quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação

Florestan Fernandes continua a ter razão*


Zacarias Gama**


A Presidente da República Dilma Rousseff acaba de sancionar a Lei nº 13.243, de 11 de janeiro de 2016, que dispõe sobre estímulos ao desenvolvimento científico, pesquisa, capacitação científica e tecnológica e à inovação. O autor do Projeto de Lei foi o deputado federal Bruno Araújo (PSDB-PE) que presidiu a Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara dos Deputados em 2011. Um Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação era esperado há muito tempo pela comunidade de cientistas brasileiros, ansiosa por “medidas de incentivo no ambiente produtivo, com vistas à capacitação tecnológica, ao alcance da autonomia tecnológica e ao desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional do País”.

Os princípios em que se baseia o Marco Legal não apenas visam a promoção das atividades científicas e tecnológicas estratégicas, mas também a continuidade dos processos de desenvolvimento científico; redução das desigualdades regionais; espraiamento das atividades científicas pelo território nacional; promoção da cooperação entre os setores público e privado e entre empresas; estímulo à atividade de inovação nas instituições científicas e nas empresas; promoção da competitividade empresarial interna e externamente; incremento da capacidade operacional, científica, tecnológica e administrativa das instituições científicas, tecnológicas e de Inovação (ICTs); desburocratização e simplificação de procedimentos para a gestão de projetos de ciência, tecnologia e inovação; e apoio, incentivo e integração dos inventores independentes às atividades das ICTs e ao sistema produtivo.

Nas bases em que foi sancionado, sua justificativa é a necessidade de incrementar o desenvolvimento científico, tecnológico e de inovação do País e à crise de financiamento vivida pelas agências governamentais de fomento. A abertura à iniciativa privada na área de ciências, tecnologia e inovação, conforme os cânones privatistas do PSDB, deverá se traduzir em substantivos aportes de recursos financeiros e tecnológicos, permitindo que o País nominalmente se insira no que está sendo chamado de Sociedade e Economia do Conhecimento. Mas, como era de esperar há perversidades e entreguismos aparentes, aliás bem característicos do modus operandi deste partido político.

A primeira e mais visível tem a ver com a exclusiva prioridade à ciência, tecnologia e inovação e o consequente alheamento das demais áreas do conhecimento, condenando-as a estados de incerteza e indefinição. Em sua redação ficou parecendo que a ciência, tecnologia e inovação prescindem de qualquer humanidade. A história, entretanto, nos mostra que a desumanização da ciência pode gerar exclamações trágicas como as do físico Julius Robert Oppenheimer (1904 –1967) após o sucesso de sua bomba termonuclear: “Agora eu me torno a morte, o destruidor de mundos”. Mahatma Ghandi, em sua sabedoria, também já nos dizia que a ciência sem humanismo é um pecado capital produtor de injustiças sociais.

No Brasil, lamentavelmente a tendência de desumanização da ciência anda a passos largos. As Estratégias Nacionais de Ciência, Tecnologia e Inovação para o período 2012 – 2015, divulgadas pelo Ministério de Ciência e Tecnologia (MCT, 2012) e aqui tomadas como exemplo, consideram o ser humano apenas como capital social destinado a engrossar os recursos compassivos para o desenvolvimento nacional. O foco que coloca na sociedade visa diminuir as desigualdades e elevar bem-estar social e faz parecer que o objetivo é a construção de um “Admirável Mundo Novo”, que à semelhança daquele pensado por Aldous Huxley também se edificaria essencialmente científico e harmonizado com as leis e regras sociais, pouco se importando com o distanciamento de vários princípios éticos e de valores morais. Como no mundo de Huxley, o soma, ou outra droga alucinógena qualquer, é que diminuiria o sofrimento e a infelicidade; Shakespeare, ao que tudo indica, ao mesmo tempo tenderia a ser uma coisa exótica e própria de alguns selvagens.

Outro problema certamente mais grave é a privatização da produção científica, tecnológica e inovadora. A abertura das nossas instituições ICTs, parques e polos tecnológicos à entrada de empresas privadas ávidas de lucro, se de um lado garante os recursos financeiros e materiais para o desenvolvimento científico e tecnológico do País, de outro facilita que tais empresas se utilizem do capital intelectual das ICTS brasileiras e retenham para si a propriedade e a titularidade intelectual sobre os resultados ainda que na forma da legislação corrente. Não é insensato pensar o risco de vivermos um ciclo de colonização da nossa produção de conhecimentos pelos centros orgânicos do capitalismo mundial. Ajuizar que tais empresas investirão no desenvolvimento de ciência, tecnologia e inovação de modo a contribuir para o desenvolvimento independente e sustentável do Brasil é de uma ingenuidade pueril. As inversões estrangeiras servirão antes à acumulação de riquezas nos centros orgânicos do capital e à manutenção da nossa dependência.

O Marco Legal poderia ter mais cores nacionais. Por que não ser prioritariamente indutor do desenvolvimento científico, tecnológico e inovador do Brasil contando com a cooperação das forças sociais existentes? Por que não comprometer a área com a modernização, desenvolvimento e fortalecimento País, levando-o a se mover independente pelo conhecimento?

Ora, sabidamente as nossas ICTs, parques e polos tecnológicos têm múltiplos objetivos e fins, nem todos, porém, podem ser redutíveis às estreitas percepções do mundo capitalista. Assim, vale então perguntar: por que não se insurgir contra a apropriação dos conhecimentos científicos, tecnológicos e de inovação pela propriedade privada, na qual se funda o capital? Por que se tornar basicamente um facilitador do vigoroso processo de privatização dos recursos humanos e do patrimônio científico público? O Sindicato Andes-SN, ao criticá-lo, observa inclusive que em médio prazo é possível que o conhecimento produzido nas ICTs brasileiras sequer possa ser publicado por seus desenvolvedores, visto que serão patenteados e controlados por financiadores privados.

A análise desse Marco Legal nos remete inexoravelmente a Florestan Fernandes e aos padrões que enunciou para explicar a dominação externa na América Latina. O querido e saudoso Mestre continua a ter razão, na medida em que permanecemos incapazes de impedir a nossa incorporação dependente, desta vez em uma Sociedade e Economia do Conhecimento. Por incrível que possa parecer a institucionalização de nossa produção científica prossegue sendo realizada com a exclusão permanente dos interesses nacionais e sacrifício de um estilo democrático de vida.

Ainda insistimos em estabelecer “uma conexão estrutural interna para as piores manipulações do exterior” (FF, 2008).

*Extraído de Carta Maior

**Professor Associado da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Membro do corpo docente do Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH) e do Comitê Gestor do Laboratório de Políticas Públicas (LPP).