quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Mídia e poder

Pilger: à sombra de uma Terceira Guerra Mundial?*

Por John Pilger**


Por que o jornalismo sucumbiu tão completamente à propaganda? Por que censura e distorção são a prática padrão? Por que a BBC é, tão frequentemente, porta voz dos poderosos mais rapaces? Por que o New York Times e o Washington Post mentem diariamente aos seus leitores-consumidores?

Por que não se ensina os jovens jornalistas a compreender as agendas dos veículos e a se contrapor a elas, denunciando a distância que separa os altos objetivos declarados e a realidade da “objetividade” mais falsa? E por que não compreendem que a essência de praticamente tudo que costumamos chamar de “imprensa dominante” nunca é informação, mas é só e sempre, poder?

Essas são perguntas que clamam por respostas urgentes. O mundo está diante do risco de grande guerra, talvez guerra nuclear – com os EUA claramente decididos a isolar e provocar a Rússia e provavelmente, em breve, também a China. Essa verdade está sendo invertida, apresentada de cabeça para baixo por jornalistas – entre os quais, é claro, também os que divulgaram como se fossem notícias, as mentiras que levaram ao banho de sangue no Iraque em 2003.

Vivemos tempos tão perigosos e tão distorcidos, para a percepção pública, que a propaganda deixou de ser, como Edward Bernays a chamou, “um governo invisível”. Ela é o governo. Governa diretamente, sem medo de ser contraditada, e seu principal objetivo é nos conquistar: nosso sentido de mundo, nossa capacidade de separar mentiras e verdade.

A era da informação é, na verdade, uma era da mídia. A mídia produz guerra; a mídia censura; a mídia demoniza quem queira; a mídia vinga-se; a mídia afasta a atenção dos eleitores do que a imprensa não quer que seja sabido – a mídia é uma linha de montagem surreal de clichês de rendição e pressupostos mentirosos.

Esse poder para criar uma nova “realidade” foi construído ao longo de muito tempo. Há 45 anos, um livro intitulado The Greening of America fez furor. Na capa, lia-se: “Há uma revolução em marcha. Não será como as revoluções passadas. Dessa vez, a revolução nascerá com o indivíduo.”

Eu trabalhava como correspondente nos EUA e lembro bem como, da noite para o dia, o autor – Charles Reich, um jovem aluno de Yale – recebeu status de guru. A mensagem era que a ação política e o trabalho de informar a verdade haviam fracassado, e só a “cultura” e a introspecção poderiam mudar o mundo.

Em poucos anos, movido pelas forças do lucro, o culto do “eu-mesmismo” já atropelara mortalmente nosso senso de ação conjunta, de justiça social e de internacionalismo. Classe, gênero e raça foram separados. Se era individualista e pessoal… era “político”. E imprensa, já então chamada “mídia”, era a mensagem.

Ao fim Guerra Fria, a fabricação de novas “ameaças” completou o serviço de desorientação política para todos que, vinte anos antes, ainda teriam constituído uma oposição veemente.

Em 2003, filmei uma entrevista em Washington com Charles Lewis, respeitado jornalista investigativo norte-americano. Discutimos a invasão ao Iraque, acontecida meses antes. Perguntei-lhe: “E se a imprensa mais livre do mundo tivesse denunciado as mentiras de George Bush e Donald Rumsfeld e investigado tudo que eles diziam, em vez de pôr em circulação tudo que, como em seguida se viu, não passava de propaganda a mais nua e crua?”

Lewis respondeu que se nós jornalistas tivéssemos feito o que era nosso trabalho e nosso dever “haveria boa, muito boa probabilidade de que os EUA não tivessem feito guerra ao Iraque.”

É conclusão estarrecedora, mas apoiada por outros jornalistas aos quais fiz a mesma pergunta. Dan Rather, ex-CBS, deu-me a mesma resposta. David Rose do Observer e consagrados jornalistas e produtores na BBC, que pediram para que seus nomes não fossem divulgados, disseram a mesma coisa.

Em outras palavras: se os jornalistas tivessem feito jornalismo, se tivessem perguntado e investigado, em vez de só repetir e amplificar a propaganda que recebiam pronta, centenas de milhares de homens, mulheres e crianças não teriam morrido; milhões não teriam perdido as próprias casas; e a guerra sectária entre sunitas e xiitas não teria sido insuflada; e talvez nem existisse o famigerado Estado Islâmico.

Ainda hoje, apesar dos milhões que tomaram as ruas em protestos, a maioria das populações nos países ocidentais absolutamente ainda não tem nem ideia da escala gigante do crime que os governos ocidentais cometeram no Iraque. Menos gente ainda sabe que, nos 12 anos antes da invasão, os governos de EUA e Grã-Bretanha puseram em movimento um holocausto – negando à população civil iraquiana os meios mínimos para a sobrevivência.

Essa são as palavras do principal funcionário britânico responsável por sanções impostas ao Iraque nos anos 1990 – um cerco medieval que provocou a morte de meio milhão de crianças com menos de cinco anos, como a Unicef relatou. O nome do funcionário é Carne Ross. No Ministério de Relações Exteriores em Londres, ficou conhecido como “Mr. Iraq”. Hoje, ocupa-se de contar, afinal, a verdade, sobre como o governo britânico mentia e os jornalistas acorriam, lépidos, sempre dispostos a divulgar o mais possível toda e qualquer mentira que lhes chegasse aos ouvidos. “Alimentávamos os jornalistas com factoides que os serviços inteligência nos passavam, depois de ‘aprovados’” – disse-me ele. – “Ou os mantínhamos absolutamente longe de qualquer fato.”

O principal sentinela, durante aquele período sombrio de informação falsificada, foi Denis Halliday. Então secretário-geral assistente da ONU e alto funcionário da ONU no Iraque, Halliday renunciou ao cargo e à carreira, para não ter de implementar políticas que ele descreveu como “genocidas”. Halliday estima que as sanções impostas por EUA e Grã-Bretanha ao Iraque mataram mais de um milhão de iraquianos.

O que então aconteceu a Halliday é muito instrutivo. Foi apagado do mundo. Ou foi convertido em agente do mal. No programa “Newsnight”, da BBC, o apresentador Jeremy Paxman berrou-lhe: “Você não é defensor de Saddam Hussein?” Recentemente, o Guardian descreveu essa cena como um dos “momentos memoráveis” da carreira de Paxman. Semana passada, Paxman assinou contrato de 1 milhão de libras, para escrever um livro.

Os faxineiros da supressão do jornalismo fizeram bem feito o seu trabalho imundo. Considerem os efeitos. Em 2013, pesquisa da ComRes descobriu que a maioria da população britânica acreditava que haviam morrido no Iraque “menos de 10 mil pessoas” – fração ínfima da verdade. O rastro de sangue que vai do Iraque a Londres havia sido esfregado a golpes de mídia, até quase sumir.

Rupert Murdoch é conhecido como o chefão da “máfia midiática”, e ninguém deve duvidar do estarrecedor poder de seus jornais – são 127, com circulação somada de 40 milhões de exemplares, mais a rede Fox. Mas a influência nefasta do império de Murdoch não é maior nem mais nefasta que a influência do que se conhece como “a mídia mais ampla”.

A propaganda mais efetiva não se encontra nem no Sun nem no Fox News de Murdoch – mas nos jornais e televisões ditos “sérios”, acobertados por um halo de jornalismo liberal e supostamente “civilizado”.

Quando o New York Times publicou a notícia inventada segundo a qual Saddam Hussein teria armas de destruição em massa, todos acreditaram, porque o veículo não era o canal Fox News de Murdoch: era o New York Times.

O mesmo vale para o Washington Post e o Guardian, jornais que, ambos, tiveram função criticamente decisiva no condicionamento dos seus leitores, até que aceitassem uma nova e perigosa guerra fria. Todos esses veículos da imprensa liberal falsearam o noticiário dos eventos na Ucrânia, apresentado como se a Rússia tivesse cometido algum crime – quando, na verdade, aconteceu ali um golpe fascista liderado pelo EUA, ajudado pela Alemanha e pela OTAN.

A inversão da verdade e do fato é tão generalizada que já nem se discutem, nos EUA, os movimentos de intimidação e provocação militar que Washington realiza contra a Rússia, nem se ouve qualquer oposição a eles. Não se ouve notícia alguma, todas suprimidas e censuradas por trás de uma campanha de geração de medo social, do tipo sob o qual cresci, durante a primeira guerra fria.

Mais uma vez, o império do mal vem nos pegar, liderado por um novo Stalin ou, perversamente, por novo Hitler. Escolha seu judas e pode malhá-lo até a morte.

A ocultação dos fatos reais sobre a Ucrânia é um dos mais completos blecautes de notícias de que me recordo em toda a minha vida. A maior concentração de militares ocidentais no Cáucaso e no leste da Europa, desde o final da 2ª Guerra Mundial, é escondida. A ajuda secreta que Washington deu a Kiev e às suas brigadas neonazistas responsáveis por crimes de guerra contra a população do leste da Ucrânia foi apagada do mundo. Todas as provas que desmentem a propaganda segundo a qual a Rússia teria sido responsável por abater em pleno voo um avião civil malaio com 300 passageiros foram apagadas do mundo.

E, mais uma vez, quem censura é a imprensa supostamente liberal. Sem que se apresente um único fato ou evidência, um jornalista “identificou” um líder pró-Rússia na Ucrânia como o homem que, pessoalmente, teria derrubado o avião. Esse homem, escreveu o tal jornalista, é conhecido como O Demônio. Sujeito assustador, que apavorou o jornalista. Pronto. Está tudo investigado e comprovado.

Muitos, na mídia ocidental, trabalharam duro para apresentar a população etnicamente russa étnicos que vive na Ucrânia como outsider, forasteira em seu próprio país — nunca como ucranianos que desejam ser integrados à Federação Russa, como cidadãos ucranianos em luta de resistência, diante de um golpe orquestrado contra um governo que eles elegeram.

O que o presidente da Rússia tenha a dizer não importa; é o vilão da pantomima que se pode malhar à vontade, sem consequências. Um general norte-americanos que dirige a OTAN e é perfeita reencarnação do Dr. Strangelove, o “Dr. Fantástico”. O tal generalPhilip Breedlove reclama todos os dias de invasões russas, sem um fiapo de comprovação. É a personificação do general Jack D. Ripper, de Stanley Kubrick.

Quarenta mil russos estariam reunidos na fronteira, fortemente armados, disse o Dr. Fantástico — digo, o general Breedlove. Pois foi o que bastou para alimentar o “noticiário” do New York Times, do Washington Post e do Observer – esse último, depois de ter-se destacado pelo empenho com que publicou, como se fosse informação, as mentiras e delírios que serviram de “base” para a invasão ao Iraque ordenada por Blair – como revelou um ex-repórter, David Rose.

Há quase que o “prazer espiritual” de uma reunião de classe. Os batedores-de-tambor do Washington Post são exatamente os mesmos redatores de editoriais para os quais a existência das armas de destruição em massa de Saddam Houssein seria “fato comprovado”.

“Se você se pergunta” – escreveu Robert Parry – “como é possível que o mundo tenha chegado às portas da terceira guerra mundial, do mesmo modo como chegou às portas da primeira guerra mundial há um século, tudo que tem de fazer é observar a loucura que tomou contra de virtualmente toda a estrutura político-informacional nos EUA, sobre a Ucrânia. Uma falsa narrativa de bons contra maus tomou conta de tudo desde o início. E, com o tempo, tornou-se impenetrável a qualquer fato ou informação racionalmente produzidos.”

Parry, o jornalista que investigou e expôs todo o caso Irã-“contras”, no governo Reagan, é um dos poucos profissionais que investiga o papel crucialmente decisivo desempenhado pela mídia no que o ministro de Relações Exteriores da Rússia chamou de “jogo das galinhas assustadas” [que correm cacarejando alto, antes até de saberem o que realmente está acontecendo]. Mas será mesmo jogo? No momento em que escrevo esse texto, o Congresso dos EUA está votando a Resolução n. 758 que, em resumo, ordena: “vamos nos preparar para a guerra contra a Rússia.”

No século 19, o escritor Alexander Herzen descreveu o liberalismo secular como “a última religião, embora sua igreja não seja do outro mundo, mas deste.” Hoje, esse direito divino é muito mais violento e perigoso que qualquer coisa que o mundo muçulmano produza, embora seu principal triunfo seja, talvez, a ilusão da informação livre e aberta.

Nos noticiários, países inteiros desaparecem. A Arábia Saudita, fonte do extremismo e do terror apoiado pelo ocidente, não é assunto – exceto quando reduz o preço do petróleo, e é então apresentada praticamente como associação de filantropia universal. O Iêmen sofreu 12 anos sob ataques de drones norte-americanos. Quem soube? Quem se incomoda?

Em 2009, a Universidade do Oeste da Inglaterra [orig. University of the West of England] publicou os resultados de um estudo de dez anos sobre a cobertura que a BBC dera à Venezuela. Das 304 matérias levadas ao ar, só três mencionavam qualquer das políticas socialmente mais importantes introduzidas pelo governo de Hugo Chávez. O maior programa de alfabetização em massa (que erradicou o analfabetismo na Venezuela) da história da humanidade recebeu duas linhas de comentário.

Na Europa e nos EUA, milhões de leitores e de telespectadores não sabem praticamente nada sobre as mudanças dramáticas, de melhoria na qualidade de vida que foram implantadas na América Latina, muitas delas inspiradas em Chávez. Como na BBC, também as matérias publicadas no New York Times, no Washington Post, no Guardian e no resto de toda a “respeitável” imprensa ‘séria’ no ocidente, tudo foi sempre redigido e distribuído de má fé. Zombaram de Chávez até em seu leito de morte. E fico a pensar: como se explica isso, nas escolas de jornalismo?

Por que milhões de pessoas na Grã-Bretanha aceitam e deixam-se convencer de que esse castigo coletivo chamado “austeridade” seria necessário?! Logo depois do crash econômico em 2008, o que se viu exposto foi um sistema apodrecido. Por um átimo de segundo os bancos foram “noticiados” como escroques, com dívidas para com o público, que haviam assaltado e traído.

Mas em apenas poucos meses – exceto uma poucas pedras lançadas contra “bônus” corporativos exagerados, pagos aos executivos – a mensagem já mudara completamente. As caricaturas e as críticas contra banqueiros-bandidos desapareceram da midia. E começou o tempo de glorificar algo chamado “austeridade” – para a desgraça de milhões de pessoas comuns. Houve algum dia tunga mais ousada que essa?

Hoje, muitas das bases e fundamentos da vida civilizada na Grã-Bretanha estão sendo desmanteladas, para pagar dívida fraudulenta, dívida de escroques. Os cortes de “austeridade” parecem chegar a 83 bilhões de libras. É quase exatamente o total de impostos sonegados por aqueles mesmos bancos e imprensa escroques, como a Amazon britânica e o jornal britânico de Murdoch, News UK. E os bancos dos escroques estão recebendo subsídio anual de 100 bilhões de libras, em avais, garantias e seguros grátis – dinheiro suficiente para financiar toda a Saúde Pública Nacional.

A crise econômica é pura propaganda. Hoje, a Grã-Bretanha, os EUA, grande parte da Europa, Canadá e Austrália são governados por políticos extremistas. Quem fala pela maioria? Quem está construindo a narrativa da maioria? Quem oferece informação confiável? Quem organiza e preserva registros corretos de fatos reais? Não é para isso que existem os jornalistas?

Em 1977, Carl Bernstein, apoiado na justa fama que adquiriu em Watergate, revelou que mais de 400 jornalistas e executivos da mídia trabalhavam para a CIA. A lista incluía jornalistas do New York Times, Time e das redes de televisão. Em 1991, Richard Norton Taylor, do Guardian, revelou números semelhantes, sobre seu país.

Hoje já nada disso é necessário. Duvido muito que alguém tenha tido de pagar aoWashington Post e a muitos outros veículos para que se pusessem a acusar Edward Snowden de ajudar terroristas. Duvido que alguém precise pagar os que rotineiramente ofendem Julian Assange – embora, sim, haja muitas recompensas.

Para mim, é perfeitamente claro que a principal razão pela qual Assange atraiu tanta ira, violência e inveja é que o WikiLeaks pôs a nu toda uma elite política corrupta que é mantida à tona e no poder exclusivamente por jornalistas e jornalismos. Ao inaugurar uma extraordinária era de abertura e transparência, Assange fez inimigos mortais, porque iluminar o papel dos cães de guarda da mídia e envergonhá-los. Assange tornou-se o arqui-inimigo, um alvo preferencial — mas, simultaneamente, galinha dos ovos de outro. Assinaram-se contratos lucrativos para livros e para filmes hollywoodianos, e carreiras chegaram aos píncaros da glória, nas costas de WikiLeaks e seu criador. Muita gente ganhou muito dinheiro, enquanto o WikiLeaks lutava para não morrer.

Nada disso foi mencionado em Estocolmo, dia 1ª/12, quando o editor do Guardian, Alan Rusbridger, partilhou com Edward Snowden o “Right Livelihood Award”, conhecido como o Prêmio Nobel da Paz alternativo. O mais chocante daquele evento foi que Assange e o WikiLeaks foram apagados do mundo. Como se não tivessem existido. Como se fossem não-pessoas. Ninguém falou em defesa do criador, do pioneiro absoluto do movimento de soar o alarme, de avisar do perigo mortal que se esconde na manipulação do noticiário pela imprensa. O homem que deu de presente ao Guardian um dos maiores furos de toda a história. E o mais importante de tudo: foram Assange e sua equipe de WikiLeaks quem, de fato – e brilhantemente – resgataram Edward Snowden em Hong Kong e o puseram em total segurança [em Moscou, onde hoje vive e trabalha]. Nem uma palavra.

O que tornou ainda mais gritante, irônica e desgraçada aquela censura por omissão, foi que a tal cerimônia realizava-se no Parlamento da Suécia – parlamento e autoridades cujo vergonhoso silêncio no caso construído contra Assange colaborou para um dos maiores golpes jamais assestados contra a justiça em Estocolmo.

“Quando a verdade é substituída pelo silêncio” – disse o dissidente soviético Yevtushenko – “o silêncio torna-se mentira.”

Esse tipo de silêncio mentira tem de ser quebrado pelos jornalistas. Que todos olhemos nossa própria cara no espelho. Temos de chamar às falas a imprensa submissa ao poder e ao dinheiro, e a psicose que mais uma vez ameaça arrastar o mundo à guerra.

No século 18, Edmund Burke descreveu o papel da imprensa como um Quarto Poder que fiscalizaria os poderosos. Não sei sequer se alguma imprensa algum dia fez tal coisa. Mas sei, com certeza absoluta, que, hoje, nenhuma faz. Acho que precisamos de um Quinto Estado: jornalismo que monitore, que desconstrua e que enfrente a propaganda e que ensine os mais jovens a defender os mais fracos e mais pobres, não os mais ricos e mais poderosos.

Para mim, jornalismo tem de ser a insurreição do saber subjugado.

Estamos diante do centenário da 1ª Guerra Mundial. Na época os jornalistas foram recompensados e prestigiados por seu silêncio e covardia. No auge do banho de sangue, o primeiro-ministro britânico David Lloyd George confidenciou a C.P. Scott, editor do Manchester Guardian: “Se as pessoas conhecessem a verdade, a guerra acabaria amanhã cedo. Mas não conhecem nem podem conhecer.”

Ainda não conhecem. Mas, com certeza, já é hora de conhecerem.
*Extraído de Outras Palavras
**Tradução: Vila Vudu

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

Capitalismo e crise

Piketty: Europa está à beira de uma grave crise política,
econômica e financeira*

Daniel Fuentes Castro

O economista autor do influente livro "O capital no século XXI" reflete sobre o auge da extrema direita em seu país. "França e Alemanha demonstraram ser egoisticamente míopes em relação à Espanha e à Itália ao renunciar a compartilhar seus tipos de interesse". "É preciso se acostumar a viver com um crescimento fraco". "A ideia segundo a qual é preciso insistir em secar os orçamentos com base em mais austeridade para curar o doente me parece completamente insensata".

Thomas Piketty (Clichy, Francç, 1971), economista da Paris School of Economics, é especialista no estudo das desigualdades econômicas por uma perspectiva comparada. É autor de "O capital no século XXI", obra que vendeu mais de um milhão de exemplares em todo o mundo e que ao ter sido recentemente editado para espanhol e catalão lhe transformou em um dos economistas mais influentes da atualidade.

A Paris School of Economics, de criação recente, tem sua sede nos locais da École Normal Supérieure (13 prêmios Nobel e 10 medalhas Fields nas costas), no bulevar Jourdan. Não é um dos colossais edifícios do século XIX, de pedra talhada, onde outras instituições como a Sorbonne ou a faculdade de Direito de Panthéon-Assas ainda conservam suas sedes históricas. Trata-se de um conjunto de edifícios relativamente moderno, mas avelhentado. O vinílico desgastado do solo e a cor amarelada de algumas paredes revelam que, se falamos em capital, não é físico, mas sim humano.

Três percevejos da porta do escritório de Piketty seguram uma folha de papel com seu nome. Do quarto só restou a agulha. Seu escritório mede cerca de 15 metros quadrados, 20, se muito, e está cheio de estantes repletas de livros. Não tem assistente pessoal. Não veste terno, nem gravata. Desde o primeiro momento, mostra-se amável, sorridente e natural. Um pouco tímido. Ainda que dê a sensação de não nunca ter quebrado um prato na vida, se expressa sem titubear e com veemência em alguns momentos.

Há quem veja no título “O capital no século XXI” pisca para a obra de Karl Marx “O capital”. Você considera que a confrontação ideológica entre capitalismo e marxismo continua vigente?

A disjuntiva não é capitalismo ou marxismo. Há diferentes maneiras de organizar o capitalismo e há diferentes maneiras de superá-lo. O que meu livro tenta é contribuir com este debate. Quanto ao marxismo, faço parte da primeira geração posterior à Guerra Fria, a primeira geração pós-marxismo. Completei 18 anos com a queda do Muro de Berlim (no dia da entrevista fazia exatamente 25 anos). Li Marx e há ideias interessantes nele, contribuições notórias, mas O capital foi escrito em 1867 e estamos em 2014. O que eu tento é introduzir no século XXI a questão do capital, de seu estudo, isto é, para mim, o que o título do meu livro significa.

Não se pode esquecer que este trabalho teria sido impossível sem as tecnologias da informação, que permitem reunir e tratar dados históricos em uma escala impossível para Marx e até mesmo Kuznets. É fácil criticar os economistas do passado, mas eles trabalhavam na mão. Não contavam com as ferramentas que nós temos e, sobretudo, não tinham a perspectiva histórica que hoje temos e que nos permite contar a história do capital e das desigualdades. Isto é o que meu livro tenta fazer. Não pretende anunciar uma revolução, tenta apenas colocar à disposição dos leitores as pesquisas históricas que pudemos reunir sobre mais de vinte países e que englobam três séculos. O livro é, antes de qualquer coisa, uma história do capital.

Seu livro estuda de maneira empírica, entre outras coisas, a relação entre distribuição de renda do crescimento. Pode-se falar de causalidade direta no sentido de que uma melhor distribuição da renda produzindo uma taxa de crescimento maior como efeito?

A correlação e a causalidade são ambas muito complexas e não vão em um sentido apenas. A desigualdade pode ajudar o crescimento até certo ponto, mas para além de um determinado nível de desigualdade, obtém-se principalmente um efeito negativo que reduz a mobilidade na sociedade e conduz à perpetuação da estratificação social no tempo. Isto tem um impacto negativo sobre o crescimento.

O outro efeito negativo se produz através das instituições políticas: uma desigualdade muito forte pode levar ao sequestro das instituições democráticas por parte de uma pequena elite que não vai necessariamente investir na sociedade pensando no conjunto da população. Por isso, o crescimento no século XXI vai depender em grande medida do investimento em educação e formação, e não unicamente para uma pequena elite, mas para uma imensa maioria da população.

Para além das previsões de conjuntura econômica, o que se pode esperar do crescimento nos próximos anos? O que as expressões desenvolvimento sustentável e decrescimento lhe sugerem?

Acredito que tenhamos que nos acostumar a viver de maneira sustentável com um crescimento fraco. O problema é que tanto na França como em outros países europeus continuamos tendo em mente essa espécie de fantasia dos "trinta gloriosos" (expressão que faz referência às três décadas transcorridas entre a Segunda Guerra Mundial e a crise do petróleo em 1973), segundo a qual precisamos de pelo menos três, quatro ou cinco porcento de crescimento para sermos felizes. Isto não tem sentido. Somente nas fases corretivas em que alguns países recuperam os atrasos em relação a outros, ou em fases de reconstrução, acontecem taxas de crescimento tão elevadas.

É preciso colocar na cabeça que uma taxa de crescimento de 1% ou 1,5% ao ano é um crescimento muito rápido, se prolongado no tempo. Com taxas de crescimento assim durante um período de trinta anos, que é o equivalente a uma geração, acontecerá um crescimento da renda que equivale a um terço ou até mesmo à metade do PIB.

Por outro lado, ter que viver de maneira sustentável não é argumento para defender crescimento nulo. Uma taxa de crescimento entre 1% e 1,5% ao ano no longo prazo é fonte de progresso e não é um objetivo impossível. Agora, para alcançar um ritmo de crescimento assim, é preciso abandonar a atual política de austeridade. Isso em primeiro lugar. E sobretudo é preciso investir em ensino superior, em inovação e meio ambiente... Falo de investir em meio ambiente porque é evidente que terá que encontrar novas fontes de energia renováveis, visto que com as fontes atuais não poderemos manter uma taxa de crescimento de 1% ou 1,5% ao ano indefinidamente.

Considerando as últimas previsões da Comissão Europeia, não parece que estejamos perto de alcançar essa velocidade de cruzada. Você acredita que a austeridade seja um mal necessário para retomar o ritmo de crescimento?

A realidade é que caminhamos rumo a uma década imersos em um clima de recessão e de austeridade. Digo isto porque o PIB por habitante estimado para a França em 2014 ou 2015 é inferior ao de 2006 ou 2007. Esta é a situação. Estamos há quase dez anos em estancamento da renda per capita, da riqueza do país, do poder aquisitivo... A partir daqui podemos discutir tudo o que quisermos sobre qual precisa ser a arrecadação do Estado, quanto deve ser o gasto público ou qual deve ser o peso do setor privado na economia, mas o fato é que a riqueza total disponível é inferior à de 2007. Não recuperamos o nível anterior à crise. É normal que, em uma situação como esta, o ambiente seja depressivo.

A ideia segundo a qual é preciso enxugar os orçamentos com base em mais austeridade para curar o paciente me parece completamente insensata. Digo isto pensando na França, mas o mesmo vale para a Itália, com taxas de crescimento negativas em 2013 e em 2014. É verdade que o crescimento na Espanha está um pouco melhor agora, mas não nos esqueçamos que ela ainda sofre um atraso considerável em termos de renda per capita em comparação a outras grandes economias da Europa.

O resultado global das políticas de austeridade nos últimos quatro ou cinco anos é, de maneira objetiva, muito ruim. Os Estados Unidos tinham uma taxa de desemprego muito similar à da zona do euro de alguns anos atrás e atualmente a diferença é enorme. O desemprego diminuiu ali, apesar de o nível da dívida de ambas economias ser muito semelhante na situação de partida. Não há dúvidas sobre quem escolheu a estratégia adequada.

Que outra estratégia a zona do euro deveria ter seguido para sair da crise?

Acredito que seja necessário tornar comum as dívidas públicas e os juros da dívida pública. França e Alemanha forma extremamente egoístas. Demonstraram ser egoisticamente míopes em relação à Espanha e Itália ao renunciar e compartilhar seus juros. Uma moeda única com 18 dívidas públicas e 18 tipos de juros associados a essa dívida não funciona. Os atores financeiros não têm confiança neste sistema. Poderemos sair desta crise somente se criarmos um fundo comum de dívida pública com apenas um tipo de juro. O Banco Central Europeu poderá, então, estabilizar esse tipo de juros com menor dificuldade do que atualmente com 18 diferentes.

Agora, se quisermos gerir a dívida de maneira comum, precisamos também de um Parlamento da zona do euro que tome decisões a este respeito, entre outras coisas, sobre o nível de déficit comum. Isto é o que faltou até agora nas proposições de reorientação da construção europeia que Hollande esboçou na França, e do que também se falou na Espanha e na Itália. Finalmente, isso não se traduziu em uma proposta concreta de união política e, ao mesmo tempo, orçamentária. Ambas são coisas necessárias.

Você fala em reformar o desenho institucional da zona do euro. Que diferenças haveria entre o atual Parlamento Europeu e esse Parlamento orçamentário a que você se refere na última parte de seu livro?

Atualmente, temos um Parlamento Europeu em que estão representados 28 países e, por outro lado, o Conselho Europeu de Chefes de Estado ou de Governo e o Conselho de Assuntos Econômicos e Financeiros (integrados pelos ministros de Economia e Finanças). São vários os problemas desta arquitetura democrática. O primeiro é que nem todos os 28 países representados no Parlamento Europeu querem avançar rumo a uma maior integração política, fiscal e orçamentária. O segundo, que o Parlamento Europeu não representa absolutamente as instituições dos Estado-nação e, concretamente, os parlamentos nacionais.

Por isso, acredito que faz falta, paralelamente ao atual Parlamento Europeu, uma câmara parlamentar da zona do euro ou, em todo caso, uma câmara formada pelos países da zona do euro que queiram avançar em direção a uma união política, orçamentária e fiscal, e que teria que se construir a partir dos diferentes parlamentos nacionais. Cada país estaria representado proporcionalmente à sua população, nem mais, nem menos. O mesmo para Alemanha e França e os demais. A atribuição desta nova Câmara consistiria em votar questões como um imposto comum sobre sociedade ou o nível de déficit comunitário.

Não são poucos os que pensam que, em vez de mais integração, o razoável seria retomar as moedas nacionais.

Não, para mim não é a boa solução. Agora, sem propostas alternativas rápidas, acredito que o retorno às moedas nacionais será um cenário cada vez mais difícil de descartar. Concretamente, a única resposta dada na França aos que querem sair do euro consiste em dizer que é impossível, que está proibido, que agora que entramos não se pode retroceder... Esta resposta é extraordinariamente fraca e não vai durar muito tempo mais.

A saída da crise está em avançar na união dos países da zona do euro. De certa forma, a pior das situações é a atual, porque perdemos a possibilidade de desvalorizar a moeda, perdemos a soberania monetária nacional, em troca teríamos que ganhar novas formas de soberania fiscal e orçamentária, maior capacidade para arrecadar imposta de maneira mais justa, mais capacidade de resistência para proteger frente ao risco de especulação sobre os tipos de juros da dívida pública. Até agora, França e Alemanha ganharam neste jogo, mas a única alternativa para a saída do euro é uma união da dívida, uma união fiscal. Se não nos apressarmos, acredito que as forças políticas a favor da saída do euro vão ganhar a partida.

O que se pode esperar da França na construção desta nova arquitetura institucional Europeia, exatamente agora em que a extrema direita lidera as pesquisas? A Europa deve se preocupar?

É preciso se preocupar, absolutamente. Não acredito que a Frente Nacional chegará ao poder no Eliseu ou à presidência da República, mas pode conseguir a presidência de várias regiões. No próximo ano, há eleições regionais, e dado o modo de distribuição das cadeiras, é perfeitamente possível que duas ou três regionais, ou até mais, caiam do lado da Frente Nacional.

Em um sistema eleitoral como o das eleições presidenciais, estamos acostumados que a Frente Nacional perca, inclusive se for o partido mais votado do primeiro turno. Entretanto, nas regionais, o partido mais votado obtém uma parte equivalente a um quarto das cadeiras (o resto se divide de maneira proporcional). Se a Frente Nacional conseguir 30% ou 35% dos votos em uma região, a direita 25% e a esquerda 20%, por exemplo, a parte do partido mais votado faz com que a Frente Nacional aspire ter maioria absoluta nessa região.

Será um choque enorme na Europa. Até agora, a Frente Nacional ganhou somente em algumas cidades pequenas, mas se regiões inteiras passarem a ser governadas pela extrema direita, a história será outra. Não vai ser uma piada. Vão criar tensões em algumas regiões do país e o resultado pode ser extremamente violento.

Até esse ponto?

Estamos de fato à beira do abismo de uma crise política, econômica e financeira. A crise é responsabilidade de todos os países, mas não entendo como a Alemanha continua pensando que tem interesse em manter esta visão tão rígida da austeridade... Afinal de contas, nem sequer lá o crescimento é elevado. Que consta que a responsabilidade também é da França, por não fazermos verdadeiras propostas progressivas e de refundação democrática da Europa. E continuamos esperando propostas da Espanha e da Itália. Em todo caso, acredito que a situação seja grave e que as eleições regionais na França no próximo ano serão um choque.


Muitos eleitores se incomodam porque interpretam seu livro como a evidência de um futuro com menor crescimento e pior distribuição da riqueza. Há argumentos para o otimismo?

Claro que sim. Essa é minha maneira de ser. Sinto muito se alguns chegam a conclusões pessimistas após a leitura do livro! Eu acredito no progresso social, econômico e democrático e no crescimento. Mas é preciso se acostumar a viver com crescimento menor. Insisto em que um crescimento mais fraco, se mantido no tempo, é compatível com o progresso. Há trinta anos, não dispúnhamos das atuais tecnologias da informação, por exemplo. Se nos organizarmos bem, nos dotarmos das instituições adequadas para que todo mundo possa se beneficiar, essas tecnologias serão uma enorme fonte de riquezas.

Acredito no progresso técnico e na mundialização, e o livro não é pessimista em relação ao futuro. Simplesmente, para que estas coisas beneficiem a todos, fazem falta instituições democráticas, sociais, educativas, fiscais e financeiras que funcionam corretamente. O problema é que, depois da queda do Muro de Berlim, nós imaginamos, por um momento, que era suficiente se basear nas forças naturais do mercado para que o processo de globalização e de competitividade beneficiasse a todos. Acredito que o erro esteja aí. É preciso repensar os limites do mercado, do capitalismo, e repensar também as instituições democráticas.

Tradução: Daniella Cambaúva

*Extraído de Carta Maior

quinta-feira, 6 de novembro de 2014

Participação social

Plurimus Cultura e Desenvolvimento em Revista



A participação da sociedade nas questões de interesse público tem sido quase que completamente delegada aos representantes dos poderes constituídos pela democracia representativa, vigente na maior parte dos países do mundo. Se por um lado a representação é legítima e mesmo, efetiva, enquanto instrumento institucional, por outro, parece não dar conta dos anseios de uma população que não mais se satisfaz apenas com o ritual eleitoral; convocando um papel mais ativo na tomada de decisões importantes.

Os que tomaram lugar na Primavera Árabe, os indignados de España, ou os militantes do Occuppy Wall Street e das Jornadas de Junho no Brasil - entre muitos outros movimentos globais dos últimos anos - tiveram como principal reivindicação serem ouvidos por um sistema político que, embora legitimamente eleito, não traduz seus interesses.

Os meios de comunicação e informação, sem dúvida, alargaram a possibilidade de alcance dessas vozes e, a despeito de sua atuação, têm papel de destaque nessa encruzilhada onde o cidadão se vê compelido a tomar
parte. Seria o momento de uma reinvenção da democracia no século XXI?

Convidamos a participar dessa reflexão com suas idéias e propostas na edição VI de Plurimus Cultura e Desenvolvimento em Revista.

Poderão ser enviados artigos e resenhas de livros que articulem o tema da Participação Social com o recorte editorial da revista: gestão, história, sustentabilidade, cidadania e desenvolvimento local. Além de artigos de pesquisadores e especialistas no tema haverá um espaço específico para estudantes de cursos de pós-graduação lato sensu.

Temas gerais, articulados com o nosso recorte editorial também serão avaliados.

Os autores deverão seguir as normas de publicação e enviar os trabalhos para revista@plurimus.com.br até 10 de dezembro de 2014 utilizando o modelo da revista.

Os Editores

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Meritocracia

Como se desperta o pior que há em nós*

Paul Verhaeghe**


Temos a tendência de enxergar nossas identidades como estáveis e muito separadas das forças externas. Porém, décadas de pesquisa e prática terapêutica convenceram-me de que as mudanças econômicas estão afetando profundamente não apenas nossos valores, mas também nossas personalidades. Trinta anos de neoliberalismo, forças de livre mercado e privatizações cobraram seu preço, já que a pressão implacável por conquistas tornou-se o padrão. Se você estiver lendo isto de forma cética, gostaria de afirmar algo simples: o neoliberalismo meritocrático favorece certos traços de personalidade e reprime outros.

Há algumas características ideais para a construção de uma carreira hoje em dia. A primeira é expressividade, cujo objetivo é conquistar o máximo de pessoas possível. O contato pode ser superficial, mas como isso acontece com a maioria das interações sociais atuais, ninguém vai perceber. É importante exagerar suas próprias capacidades tanto quanto possível – você afirma conhecer muitas pessoas, ter bastante experiência e ter concluído há pouco um projeto importante. Mais tarde, as pessoas descobrirão que grande parte disso era papo furado, mas o fato de terem sido inicialmente enganadas nos remete a outro traço de personalidade: você consegue mentir de forma convincente e quase não sentir culpa. É por isso que você nunca assume a responsabilidade por seu próprio comportamento.

Além de tudo isso, você é flexível e impulsivo, sempre buscando novos estímulos e desafios. Na prática, isso gera um comportamento de risco, mas nem se preocupe: não será você que recolherá os pedaços. Qual a fonte de inspiração para essa lista? A relação de psicopatologias de Robert Hare, o especialista mais conhecido em psicopatologia atualmente.

Esta descrição é, obviamente, uma caricatura exagerada. Contudo, a crise financeira ilustrou em um nível macrossocial (por exemplo, nos conflitos entre os países da zona do euro) o que uma meritocracia neoliberal pode fazer com as pessoas. A solidariedade torna-se um bem muito caro e luxuoso e abre espaço para as alianças temporárias, cuja principal preocupação é sempre extrair mais lucro de uma dada situação que seu concorrente. Os laços sociais com os colegas se enfraquecem, assim como o comprometimento emocional com a empresa ou organização.

Bullying era algo restrito às escolas; agora é uma característica comum do local de trabalho. Esse é um sintoma típico do impotente que descarrega sua frustração no mais fraco. Na psicologia, isso é conhecido como agressão deslocada. Há uma sensação velada de medo, que pode variar de ansiedade por desempenho até um medo social mais amplo da outra pessoa, considerada uma ameaça.

Avaliações constantes no trabalho causam uma queda na autonomia e uma dependência cada vez maior de normas externas e em constante mudança. O resultado disso é o que o sociólogo Richard Sennett descreveu com aptidão como a “infantilização dos trabalhadores”. Adultos com explosões infantis de temperamento e ciúme de banalidades (“Ela ganhou uma nova cadeira para o escritório e eu não”), contando mentirinhas, recorrendo a fraudes, rogozijando-se da queda dos outros e cultivando sentimentos mesquinhos de vingança. Essa é a consequência de um sistema que impede as pessoas de pensar de forma independente e que é incapaz de tratar os empregados como adultos.

Porém, o mais importante é o dano à autoestima das pessoas. O autorrespeito depende amplamente do reconhecimento que recebemos das outras pessoas, como mostraram pensadores desde Hegel a Lacan. Sennett chega a uma conclusão parecida quando percebe que a questão principal dos funcionários hoje em dia é “Quem precisa de mim?” Para um grupo cada vez maior de pessoas, a resposta é: ninguém.

Nossa sociedade proclama constantemente que qualquer pessoa pode “chegar lá” caso se esforce o suficiente. Isso reforça os privilégios e coloca cada vez mais pressão nos ombros dos cidadãos já sobrecarregados e esgotados. Um número crescente de pessoas fracassa, gerando sentimentos de humilhação, culpa e vergonha. Sempre ouvimos que até hoje nunca tivemos tanta liberdade para escolher o curso de nossas vidas, mas a liberdade de escolher algo fora da narrativa de sucesso é limitada. Além disso, aqueles que fracassam são considerados perdedores ou bicões, levando vantagem sobre nosso sistema de seguridade social.

Uma meritocracia neoliberal quer nos fazer acreditar que o sucesso depende do esforço e do talento das pessoas, ou seja, a responsabilidade é toda da pessoa, e as autoridades devem dar às pessoas o máximo de liberdade possível para que elas alcancem essa meta. Para aqueles que acreditam no conto das escolhas irrestritas, autonomia e autogestão são as mensagens políticas mais notáveis, especialmente quando parece que prometem liberdade. Junto com a ideia do individuo perfeito, a liberdade que acreditamos ter no Ocidente é a grande mentira dos dias atuais e de nossa época.

O sociólogo Zygmunt Bauman resume perfeitamente o paradoxo de nossa era como: “Nunca fomos tão livres. Nunca nos sentimos tão incapacitados.” Realmente somos mais livres do que antes no sentido de podermos criticar a religião, aproveitar a nova atitudelaissez-faire com relação ao sexo e apoiar qualquer movimento político que quisermos. Podemos fazer tudo isso porque essas coisas não têm mais qualquer importância – uma liberdade desse tipo é movida pela indiferença. Por outro lado, nossas vidas diárias transformaram-se em uma batalha constante contra uma burocracia que faria Kafka tremer. Há regulamentos para tudo, desde a quantidade de sal no pão até a criação de aves na cidade.

Nossa suposta liberdade está ligada a uma condição central: precisamos ser bem-sucedidos – ou seja, “ser” alguém na vida. Não é preciso ir muito longe para encontrar exemplos. Uma pessoa muito bem qualificada que decide colocar a criação de seus filhos à frente da carreira certamente receberá críticas. Uma pessoa com um bom trabalho, que recusa uma promoção para investir mais tempo em outras coisas é vista com louca – a menos que essas outras coisas garantam o sucesso. Uma jovem que deseja ser uma professora de primário ouve de seus pais que ela deveria começar obtendo um mestrado em economia. Uma professora de primário, o que será que ela está pensando?

Há lamentos constantes com relação à chamada perda de normas e valores em nossa cultura. Ainda assim, nossas normas e valores compõem uma parte integral e essencial de nossa identidade. Portanto, não é possível perdê-las, apenas mudá-las. E é exatamente isso que aconteceu: uma mudança de economia reflete uma mudança de ética e gera uma mudança de identidade. O sistema econômico atual está revelando nossa pior faceta.

*Extraído de Outras Palavras

**PhD e professor sênior da Universidade de Ghent. Ocupa a cadeira do departamento de psicanálise e aconselhamento psicológico. Já publicou oito livros, com cinco traduzido para o Inglês. Sua mais recente, What About Me? A luta pela identidade em uma sociedade baseada no mercado.

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Plurimus Cultura e Desenvolvimento em Revista

Trouxeste a chave?



O artigo 205, da Constituição brasileira de 1988, garante a todo o cidadão deste país que “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”, assenta, portanto, sua base em três dimensões: desenvolvimento humano, cidadania e trabalho.

Se é inegável que a universalização da educação, especialmente no Brasil, trouxe avanços sem precedentes para a organização da sociedade, é igualmente verdade que as assimetrias no processo educativo têm provocado distorções na maneira como cada uma dessas dimensões é resguardada no cumprimento deste direito constitucional.

Os desafios impostos pela contemporaneidade aos indivíduos requer a ampliação do saber de modo sempre constante; seja para fazer valer os seus direitos enquanto cidadão, seja no processo de especialização necessário aos desafios de inserção plena no mundo trabalho. Mas, fundamentalmente é no tocante ao desenvolvimento humano que o conhecimento torna-se o principal ativo que os indivíduos possuem para manterem-se críticos em relação ao tipo de ambiente que se pretende compartilhar.

Desta forma, discutir o papel cultural (e político) da educação na atualidade é assunto que não deveria ser negligenciado por nossos intelectuais e cidadãos de modo geral, dada a relevância que seus desdobramentos assumem em nossa vida social.

Por isso, a edição V de Plurimus Cultura e Desenvolvimento em Revista introduz o debate ao lançar, por meio dos artigos que a compõem, questões a serem refletidas pelos seus leitores e eventualmente desenvolvidas em seus espaços de atuação.

A edição é composta de duas partes. Dois artigos debatem de modo mais amplo o papel da Educação dentro das dimensões acima mencionadas, quais sejam, no tocante ao mundo do trabalho e às políticas educacionais. Outros dois artigos que tratam de especificidades da educação aplicada.

O artigo da Socióloga argentina Silvia Patrícia Altamirano introduz o pertinente debate acerca do desemprego juvenil no Brasil. Destaca que, a despeito de programas e políticas implementadas no sentido de reduzir o percentual de jovens desempregados, é a insuficiência de postos no mercado de trabalho o principal responsável pelo agravamento dessa situação.

Na sequência, a Educadora Isa Martins, aborda a inserção acrítica das  Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC) no ambiente da escola. Ao problematizar com aguda propriedade os paradoxos da política educacional implementada pelo Ministério da Educação (MEC) questiona se a lógica de utilização indiscriminada dessas tecnologias como ferramentas educacionais não estaria subordinando a interesses de mercado a mediação das relações professor-aluno. Debate altamente relevante, portanto.

Entrando no debate aplicado dos processos educacionais em áreas específicas do conhecimento, o artigo do Administrador Marcelo Marujo e da Contadora Laila Tavares trata das competências do profissional contábil de seguros, trazendo ao debate, inclusive, questões sobre a sua formação na grade curricular das graduações em Ciências Contábeis no país.

Por fim, na seção de Temas Gerais, novamente o Administrador Marcelo Marujo, em parceria com o Analista de Sistemas Fischer Jônatas Ferreira apresentam suas contribuições à análise da documentação técnica sobre o desenvolvimento e manutenção de softwares, em especial contrapondo as metodologias de desenvolvimento de software Clássica e Ágil.

Plurimus Cultura e Desenvolvimento em Revista é uma publicação independente e decorre do esforço de professores e pesquisadores que se propõem a abrir um espaço de reflexão e debate acerca de temas que contribuam para um outro olhar da realidade e para a construção de um outro mundo. Nossas edições estão disponíveis gratuitamente mediante cadastro no endereço www.plurimus.com.br.

Podem participar todos os interessados em se apresentar para esse processo plural. A próxima edição terá como tema central a questão da Participação Social, sempre dentro do nosso recorte editorial, contemplando as várias possíveis nuances em que se pode discutir um tema tão contemporâneo e relevante quanto este. Contamos com a suas ideias.

Boa leitura!


Os Editores

quinta-feira, 11 de setembro de 2014

Eleições no Brasil


Gestão ou política?

Daniel Roedel


Em época de eleições é muito comum que candidatos se apresentem a cargos executivos como sendo modernos gestores preocupados e atentos ao modo de como vão conduzir o poder público tanto no âmbito federal, como no estadual e municipal. E essa postura parece encontrar respaldo em parte do eleitorado que, ansioso por uma melhor qualificação na prestação dos serviços públicos, acaba por ecoar esse modo de fazer política, porém sem política.

Não é que a gestão não seja importante nem que não tenha o seu espaço na condução da coisa pública. Porém, deve se ter claro que ela possui alcances e limites que estão obviamente subordinados a uma orientação política que acaba escondida ou abandonada na intenção de se encontrar alguém para ocupar tais cargos do poder executivo, que seja capaz de fazer bem feito o dever de casa.

Essa conduta, parece ter se fortalecido a partir dos anos 1990, quando o triunfo da orientação capitalista sobre o modelo socialista, então praticado em diversos países, decretou que não havia mais disputa entre distintas visões de mundo e de organização da sociedade. Restava apenas aos países conduzirem a gestão pública com eficiência e eficácia para se alcançar vantagens competitivas num mundo integrado e plano.

Assim, a política passou a ser entendida como uma discussão saudosista e jurássica, objeto de paixão daqueles que ainda insistiam em fazer um debate ideológico que, segundo esses apologistas do fim da história, não tinha mais sentido.

Mas novamente a história insiste em desmentir esses ideólogos disfarçados de especialistas isentos. Isto porque a crise que abalou os países centrais, se alastrou por todo o planeta e que ainda persiste no mundo, mostra que a orientação única da vida dos países é a própria crise! E nela, cada vez mais a necessidade de remunerar especuladores vorazes aumenta a necessidade de uma gestão que privilegie uma dita “austeridade”. Esse modelo único tem predominado no mundo na atualidade. Assim, se eliminam ações sociais para se adquirir um superávit primário e remunerar os “investidores”.

É isso que mais uma vez Maria Lúcia Fattorelli e a Auditoria Cidadã da Dívida Pública, de cujo núcleo do Rio de Janeiro participo, mostram no importantíssimo documentário Dívida pública brasileira – a soberania na corda bamba.

Para se ter uma ideia da sangria anual, basta verificar o gráfico a seguir do orçamento federal para 2014, divulgado pela Auditoria cidadã:


Mas não se contentem aqueles que se opõem ao atual governo! A sangria vem dos governos dos generais que tiveram forte apoio de segmentos empresarias. Isso mesmo! Eles nunca foram moralizadores como atualmente se divulga.

Convidamos a todos interessados na busca de outros mundos possíveis a divulgarem o documentário e a Auditoria Cidadã. O trabalho de Maria Lúcia e da Auditoria, já apresentado neste espaço, é bastante oportuno para entendermos e nos posicionarmos com relação à situação em que vivemos. É também uma grande bandeira para aqueles que foram às ruas em 2013 no país em busca de uma sociedade melhor. Além, é claro, de ser um exemplo de que não somos vira-latas como pensa parte da elite e de setores da classe média. Nossa condição de subdesenvolvimento é a condição de desenvolvimento para os países centrais. Mas aí temos que voltar a Celso Furtado e Florestan Fernandes, entre outros importantes brasileiros, que não desistiram do pensamento crítico.

Clique aqui para assistir

quinta-feira, 3 de julho de 2014

Sustentabilidade e competitividade

Empreendedorismo e sustentabilidade

Daniel Roedel

Vivemos numa época de intenso consumo estimulado por apelos da mídia, pela valorização do efêmero e pelo culto ao individualismo como caminho para o sucesso de pessoas e organizações. Numa perspectiva mais acirrada, isso conduz a uma redução do outro a mero instrumento do eu. E esse outro pode ser um indivíduo, um grupo social, uma sociedade, um país, a natureza, o Estado. Reduzidos a mero instrumento da insaciável satisfação de egos inflados valem enquanto cumprem o papel de proporcionar satisfação e sucesso no curto prazo a indivíduos e empresas vorazes e competitivas.

Mas essa busca contumaz tem produzido externalidades cada vez mais visíveis e difíceis de se ignorar. Hoje, já se percebem e evidenciam os custos socioambientais dessas práticas, bem como se constata que o processo é por excelência excludente. Afinal, não há natureza que se explore infinitamente com tal intensidade e nem competitividade que no outro extremo recompense o trabalho e proporcione a quem de fato produz a condição de usufruto tão valorizada pelo modo de vida hegemônico.

Ou seja, a sociedade de consumo não se universaliza! Mas pela ideologia dominante sempre teremos os vencedores e os perdedores, porém, sem nunca discutirmos as regras do jogo, dadas como naturais...

E como construir um outro modo possível de viver, produzir e usufruir se as décadas recentes têm sido marcadas por esse "pensamento único", que parece ter sido vitorioso com o sucesso do ideário liberal, radicalizado por um receituário neoliberal, frente ao que se disse ser sociedade fraterna e socialista e que, a despeito de conquistas, também produziu externalidades socioambientais negativas?

É possível aliarmos o desejo individual que encontra no mercado sua instável realização com um pensamento e uma prática que valorizem e reconheçam não só o direito coletivo, mas o acesso ao conjunto da população global ao produto do trabalho social? Como superar as assimetrias da atual correlação de forças e superar as externalidades negativas? Que tipo de consenso se pode construir? Há espaço para novas utopias ou seremos mesmo tragados pelo efêmero da denominada pós modernidade?

Novamente Marcelo Marujo, professor e pesquisador do tema da sustentabilidade, apresenta sua contribuição. Na obra Empreendedorismo e Sustentabilidade: responsividade às emergentes demandas socioambientais apresenta novos olhares sobre o tema e se propõe a identificar caminhos para se competir de modo sustentável. Pela trajetória do autor, já citado neste espaço em outra publicação sobre o tema vale a pena conferir. Sem desprezar o lado empreendedor, Marujo incentiva a que se perceba as vantagens competitivas de se obter resultados sustentáveis além do estritamente econômico. Procura contribuir para uma nova crença no indivíduo e na sociedade.

Vale a pena conferir!

quinta-feira, 12 de junho de 2014

O Brasil e o futebol

A Copa é nossa!

Celso Evaristo Silva*

O jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues (1912-1980) alertava sempre sobre um dos nossos passatempos preferidos: falar mal do Brasil. Dizia Nelson: “O brasileiro é um Narciso às avessas – cospe na própria imagem !”. E também pontuava nosso complexo de inferioridade chamando-o de ‘complexo de vira-latas’. Um tablete de manteiga ganhava importância pelo simples fato de ser importado. Há quem atribua essa postura aos maneirismos da corte portuguesa (em Portugal, a elite do séc. XIX costumava falar francês nos eventos sociais). Outros juram que o tal ‘complexo’ é herança do período colonial, de povo colonizado. Não importa, a verdade aponta para o desprezo pelas ‘coisas nossas’. Os maxixes (dança e fruto), a farinha de mandioca, o samba, o choro, a rede de dormir, a feijoada e outros pratos da culinária popular eram estigmas das influências africana e indígena que a elite branca e europeizada queria longe de si, embora fosse difícil dissimular as marcas deixadas pelas culturas negra e ameríndia em nossa sociedade. Quem folhear “Casa Grande e Senzala”, do sociólogo Gilberto Freyre (1900-1987), ou “O povo brasileiro”, do antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997), entenderá perfeitamente o pequeno drama existencial do Brasil: “Ser ou não ser o que sou ?”.

Roberto Burle Marx (1909-1994) foi um dos pioneiros na utilização de plantas originárias da flora brasileira para decorar os jardins por ele criados. Ele se indignava com a não valorização de nossa riquíssima flora: “Fui conhecer só na Europa algumas das mais belas plantas do Brasil.”

Por aqui só se plantavam olmos, pinheiros-do-canadá, salgueiros, tulipeiras, roseiras e tudo mais que viesse de fora. O paisagista teve execrado seu primeiro jardim, no Recife, por ornamentá-lo com mandacarus, ipês, juremas, araçazeiros e outras plantas silvestres típicas do sertão, associadas, quase sempre, à miséria, seca, fome, povo e, por derivação semi-consciente, ao Brasil. Poderíamos desfilar aqui uma lista imensa de criadores encantados com nossas tradições e contradições: Villa-Lobos (1887-1959), Pixinguinha (1898-1973), Tom Jobim (1927-1994), e por aí vai . . . Essa gente toda bebia na cultura popular; serviam de catalisadores entre seu refinamento rústico e a rigidez da alta cultura.

A pintora Tarsila do Amaral (1886-1973) declarou-se marcada pela cultura mineira após viagem às cidades históricas do ciclo do ouro: “encontrei em Minas as cores que adorava em criança. Ensinaram-me depois que eram feias e caipiras. Segui o ramerrão do gosto apurado . . . Mas depois vinguei-me da opressão, passando-as para as minhas telas.”

Bem, mas voltemos ao futebol; voltemos, não, nem falamos dele ainda. Falamos do Nelson e da sua constatação de nosso niilismo em relação ao que é brasileiro. E o que é mais brasileiro do que o futebol? Esse bretão chegou ao Rio de Janeiro aristocrático, de mansinho passou a perna no remo e conquistou o povão.
Em São Paulo coube a Charles Miller (1874-1953) trazer nossa primeira bola de futebol da Inglaterra e, junto com os funcionários da Cia de Gás e da Cia Ferroviária de São Paulo, organizar a primeira partida de futebol do país.

Paradoxo. O esporte estrangeiro e aristocrático se popularizou ao ponto de se tornar um traço marcante de nossa nacionalidade. Negá-lo é cuspir sim na própria imagem. A seleção, por sua vez, virou a ‘pátria-de-chuteiras’. Um dos símbolos nacionais como o hino e a bandeira. Ao assumir este posto passou a ser alvo da nossa autocrítica forte para com as coisas da terra. Imaginem só o estado de espírito daqueles que enxergam nos gostos populares a expressão maior de alienação política e tibieza moral! Não pode ser outro senão o de condenar com todas as forças do pulmão a realização de uma Copa do Mundo no Brasil: ‘Não queremos Copa!’; ‘Queremos saúde, educação, segurança e transporte de qualidade!’. Pois bem, mas, e se a população quiser Copa, saúde, educação etc etc etc? E se ela entender que ter uma coisa não impede a conquista das outras? E se ela souber separar o oportunismo político do ‘sim-ou-não-para-a-copa’, vindo tanto do governo quanto da oposição? A galera sempre separou Garrincha e Maraca prum lado e cartolagem e FIFA pro outro !

É vera a aceitação por pequena parte das camadas populares desse discurso niilista de setores de nossa classe média. Como também é verdade que o resultado final do torneio pode ter alguma influência nas eleições; porém, deixar de curtir um evento desta magnitude em nome de uma falsa consciência moral é resvalar para o que o filósofo Friedrich Nietzsche (1844-1900) chamou de ‘ressentimento’, ou seja, a reação de ascetas contra a alegria de viver que proíbem a si mesmos e aos outros.

* Administrador e Sociólogo. Mestrando em Políticas Públicas e Formação Humana.



quinta-feira, 29 de maio de 2014

BRICS

Consenso do Rio*
 Como participantes da Conferência BRICS no Século XXI, que reuniu no Rio, de 20 a 23 de maio, especialistas de Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, expressamos a convicção de que é tarefa fundamental dos governos e das sociedades de nossos países manterem como prioridade absoluta promover o desenvolvimento econômico como esteio do desenvolvimento social com sustentabilidade ambiental, tendo em vista o imperativo de garantir o pleno emprego e reduzir a pobreza e a desigualdade econômica, o que jamais ocorrerá numa sociedade estagnada.
 Consideramos lamentável o fato de que, não obstante a aguda crise social e de desemprego por que passam os países industrializados avançados, a maioria deles se recusa abertamente ou se omite em tomar iniciativas no campo fiscal e monetário para a retomada do crescimento econômico. Com isso prejudicam, sobretudo na Europa, grande parte de sua população assim como às populações dos demais países, inclusive emergentes, que se defrontam com o estreitamento do mercado mundial e com as pressões comerciais superavitárias que visam a compensar a ausência de políticas fiscais e monetárias ativas.
 Entendemos que a superação da presente crise nos países industrializados avançados não pode ser uma escusa para uma escalada bélica no mundo. Não é demais lembrar que estamos na era nuclear e isso cria um virtual nivelamento de poder destrutivo entre nações nuclearizadas. Não há como sair ganhando numa guerra mesmo convencional na era nuclear. Os temas geopolíticos têm necessariamente que ser levados à mesa de negociações, respaldados pela força democrática dos povos, livres de qualquer tipo de pressão e sanções unilaterais.
 No campo econômico e social, é indiscutível que os países BRICS estão tendo um desempenho superior ao dos países industrializados avançados, cujas elites ainda teimam, para pagar menos impostos, em manter o receituário do Estado mínimo e da autorregulação dos mercados – não obstante o colapso dessas teses no bojo da crise em curso. Por isso, afirmamos nossa concordância com as linhas gerais das estratégias que vêm sendo usadas ou que devem ser usadas por nossos governos, e que reputamos sejam, em grande parte, as causas essenciais desse desempenho. São elas:
  1.  Forte presença reguladora do governo central na economia, especialmente em setores estratégicos, e compromisso em garantir bens básicos para a população;
  2.  Presença de um forte sistema de bancos públicos de desenvolvimento, que faz a correia de transmissão entre planejamento e o financiamento de médio longo prazo;
  3.  Presença de fortes empresas estatais estratégicas, com capacidade de aplicar as decisões de planejamento e exercer um poder de arraste sobre o setor privado;
  4.  Compromisso com políticas fiscais anticíclicas, isto é, expansivas na recessão e contracionistas no boom;
  5.  Controle de capitais para evitar ondas financeiras especulativas;
  6.  Política de integração econômica estrategicamente planejada;
  7.  Forte compromisso com a adoção de estratégias de desenvolvimento sustentável e estabelecimento de acordos de padronização para os respectivos resultados;
  8.  Busca comum de desenvolvimento tecnológico que permita que os países BRICS se tornem mais competitivos em termos globais;
  9.  Troca de recursos educacionais e culturais com o suporte dos governos e para o desenvolvimento de pesquisas comuns;
  10.  Os governos BRICS precisam trabalhar por um comércio mais equilibrado movendo-se no sentido de um maior balanço no processamento nacional de matérias primas;
  11.  Compromisso efetivo dos governos para colocar em prática as políticas de combate à pobreza e a desigualdade econômica;
  12.  O Conselho dos BRICS deve estar pronto para agir como mecanismo de implementação de todos os princípios citados a qualquer momento que for requisitado para isso.
Por certo que nem todos os países BRICS usaram da totalidade desses instrumentos para o enfrentamento das consequências internas da crise internacional. Contudo, mesmo uma observação superficial leva à conclusão de que os que melhor se saíram foram justamente aqueles que usaram mais decididamente uma combinação mais ampla desses recursos de política econômica.
Rio de Janeiro, 23 de maio de 2014.
*Extraído de BRICS no Século XXI