástrofe, finalmente explodiu a bomba semiótica da crise econômica autorrealizável.

A crise econômica autorrealizável lembra bastante a chamada inflação psicológica da hiperinflação brasileira dos anos 80-90 – por ter medo da inflação e na tentativa de se prevenir contra uma catástrofe futura, consumidores, indústria e comércio adotavam ações que colaboravam para a expansão da própria inflação.

Com a inversão dos sinais, o diapasão do discurso adversativo finalmente criou a percepção (paradoxalmente em todo espectro político) de que a crise econômica chegou, a corrupção é endêmica e o País caiu no abismo. Mas como coloca de forma simples e irônica a charge de Duke (publicada no jornal O Tempo de Minas Gerais – veja abaixo) sobre essa dinâmica psicológica da crise, a vitória da grande mídia pode ser um tiro no próprio pé – ou a chamada “vitória de Pirro”. 




“Apesar da crise...”

A começar, a contradição entre a função existencial e política: assistir a um telejornal tornou-se desagradável e chato, produzindo medo e ansiedade. Por isso, somada a ameaça das mídias de convergência (por exemplo, a Reuters lançou um canal de vídeos cujo slogan é: “o canal de notícias para quem não vê mais TV”), despencam as audiências dos telejornais, repercutindo nas telenovelas e todo o horário nobre. Os patrocinadores ameaçam debandar ou querem negociar preços mais baixos de inserção: afinal, todos sabem, estamos em crise...

Em desespero, a mídia vem nos últimos meses abandonando as conjunções adversativas como bem percebeu Pablo Villaça, que em seu Facebook ironizou o abuso da expressão “apesar da crise” pela imprensa – clique aqui. Villaça fala que se a grande mídia não utilizasse essa expressão, ela não teria mais o que publicar, já que os fatos econômicos insistem em contradizer as previsões dos colunistas.

“Apesar da crise, porto de Santos bate recorde de movimento no primeiro semestre de 2015”, informou a TV Tribuna de Santos nessa semana ou “Apesar da crise, a indústria está otimista com as venda na Páscoa”, informou o portal de O Globo. São amostras recentes desse repentino apego ao adjunto adverbial de concessão, abandonando as conjunções adversativas.

Virada gramatical

Por que essa virada gramatical? Comunicadores como Jô Soares ou Serginho Groisman logo perceberam que a mídia na sua cruzada oposicionista abriu uma espécie de caixa de Pandora que ameaça a si própria (sobre isso clique aqui), também a grande mídia percebe que chegou ao limite da distensão entre as funções existencial e política, entre o infotenimento e o papel oposicionista.

Para além do confronto político-partidário, existe a rotina contábil de entrada e saída do caixa, das atividades comerciais cotidianas, da necessidade do constante fluxo de inserções publicitárias que dependem de percepções e expectativas quanto ao futuro da indústria, comércio e serviços.

A grande mídia começa a perceber que há anos está em uma cavalgada suicida. Por isso, o verdadeiro bordão em que se tornou os adjuntos adverbias de concessão (apesar de, embora, em que pese, mesmo que etc.) é o sintoma dessa desesperada tentativa de conciliar a natureza comercial de entretenimento com o papel conjuntural de oposição política.

E uma sutil mensagem aos patrocinadores: sim, apesar da crise vocês podem continuar anunciando aqui...

No caso particular da TV Globo, a situação é ainda pior. Por muito tempo, a crise e a hiperinflação foram aliados para sua audiência cativa: na falta de dinheiro para ir a um cinema ou restaurante, o brasileiro ficava em casa assistindo ao horário nobre de futebol/telenovelas/noticiário.

A explosão da bomba semiótica da crise autorrealizável pode ter deprimido o consumo e o ímpeto de sair de casa para se divertir. Mas diante da chatice da recorrência de adversativas e adjuntos adverbiais de concessão, há atualmente em cada quarto da casa de um número crescente de brasileiros algum tipo de dispositivo de convergência (celular, ipad, notebook etc.) como a alternativa mais imediata para abandonar a grande mídia e deixar de vez que ela paute nossas vidas.

*Extraído de Cinegnose

Mídia e democracia

TeleSur: a revolução e o que veio depois*

Aram Aharonian


TeleSur é um dos projetos mais importantes da última década na América Latina. Apadrinhado pela Revolução Bolivariana e pelo presidente Hugo Chávez, o canal de notícias de tornou a primeira tentativa séria de liberação audiovisual e de descolonização midiática, talvez não só na América Latina. Nesta sua primeira década de vida, esse projeto revolucionário enfrentou muitas dúvidas e debates – que se acentuaram nas últimas semanas, quando as redes sociais discutiram a celebração dos seus dez anos. Vejamos alguns fatos importantes relacionados à história do canal:

– TeleSur surgiu como um projeto estratégico orientado a criar uma resposta ao relato jornalístico hegemônico das empresas de comunicação, que replica a visão de continente gerada do Norte. Para isso, era preciso a criação de um canal multi estatal latino-americano. A ideia era cristalizar aquele sonho acariciado durante anos por jornalistas e trabalhadores ligados à cultura na região, de oferecer a imagem e a voz da América Latina para todo o mundo, e, principalmente, ver o mundo a partir de uma perspectiva própria.

– A partir de então, pela primeira vez, havia um espaço público multi estatal de televisão, para difundir uma realidade latino-americana que era, em grande medida, invisibilizada, ocultada, ignorada ou minimizada pelos grandes meios de comunicação dos países desenvolvidos, e inclusive pelos meios comercias da região.

– Com a existência de uma alternativa ao relato hegemônico, novos apoiadores foram se somando à tela, aqueles que durante muitos anos não haviam tido voz nem imagem começaram a informar e ser informados. 

– Uma das ideias fundadoras do projeto foi a de que a TeleSur pudesse servir de ponte entre os povos do continente. Como dizia um documento do canal: se vemos, nos conhecemos, se nos conhecemos, nos respeitamos, se nos respeitamos, aprendemos a gostarmos uns dos outros, e esse último é o primeiro passo para nos integrarmos. Se a integração é o propósito, a TeleSur é o meio.

– O projeto do canal TeleSur não consistia em fazer uma CNN latino-americana ou de esquerda, mas sim de revolucionar a televisão com um maior rigor jornalístico, veracidade, qualidade e entretenimento, informação e formação de cidadania. E, junto com o projeto da televisão, transitava outro ainda mais importante: a da Indústria Latino-americana de Conteúdos, que garante material novo – partindo do pressuposto de que podemos ver-nos com nossos próprios olhos – para TeleSur e todas as emissoras que foram surgindo. Esse projeto era (e continua sendo) imprescindível! Hoje, os processos de democratização da comunicação em nossos países permitiram o surgimento de novas frequências… que, em geral, repetem os mesmos conteúdos do inimigo.

– Os documentos preparatórios da televisora multi estatal incluíram a investigação diversa e plural da identidade latino-americana, e nessa tarefa encontraram algumas peculiaridades: a informalidade do latino-americano, o uso coloquial da linguagem e seu senso de humor transversal.

– A TeleSur demonstrou que era possível sim fazer um canal de alcance massivo, que mostrasse a nossa idiossincrasia, nossas realidades, nossas lutas e nossas ânsias. Que nos mostrasse tal qual somos, em toda a imensidade da nossa diversidade étnica e cultural, em toda a pluralidade da região. Lamentavelmente, o alcance da TeleSur sempre esteve limitado, por ser um canal satelital, e haver optado por enaltecer o seu caráter de canal informativo: sua criação, que poderia ter sido massiva como se esperava, lamentavelmente foi frustrada por essas problemáticas, e talvez pelo desinteresse ou pela falta de conhecimento para solucioná-las.

– Quem mais teve que se adaptar a essa nova mensagem alternativa foi a CNN En Español, que depois de 10 anos de ocultamento e invisibilização de negros, índios e movimentos sociais, teve que começar a mudar sua agenda, quando percebeu que já não era transmissor exclusivo das mensagens: por exemplo, transmitiu a cerimônia indígena de posse presidencial de Evo Morales, não pode ignorar os golpes de estado em Honduras e no Paraguai, entre outros fatos.

– Um funcionário de TeleSur conta que o canal tinha uma audiência de mais de 460 milhões de pessoas… potencial. É difícil saber (por ser somente retransmitido através de cabo) a quantidade real de gente que vê um canal que, por ser eminentemente noticioso, é vítima fácil do zapping e pouco propenso a lealdades permanentes, apesar da sintonia política com os espectadores ou a preferência de alguns por programas específicos. A TeleSur é difundido na Venezuela por quatro canais UHF. No Equador, por cinco UHF, 13 canais via satélite e uma dúzia de operadoras de cabo – também pode chegar através de operadoras estrangeiras, através de assinatura.

– Contudo, vários jornalistas fundadores de TeleSur testemunharam as seguintes realidades críticas:

a) falta convicção sobre o que significa a democratização, sobre como garantir a democratização da palavra e da imagem, para que todos sejam protagonistas, sem necessidade de intermediários;

b) a agenda informativa é reativa à gerada pelos meios hegemônicos – e, portanto, dependente da agenda do inimigo);

c) se a maior parte das imagens dos noticiários são produzidas por duas cadeias multinacionais de informação, dificilmente haverá imagens dos fatos que envolvam a visão dos mais pobres e dos movimentos sociais;

d) existe uma prioridade em dar cobertura aos presidentes da região, o que acaba tirando protagonismo dos movimentos sociais;

e) deveria servir para resgatar a memória dos nossos povos, e não somente com documentários nostálgicos ou denunciantes, mas também com programas que estimulassem a reflexão sobre essa memória e o debate sobre para onde caminhamos. Um povo que não sabe de onde vem dificilmente saberá para onde vai.

– Muitas vezes se perde de vista aqueles que devem ser os sujeitos, os protagonistas das nossas histórias, e na louca ideia de competir (inseridos numa dinâmica capitalista), o canal acaba seguindo a agenda informativa dos meios hegemônicos. Não basta entrevistar os líderes dos movimentos sociais para promover suas lutas, é preciso explicar as razões delas, como funcionam, o porquê de lutar. Dando voz e imagem aos verdadeiros protagonistas, fazendo uma televisão realmente democrática, onde todos possam se expressar, não somente os representantes. Onde as pessoas se sintam identificada com as histórias narradas. Uma televisão que priorize claramente o protagonismo popular, como diria Chávez.

– Portanto, a TeleSur não aplicou totalmente sua própria fórmula de permitir que nos vejamos com nossos próprios olhos para poder ser um reflexo, espelho da nossa gente, e segue imitando o formato anglo-saxão de se vestir e discurso padronizado internacionalmente. Enquanto isso, CNN En Español, passou a ter apresentadores com mangas arregaçadas, conversação sobre as notícias tirando o peso da formalidade, e até com um toque de humor em algumas passagens, resgatando nossa investigação sobre a informalidade do latino-americano, o uso coloquial da linguagem e seu senso de humor como traço importante da identidade regional.

– Muitos “especialistas” chegaram oferecer assessoria ao canal (talvez atraídos pela possibilidade de acesso aos petrodólares), mas quase sempre com a ideia de que a comunicação alternativa significava comunicação marginal, enquanto TeleSur aposta na massificação da informação, para que essa possa chegar às grandes maiorias. Disputar a hegemonia. Alguns dos que chegaram tinham boa fé, outros tentaram impedir que o projeto fosse uma realidade. Talvez acreditavam que aquilo que eles não puderam, não souberam ou não quiseram fazer na Europa, não devia ser feito nestes países subdesenvolvidos… Foram fortes as pressões contra Chávez para que desistisse do projeto. E agora sobre Maduro, para abandoná-lo.

– Um Comitê de Assessores, com interessantes propostas, foi desmantelado para dar lugar a assessores e capacitadores de empresas comerciais europeias, com enormes custos e perda de sentido real à televisora. 

– Sem dúvidas, o processo de digitalização da televisão em nossos países pode ajudar a TeleSur a ser incluído nas plataformas de televisão digital, o que pode fazer com que o canal ganhe mais audiência, mas seria mais importante que os novos canais disponham dos conteúdos produzidos por TeleSur (e por muitas outras emissoras da região) para difundir esse material, superando os obstáculos capitalistas dos direitos de transmissão. E que a TeleSur aproveite esse acervo audiovisual que se está criando, para se transformar, como era previsto, numa janela importante para a difusão de conteúdos latino-americanos e caribenhos.

– TeleSur não é uma cadeia de televisão, como costumam definir os meios hegemônicos, é somente um canal, que deve responder a uma empresa estatal latino-americana, e que foi se burocratizando, ao insistir em copiar os modelos, em substituir o conselho assessor pelo caro assessoramento de empresas capitalistas europeias, em confundir a linha editorial com consignas.

– Inclusive a equipe que se formou no início, com uma certa “mística telesurenha”, foi desmantelada e substituída por profissionais de meios privados, que trouxeram sua cultura, seus vícios e se desinteresse pelo projeto.

– O “temor” de que se transformasse num meio de propaganda sempre existiu, mesmo antes da estreia do canal, quando o projeto foi apresentado em diferentes foros. Connie Mack, congressista republicano da Flórida, se atreveu a qualificar o TeleSur como “uma ameaça para os Estados Unidos”, porque, segundo ele, “sua existência pode minar o equilíbrio entre os poderes no hemisfério ocidental”, em declaração feita antes que o canal emitisse sua primeira programação. A Câmara de Representantes não duvidou em aprovar, em 20 de julho de 2005, uma emenda que autoriza o governo estadunidense a iniciar transmissões de rádio e televisão que ofereçam aos venezuelanos uma fonte de notícias precisa, objetiva e completa”, demostrando assim uma arrogância colonial descomunal.

– Obviamente, o projeto original não permitia que TeleSur se tornasse um canal propagandístico, ou que servisse à agenda política de algum governo. Porém, sitiados pelos problemas políticos surgidos na região, sua condução terminou não equilibrando a informação de cada país da região. Muitas vezes, pareceu ser mais um canal da Venezuela para o exterior, que uma emissora latino-americana e latino-americanista.

– Todo meio de comunicação tem uma linha editorial, seja ele estatal, público, privado, popular. Nenhum meio é objetivo, nem imparcial, nem neutro, ainda que se disfarce de objetivo – como muitas vezes acontece – para impor seus interesses políticos, econômicos ou religiosos. TeleSur também tinha sua linha editorial bem definida, mas ao não entender bem o que significa a batalha das ideias, muitas vezes acabou por flertar com os refrões, o que lhe valeu o rótulo de propagandístico. Como em todos os meios, os chefes são os que decidem que temas devem se cobertos, qual o enfoque, que fontes consultar. Não há muitas possibilidades de propor temáticas diferentes, já que não existe uma agenda própria, mas basicamente uma postura reativa, de contestar a agenda hegemônica.

– Não existe uma só visão, uma só leitura. Mas sim uma decisão de ver a América Latina com olhos latino-americanos, de visibilizar os processos que nossos povos viviam (e vivem), de contextualizar a informação, de ter uma visão alternativa – contra-hegemônica – à dos meios comerciais, das televisoras e agências europeias e estadunidenses, à mensagem e à imagem uniformizadas, no caminho de construir uma nova hegemonia, como adiantava Antonio Gramsci. Lamentavelmente, o discurso internacional está cheio de consignas, de golpes baixos, e carece de racionalidade, debate de ideias, construção de novas subjetividades e imaginários que ajudem à construção de novas democracias e novas sociedades.

– Durante décadas, os latino-americanos nacionalistas e/ou simpatizantes da esquerda se dedicaram a um denuncismo que parecia perpétuo. Conseguiram verdadeiros doutorados em denunciologia e choramingo. Poucas vezes mostrou alternativas às imposições dos regimes neoliberais: se conformam com denunciar, assumindo o lugar de vítimas. Nos últimos anos isso tem mudado. Agora, em muitos países da América Latina, o cidadão passou a ser sujeito da política (já não objeto), consciente de seus direitos, e vai assumindo a necessidade de passar da etapa de mais de 520 anos de resistência a uma etapa de construção de novas sociedades, baseadas numa democracia participativa, onde o cidadão seja o protagonista.

– E não mostrar essas realidades é o pecado. Existe muito a se informar, sobre o que fazemos, o que propomos, o que construímos o que sonhamos. Existe uma urgente necessidade de impor uma agenda informativa e política própria, sem perder tempo reagindo permanentemente às campanhas do inimigo. Ser reativo e não proativo dá enormes vantagens ao inimigo, que é quem impõe a temática e as regras do jogo. Ser reativo é ser, de alguma forma, cúmplice do inimigo.

Tradução: Victor Farinelli

*Extraído de Carta Maior

Nota da Plurimus: a partir desta semana disponibilizamos conexão para a TeleSur. O acesso pode ser feito pela barra lateral direita na parte superior do blog.