quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Ideologia

O preço do descaso
Celso Evaristo Silva*


“Estavas, linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo doce fruito,
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a fortuna não deixa durar muito . . .”

(Camões, Os Lusíadas, Canto III)

Para muitos analistas políticos, uma desconfiança virou sentimento e está prestes a se transformar em constatação: a de que a esquerda, no Brasil, está perdendo (ou já perdeu) a luta ideológica para o campo da direita. As causas prováveis do desfecho da contenda são de natureza vária, porém duas se destacam. Primeiro, a confusão conceitual sobre o que vem a ser ideologia. Intelectuais, políticos e militantes de esquerda têm confundido, com frequência, ideologia com propaganda ou retórica. Não que o campo conservador tenha tão maiores esclarecimentos sobre o tema; por vezes, tem bem menos. A diferença é que os conservadores parecem ter acordado para a importância das idéias, valores e suas implicações práticas no curto e no longo prazo, mesmo quando desconhecem a natureza complexa do fenômeno. Esse despertar é a segunda causa da vantagem obtida pelos conservadores. Quem domina, conhece, avalia o papel da ideologia no embate político obtém vantagem sobre seus adversários quanto ao planejamento estratégico - em outras palavras - tem um norte; sabe pra onde vai.

Confusão conceitual e descaso de um lado garantem vantagem ao outro. Significativa parte da esquerda brasileira é herdeira da tradição stalinista. Ainda que revisões históricas tenham sido feitas, a matriz básica é essa. Em tal matriz o elemento tático, imediato, operacional, de curto prazo prevalece sobre o estratégico (visão de longo prazo), fazendo com que este seja negligenciado, ou, quando muito, vá a reboque daquele. Como o fenômeno ideológico tende a mover-se para fora do “aqui e agora”, numa perspectiva de tempo mais longa, as consequências são obvias.

Nos últimos anos, a direita brasileira tem se preocupado com a questão. Matéria publicada pela revista “Carta Capital”, no seu nº 727, revela a reorganização do campo conservador, o quanto ele tem avançado na construção de estruturas ideológicas necessárias a sua atuação política, no sentido mais amplo do termo. Desde a equalização da grande mídia em torno de princípios comuns, até ao fortalecimento de organizações aglutinadoras do pensamento conservador, como o Instituto Millenium.

A revista descreve o atual estado de coisas, deixando claro o avanço significativo da direita no que se refere à criação/articulação de uma rede de grupos e instituições conservadoras, bem como a formação de quadros de jovens jornalistas e militantes. O que a revista não faz – e isso decorre de sua própria linha mais à esquerda – é avaliar a contribuição da própria esquerda no sucesso dos conservadores.
Ela até tenta explicar a situação pela via do apoio empresarial. Por certo, isso tem lá sua grande importância, mas escamoteia o que o outro lado deixou e deixa de fazer para tentar neutralizar o movimento hegemônico conservador.

A começar pela oligopolização da grande mídia, cujo viés conservador é nítido. É bem verdade que essa tendência não é exclusividade brasileira: ela acontece em escala mundial. Agora mesmo, no Reino Unido, ocorre acirrado debate sobre a grande concentração de poder da mídia local, devido à oligopolização do setor, em especial, o poder desmesurado do grupo de Rupert Murdoch. Debate-se, por lá, a necessidade ou não de mecanismos de regulamentação ou autorregulamentação. O mesmo ocorre na Argentina, cuja disputa entre governo e o “Clarim” já entrou até para o anedotário popular.

Qualquer debate sobre regulamentação da mídia traz embutidas questões éticas polêmicas. É impensável uma democracia autêntica sem a chamada liberdade de imprensa e informação. Se essa é uma verdade insofismável, também o é a constatação de que a oligopolização da mídia, em qualquer sociedade, tende a inibir o contraditório o debate fluido e enriquecedor de idéias, sendo, pois, tão perigosa essa concentração de poder quanto o cerceamento da mídia privada por parte do Estado.

Os grandes oligopólios midiáticos pautam o que vai ser publicado; quais assuntos merecem destaque e por quanto tempo; quais denúncias devem ser feitas contra ou a favor de quem; quando e em quais circunstâncias as notícias serão divulgadas, além de facilitarem a articulação dos formadores de opinião, segundo interesses específicos, transformando-se num verdadeiro quarto poder. Só pra exemplificar: o resultado final de um reality show pode, se assim um determinado grupo midiático decidir, ganhar mais tempo no telejornal de horário nobre do que um debate sobre a flexibilização do mercado de trabalho e suas consequências sociais e políticas.

Bem, mas voltemos ao nosso ponto de partida. Em entrevista no programa Manhattan Connection, da Globo News, Sandra Moscovitch, diretora do Instituto Ling, falou como a instituição sem fins lucrativos faz seus investimentos em educação e dá bolsas de estudos em universidades e escolas de negócios internacionais, para jovens interessados em estudar administração, direito e, agora, jornalismo. As escolas são os tradicionais centros de formação do ideário conservador, ao mesmo tempo em que primam pela qualidade do ensino; ou seja, ao mesmo tempo em que se forma gente qualificada, formam-se novos quadros do pensamento liberal conservador. Vários grupos econômicos de peso contribuem para o programa. O aluno assume, ainda, o compromisso de, uma vez formado, cooperar com a bolsa de estudos de futuros estudantes. Um círculo virtuoso tendente a se propagar na formação de intelectuais orgânicos, na linha do que o filósofo Antônio Gramsci (1891-1937) chamaria de sólido processo de construção de uma hegemonia de classe.

Enquanto Inês se postava em sossego, alguém tratou de ler e aplicar na prática as ideias do marxista italiano.
*Administrador e sociólogo. É membro do Conselho Editorial de Plurimus Cultura e Desenvolvimento em Revista 

quinta-feira, 8 de novembro de 2012

Sociedade e consumo

Castells vê “expansão do não-capitalismo”* 
Paul Mason

O professor Manuel Castells é um dos sociólogos mais citados no mundo. Em 1990, quando os mais tecnologicamente integrados de nós ainda lutavam para conseguir conectar seus modens, o acadêmico espanhol já documentava o surgimento da Sociedade em Rede e estudava a interação entre o uso da internet, a contracultura, movimentos de protesto urbanos e a identidade pessoal.

Paul Mason, editor de notícias econômicas da rádio BBC, entrevistou o professor Castells na London School of Economics (Escola de Economia de Londres) sobre seu último livro, “Aftermath: The Cultures of Economic Crisis” (“Resultado: as Culturas da Crise Econômica”), ainda sem tradução para português.

O que é surgimento de novas culturas econômicas?
Quando menciono essa Cultura Econômica Alternativa, é uma combinação de duas coisas. Várias pessoas têm feito isso já há algum tempo, porque não concordam com a falta de sentido em suas vidas. Agora, há algo mais — é a legião de consumidores que não podem consumir. Como não consomem — por não terem dinheiro, nem crédito, nem nada — tentam dar sentido a suas vidas fazendo alguma coisa diferente. Portanto, é por causa das necessidades e valores — as duas coisas juntas — que isso está se expandindo.

Você escreveu que as economias são culturais. Pode falar mais sobre isso?
Se queremos trabalhar para ganhar dinheiro, para consumir, é porque acreditamos que comprando um carro novo ou uma nova televisão, ou um apartamento melhor, seremos mais felizes. Isso é uma forma de cultura. As pessoas estão revertendo essa noção. Pelo contrário: o que é importante em suas vidas não pode ser comprado, na maioria dos casos. Mas elas não têm mais escolha porque já foram capturadas pelo sistema. O que acontece quando a máquina não funciona mais? As pessoas dizem “bem, eu sou mesmo burro. Estou o tempo todo correndo atrás de coisa nenhuma”.

Qual a importância dessa mudança cultural?
É fundamental, porque desencadeia uma crise de confiança nos dois maiores poderes do mundo: o sistema político e o financeiro. As pessoas não confiam mais no lugar onde depositam seu dinheiro, e não acreditam mais naqueles a quem delegam seu voto. É uma crise dramática de confiança – e se não há confiança, não há sociedade. O que nós não vamos ver é o colapso econômico per se, porque as sociedades não conseguem existir em um vácuo social. Se as instituições econômicas e financeiras não funcionam, as relações de poder produzem transformações favoráveis ao sistema financeiro, de forma que ele não entre em colapso. As pessoas é que entram em colapso em seu lugar.

A ideia é que os bancos vão ficar bem, nós não. Aí está a mudança cultural. E grande: uma completa descrença nas instituições políticas e financeiras. Algumas pessoas já começam a viver de modo diferente, conforme conseguem – ou porque desejam outras formas de vida, ou porque não têm escolha. Estou me referindo ao que observei em um dos meus últimos estudos sobre pessoas que decidiram não esperar pela revolução para começar a viver de outra maneira – o que resulta na expansão do que eu chamo de “práticas não-capitalistas”.

São práticas econômicas, mas que não são motivadas pelo lucro – redes de escambo, moedas sociais, cooperativas, autogestão, redes de agricultura, ajuda mútua, simplesmente pela vontade de estar junto, redes de serviços gratuitos para os outros, na expectativa de que outros também proverão você. Tudo isso existe e está se expandindo ao redor do mundo.

Na Catalunha, 97% das pessoas que você pesquisou estavam engajadas em atividades econômicas não-capitalistas.
Bem, estão entre 30-40 mil os que são engajados quase completamente em modos alternativos de vida. Eu distinguo pessoas que organizam a vida conscientemente através de valores alternativos de pessoas que têm vida normal, mas que têm costumes que podem ser vistos como diferentes, em muitos aspectos. Por exemplo, durante a crise, um terço das famílias de Barcelona emprestaram dinheiro, sem juros, para pessoas que não são de sua família.

O que é a Sociedade em Rede?
É uma sociedade em que as atividades principais nas quais as pessoas estão engajadas são organizadas fundamentalmente em rede, ao invés de em estruturas verticais. O que faz a diferença são as tecnologias de rede. Uma coisa é estar constantemente interagindo com pessoas na velocidade da luz, outra é simplesmente ter uma rede de amigos e pessoas. Existe todo tipo de rede, mas a conexão entre todas elas – sejam os mercados financeiros, a política, a cultura, a mídia, as comunicações etc –, é nova por causa das tecnologias digitais.

Então, nós vivemos numa Sociedade em Rede. Podemos deixar de viver nela?

Podemos regredir a uma sociedade pré-eletricidade? Seria a mesma coisa. Não, não podemos. Apesar de agora muitas pessoas estarem dizendo “por que não começamos de novo?” É um grande movimento, conhecido como “decrescimento”. Algumas pessoas querem tentar novas formas de organização comunitária etc.

No entanto, o interessante é que, para as pessoas se organizarem e debaterem e se mobilizarem pelo decrescimento e o comunitarismo, elas têm que usar a internet. Não vivemos numa cultura de realidade virtual, mas de real virtualidade, porque nossa virtualidade – significando as redes da internet – é parte fundamental da nossa realidade. Todos os estudos mostram que as pessoas que são mais sociáveis na internet são também mais sociáveis pessoalmente.

Existem diversos grupos que hoje protestam sobre o assunto A, amanhã sobre o assunto B, e à noite jogam World of Warcraft (jogo RPG online de aventura). Mas será que eles vão conseguir o que Castro e Guevara conquistaram?
O impacto nas instituições políticas é quase insignificante, porque elas são hoje impermeáveis a mudanças. Mas, se você olhar para o que está acontecendo em termos de consciência… há coisas que não existiam três anos, como o grande debate sobre a desigualdade social.

Em termos práticos, o sistema é muito mais forte do que os movimentos nascentes… você atinge a mente das pessoas por um processo de comunicação, e esse processo, hoje, acontece fundamentalmente pela internet e pelo debate. É um processo longo, que vai das mentes das pessoas às instituições da sociedade. Vamos usar um exemplo histórico: a partir do fim do século XIX, na Europa, existiam basicamente os Conservadores e os Liberais, direita e esquerda. Mas então alguma coisa aconteceu – a industrialização, os movimentos da classe trabalhadora, novas ideologias. Nada disso estava no sistema político. Depois de vinte ou trinta anos, vieram os socialistas e depois a divisão dos socialistas… e os liberais basicamente desapareceram. Isso mudará a política, mas não por meio de ações políticas organizadas da mesma maneira. Por quê? Porque as redes não necessitam de organizações hierárquicas.

Onde isso vai dar?
Tudo isso não vai virar uma grande coalizão eleitoral, não vai virar nenhum novo partido, nenhum novo coisa nenhuma. É simplesmente a sociedade contra o Estado e as instituições financeiras – mas não contra o capitalismo, aliás, contra insitituições financeiras, o que é diferente.

Com esse clima, acontece que nossas sociedades se tornarão cada vez mais ingovernáveis e, em consequência, poderá ocorrer todo tipo de fenômeno – alguns muito perigosos. Veremos muitas expressões de formas alternativas de política, que escaparão das correntes principais de instituições políticas tradicionais. E algumas, é claro, voltando ao passado e tentando construir uma comunidade primitiva e nacionalista para atacar todos os outros movimentos e, finalmente, conseguir ter uma sociedade excluída do mundo, que oprime seu próprio povo.

Mas acontece que, em qualquer processo de mudança social desorganizada e caótica, todos esses fenômenos coexistem. E o modo como atuam uns contra os outros vai depender, em última análise, de as instituições políticas abrirem suficientemente seus canais de participação para a energia de mudança que existe na sociedade. Então talvez elas possam superar a resistência das forças reacionárias que também estão presentes em todas as sociedades.
*Extraído de Outras Palavras

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Economia verde e economia solidária

Boaventura critica a economia verde, e Paul Singer exalta a economia solidária*

Isabel Harari 

Cerca de 200 pessoas se aglomeram em cadeiras de plástico, no chão de terra batida e até em uma árvore próxima. A tenda 14 da Cúpula dos Povos foi se enchendo e o calor tornou-se insuportável. Por volta do meio dia, Boaventura de Sousa Santos, sociólogo e professor da universidade de Coimbra, e Paul Singer, secretário nacional de Economia Solidária, sentaram-se à mesa junto a outros dois integrantes do Ripess (Rede Internacional de Promoção da Economia Social e Solidária) da América Latina e Caribe. “Os militantes e revolucionários estão se encontrando, com seus ideais, angústias e medos”, disse Singer, apontando para a plateia.

A economia solidária como proposta de resistência ao modelo vigente foi o fio condutor desse debate que aconteceu na Cúpula dos Povos. “É preciso transformar o sistema político brasileiro”, declarou Boaventura. Esse modo de gerir a economia, continuou, é baseado na gestão dos empreendimentos pelos próprios trabalhadores, que os administram por meio da auto-gestão, em uma forma de democracia direta. “Trabalha-se com a ação humana”, explica o professor.

Para Boaventura, o capitalismo consiste em uma economia anti-solidária, anti-verde e anti-humanitária. O papel da sociedade civil é pífio,“apêndice do capitalismo”, enquanto a hegemonia dos bancos, do agronegócio e das grandes corporações é evidente. Toma como exemplo as verbas destinadas à pesquisa: 95% são destinadas ao agronegócio e apenas 5% são cedidas aos estudos sobre agricultura familiar. “É um mundo absurdo, onde metade morre por obesidade e a outra por inanição”, declarou.

A chamada “economia verde”, tema debatido à exaustão nos eventos oficiais da Rio+20 e tratado como a solução para os problemas climáticos e econômicos, foi colocada em questão por Boaventura. “É uma perversão total transformar a natureza em mercado. Economia verde é suprir o capitalismo com mais capitalismo”. E ele faz um alerta aos países com base industrial, como o Brasil, que estariam a reprimarizar suas economias, ou seja, exportando mais produtos agrícolas do que industriais. “Esses países estão exportando sua natureza, suas riquezas. Quando os recursos naturais acabarem, essas nações estarão muito mais pobres do que antes”, diz.

A economia capitalista afasta o processo de produção do produto final. “Olho para o meu celular e vejo que há trabalho escravo, há sangue para que isso esteja no meu bolso. Mas nós, no ímpeto do consumo, esquecemos que por trás do aparelho há um duro processo de produção”, exemplifica Boaventura. “A economia solidária vai ser a economia de transição, ela vai nos ajudar a fazer o trânsito entre a produção e o consumo”, afirmou.

“Um novo modo de gerir a economia através da integração das pessoas”, disse Singer, sobre a economia solidária, à Carta Maior. “É o melhor modelo desenvolvido até agora”, continua o economista. Para ele, já está ocorrendo a mundialização da economia solidária por meio de reuniões do Ripess e ações que englobam diversos países. Recentemente, ocorreu no Rio de Janeiro a “Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável - Reunião Mundial sobre Economia Solidária”, que contou com participantes da América Latina, Filipinas, Malásia e Canadá, entre outros.

Sobre a Rio+20, Boaventura alerta sobre a fragilidade do documento oficial preparado – consequência, em sua avaliação, da retirada dos pontos de divergência que dificultariam o consenso entre a cúpula governamental, tornando-o genérico e ineficiente. “Não é de se espantar que não haja nenhum compromisso obrigatório que vá levantar idéias, sobre o Protocolo de Quioto, por exemplo, para um outro nível de comprometimento. Não tenho grandes esperanças em relação à reunião intergovernamental. Há uma grande distância entre as políticas do governo e dos movimentos sociais”, disse o português.

A Cúpula dos Povos, para Singer, é “um momento de troca de idéias, de sonhar um mundo mais igual, mais democrático, mais livre, de tornar tudo isso realidade”. Sobre a diversidade de movimentos, ele declara que essa diferença precisa e deve ser respeitada e cultivada. Para Singer, a diversidade é de suma importância para unir na ação aquilo que há em comum. “Há um fermento na sociedade de grande mobilização social”, acrescenta, por fim, Boaventura.

*Extraído de Carta Maior

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Revista eletrônica

Plurimus Cultura e Desenvolvimento em Revista

Daniel Roedel

O Rio de Janeiro experimenta na atualidade um momento significativo de oportunidades de desenvolvimento. Impulsionado por grandes eventos internacionais que sediará, e pela economia do petróleo e gás, tem se destacado na atração de investimentos em relação aos demais estados e municípios do país e até mesmo de tradicionais pólos internacionais.

Tais iniciativas são bem-vindas, uma vez que aportam elevados recursos que podem fazer com que se promova um efetivo desenvolvimento, e se recupere uma posição de destaque na economia nacional e no imaginário social, inclusive no âmbito internacional.

No entanto, há que se considerar o modo como esses projetos estão sendo negociados e implementados. Os impactos ambientais da atividade extrativa é considerável, bem como a ocupação de áreas para apoiar essa indústria e seus processos derivados.

Já o investimento em turismo e grandes eventos requer que as mudanças na ocupação do espaço urbano respeite as populações e as inclua nas melhorias decorrentes.

Temos o entendimento de que a agenda deve priorizar um efetivo desenvolvimento (econômico, social, ambiental) e não apenas mais um crescimento excludente que serve apenas para favorecer a iniciativa privada que passa a ocupar os espaços urbanos. Afinal, trata-se de investimentos com recursos que são públicos e que se realizam em espaços predominantemente públicos. Logo, o legado tem que incluir o benefício para a sociedade.

Assim, a próxima edição de Plurimus Cultura e Desenvolvimento em Revista (ISSN 2238-1953) terá como tema central o Rio de Janeiro.

Poderão ser enviados artigos e resenhas de livros que articulem o estado ou o município do Rio de Janeiro com o recorte editorial da revista: gestão, educação, história, cultura, sustentabilidade, cidadania e desenvolvimento local.


Além de artigos de pesquisadores e especialistas no tema haverá um espaço específico para estudantes de cursos de pós-graduação lato sensu. 

Conheça a revista e participe da nossa edição III. Acesse Plurimus.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Desenvolvimento

Privatizar ou estatizar? II/II*

Amir Khair

Debate

Esse debate ganhou novo impulso após a divulgação no dia 15 de agosto do primeiro pacote de privatização da infraestrutura contemplando a concessão para o setor privado de investimentos e operações para a construção de 7,5 mil quilômetros de rodovias e 10 mil quilômetros de ferrovias, num investimento de R$ 133 bilhões, bancados na maior parte por recursos públicos (80% pelo BNDES).

Os contrários à privatização se dividiram em dois grupos: os que afirmaram não se tratar de privatização, pois não ocorreria venda de patrimônio público, e os que defenderam que essa passagem para o setor privado em nada poderia ser diferente de uma privatização.

O centro do debate não é se a concessão é privatização, mas se o que foi concedido ao setor privado deveria sê-lo ou não. Os fatos mostraram com clareza os problemas criados pela privatização açodada.

Uma vez privatizada, a empresa estatal foge do controle do Estado e fica livre para praticar a política que mais lhe interessar. Pode, por exemplo, contaminar toda a cadeia produtiva na qual se situa no topo. Foi o caso da Vale do Rio Doce, que, aproveitando o preço internacional elevado do minério de ferro, mais do que dobrou o preço interno, impondo elevação de custos a todas as empresas dessa cadeia, atingindo os consumidores e inquilinos nos aluguéis, influenciados que foram pela forte elevação causada no IGP-DM, usado como índice de correção das locações de imóveis.

A empresa privatizada tem o direito de vender seu controle acionário para uma transnacional, cuja política de produção e comercialização responde aos interesses da matriz, podendo prejudicar o país.

No caso das prestadoras de serviços públicos, a sociedade é sacrificada pelo uso abusivo de tarifas − a principal fonte de ganho dessas empresas −, que ocorre em sequência à privatização. Essas tarifas deveriam ser controladas pelas agências reguladoras, mas na prática não é o que se observa. Além disso, o serviço ofertado é campeão de reclamações nos órgãos de defesa do consumidor.

Novos tempos

Estamos em uma época bem diversa daquela do início das privatizações, em 1990. O mito do mercado desabou com a quebra do banco norte-americano Lehman Brothers em 15 de setembro de 2008, o estopim da maior crise vivida pelo sistema capitalista desde 1929. Se não fosse o Estado, o sistema capitalista ruiria após o colapso generalizado do sistema financeiro, o qual o neoliberalismo acreditava que se autorregularia diante das crises.

Agora mais do que nunca se impõe uma rediscussão do papel do Estado e da iniciativa privada na economia e na sociedade. Ao Estado, competem a defesa e a promoção do desenvolvimento econômico e social. Ao setor privado, o que interessa é maximizar o lucro das empresas. Objetivos diferentes e por vezes antagônicos.

Na crise citada, esses objetivos foram expostos. O que protegeu a economia e o emprego foram as ações desencadeadas pelo Estado, por meio de suas instituições oficiais de crédito, com estímulos à economia feitos pelo BNDES, Banco Central e governo federal. Em lado oposto situou-se o sistema financeiro privado, que, à semelhança do que fez internacionalmente, trancou o crédito e elevou os juros.

As falhas cometidas nas privatizações de empresas estratégicas, feitas especialmente no governo FHC, e a nova conjuntura internacional impõem novas reflexões e ações para fortalecer o Estado.

É necessário discutir o argumento central pró-privatização de que o Estado torna tudo mais caro para a sociedade em relação ao que pode ser feito pela iniciativa privada e que, além disso, carece de recursos necessários para investimentos em infraestrutura.

Se o Estado não está preparado, o caminho não é sua demolição, mas fazer que tenha condição para assumir o papel que a sociedade lhe delegou. As fragilidades do poder público precisam ser enfrentadas. É necessário que seja construído um plano estratégico de desenvolvimento econômico, social e ambiental e, nele, os instrumentos de sua efetivação.

Trata-se de fortalecer e reorientar a ação do Estado, com maior benefício para a sociedade; transformar o custo elevado de suas ações, o uso indevido de cargos públicos para o suporte político e o populismo de tarifas e preços, que acabam inviabilizando a autossustentação das atividades.

Vale analisar os principais argumentos usados pelos privatistas: 1) falta de recursos no Estado; 2) custos mais elevados do Estado; 3) cabide de emprego e uso político de cargos; e 4) uso populista na fixação de preços e tarifas.

1. Falta de recursos – A falta de recursos atinge todas as áreas de atuação do Estado, especialmente a social, na qual o déficit elevado sacrifica a maioria da população. Mas sua reversão é possível, pois: a redução da Selic vai permitir economizar mais de R$ 100 bilhões por ano; com o crescimento acima de 4% ao ano, a arrecadação tende a crescer de 3 a 4 pontos acima do PIB pela redução da inadimplência; se usar corretamente suas estatais, sem os nefastos populismos na fixação de preços, como no caso da Petrobras, os dividendos crescerão.

2. Custos– Podem ser para compras de bens, prestação de serviços e obras. Para compras, os custos dependem da modalidade de aquisição. Se adotado o pregão eletrônico ou presencial, e como em geral as quantidades adquiridas são grandes, eles podem ficar até melhores que na iniciativa privada.

A maior parte dos serviços é padronizada e passível de ser licitada pelo sistema de pregão. Para os demais casos, o que determina é o custo da mão de obra, em geral cerca de 80% do total. Caso sejam adotados salários em nível de mercado e adequada gestão de pessoal, os custos podem se equiparar aos da iniciativa privada. Caso o Estado não fiscalize o que é feito pela iniciativa privada – fato comum –, os serviços podem ficar mais caros do que os feitos diretamente pelo Estado.

Nas obras, o Estado pode ter custos competitivos, pois pode comprar a preços melhores, dado seu porte. Em grandes obras, há que se tomar cuidado, já que o setor privado opera com poucas empresas, nas quais a ocorrência de superfaturamento é bem conhecida.

3. Cabide e uso político– O inchaço e a prática de usar cargos públicos para garantir apoio nas matérias de aprovação legislativa são grandes atrasos na independência que se espera do Estado para escolher bons quadros técnicos. O sucesso na política de desenvolvimento pavimenta a maior independência ao Poder Executivo para realizar seus objetivos. Reestruturações são necessárias para adequar o orgânico de pessoal às reais necessidades da organização. Contratos de gestão podem ser o instrumento adequado para o cumprimento dos objetivos definidos para cada órgão ou empresa.

4. Preços e tarifas – Devem ser fixados de forma a garantir os recursos para atingir os objetivos do plano estratégico acordado com o governo. O desvirtuamento dessa diretriz dá o combustível político aos privatistas, que argumentam que tudo que fica com o Estado fracassa e na mão da iniciativa privada prospera. As comparações não têm fim.

Em sentido inverso às proposições de privatizações, o poder público deveria ainda capitalizar adequadamente suas estatais; fixar os preços que viabilizam os planos estratégicos; adquirir ações em Bolsa de Valores para reforçar sua posição de comando; e criar estatal em cada setor estratégico que não a possua.

Só com estatais fortes operacional e financeiramente é possível garantir de forma eficaz os objetivos estratégicos do país. A desestatização foi em sua maior parte um atraso. É fundamental um choque na economia e na política para acelerar e engrandecer o processo do desenvolvimento econômico e social de que o país necessita.
 
*Extraído de Diplomatique

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Desenvolvimento

Privatizar ou estatizar? I/II*

Amir Khair

Está em pauta a discussão da privatização, que, em nosso país, ganha dimensões particulares pelas contradições que encerra, com movimentos constantes de interpenetração do espaço público pelo privado. É um debate que comporta um grande elenco de argumentos sócio-históricos, cuja dimensão, sem dúvida, não cabe no âmbito deste artigo.

As recentes medidas da presidenta Dilma Rousseff de privatização de empresas estatais reacende a crítica à agenda liberal, demolidora da intervenção do Estado no plano econômico e social, demarcada no país por sua ascensão à modernidade capitalista.

Especialmente em decorrência da crise mundial de 1929 a 1931, ocorreu no Brasil o combate à depressão mediante a elevação do gasto público, tendo como uma de suas consequências uma forte reorganização econômica, com a transformação do sistema produtivo nacional.

Foi um período marcado pela aceleração da industrialização e a substituição das importações, com significativa intervenção do Estado na vida econômica e social, vasta expansão dos serviços governamentais e estruturação de setores estratégicos.

Essa experiência não se afasta daquela de outros países, quando a industrialização e os conflitos gerados pela desigualdade de seus frutos provocaram também a presença do Estado no âmbito das legislações previdenciária e do trabalho.

Dessa forma, a economia foi resgatada da crise por uma ação deliberada do Estado, modelo que fortaleceu e expandiu o setor público e incorporou demandas sociais, concomitantemente às demandas do capital de se manter reciclado [1].

É da era Vargas a criação da Companhia Siderúrgica Nacional (1940), da Vale do Rio Doce (1942) e da Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (1945). Em seu segundo governo (1951-1954), foram fundados o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (1952) e a Petrobrás (1953).

Já existiam havia tempo o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal, atuando ao lado de outras poucas instituições financeiras, a maioria em mãos do capital estrangeiro.

O processo de criação de empresas estatais ocorreu também durante o regime militar (1964-1985), em setores estratégicos e em outros de menor importância, como hotelaria e supermercados.

O processo de privatização no Brasil representou uma mudança radical do papel até então reservado ao Estado na atividade econômica, em contexto histórico de ascenso do pensamento neoliberal, cujas postulações enfatizam o valor do mercado e de suas leis a reger a sociedade e suas condições de desenvolvimento, devendo o Estado ser reduzido ao mínimo necessário (Estado mínimo).

Contraditoriamente no Brasil, a Constituição Federal de 1988 introduziu e ampliou direitos e expandiu as responsabilidades públicas por sua objetivação.

O ressurgimento de valores liberais incitou reformas, e uma de suas expressões está no chamado “Consenso de Washington” [2], reação contra o Estado interventor.

Novas crises econômicas mundiais fizeram emergir com força a crítica ao funcionamento do Estado e à sua capacidade de prover políticas públicas, por seu gigantismo, ineficiência e burocratismo. Esse debate fertilizou o terreno para a introdução de medidas, entre elas as várias formas de privatizações e desregulamentações.

Fernando Collor (1990-1992)foi o primeiro presidente a adotar as privatizações, ao instituir o Programa Nacional de Desestatização (PND) pela Lei n. 8.031, de 12 de abril de 1990. Os principais objetivos foram transferir à iniciativa privada atividades indevidamente exploradas pelo Estado e usar os recursos da privatização para reduzir a dívida pública.

A privatização iniciou-se em 24 de outubro de 1991, com a venda da siderúrgica Usiminas, uma das estatais mais lucrativas, seguida por várias siderúrgicas e petroquímicas.

No governo de Itamar Franco (1992-1995), concluiu-se a privatização de empresas do setor siderúrgico e petroquímico e foi leiloada a Embraer (1994).

O governo FHC (1995-2002) adotou as recomendações do Consenso de Washington, que pregava um amplo programa de privatizações. Foi além, ao condicionar as transferências de recursos da União para os estados à submissão dos governadores às políticas recomendadas pelo FMI. Foram privatizados os principais bancos estaduais, Light, Vale do Rio Doce, Telebrás e Eletropaulo.

Os leilões de privatização de FHC foram objeto de protestos em razão de irregularidades e duas grandes falhas: uso de moedas podres [3] e permissão para que o BNDES financiasse parte do preço de compra, inclusive a investidores estrangeiros, o que levaria a privilegiar grupos privados específicos [4].

A maior parte dos valores usados para as privatizações veio de empréstimos do BNDES e dos fundos de pensão das próprias empresas estatais (como no caso da Vale).

Nos oito anos de mandato de FHC, as privatizações atingiram US$ 78,6 bilhões, dos quais 28% no setor elétrico e 38% em telecomunicações. A dívida pública era de 28% do PIB e passou no final para 60%! E isso apesar dos recursos provenientes das privatizações. Isso ocorreu pelo uso da Selic elevada para não deixar ruir o Plano Real.

No governo Lula, 2,6 mil quilômetros de rodovias foram leiloadas em 9 de outubro de 2007. O grande vencedor do leilão para explorar pedágios por 25 anos foi o grupo espanhol OHL. Nessas concessões, foi adotado o critério da menor tarifa nas licitações. As empresas vitoriosas ofereceram-se para administrar as estradas por um pedágio médio de R$ 0,02 por quilômetro, seis vezes inferior ao cobrado nas rodovias Anhanguera e Imigrantes, privatizadas na década anterior.

Ocorreram também outras privatizações: Banco do Estado do Ceará, Banco do Estado do Maranhão, hidrelétricas Santo Antônio e Jirau.
 
Referências

[1] - No plano da teoria econômica, quem inspirou tais medidas foi John Maynard Keynes, que publicou, em 1936, Teoria geral do emprego, do juro e do dinheiro, obra na qual demoliu os pressupostos liberais e demonstrou que emprego e produção dependem, em cada país, da demanda efetiva (a totalidade das compras de meios de consumo e de produção). Quando a demanda efetiva não é suficiente, parte dos trabalhadores fica desempregada involuntariamente.
[2] - Conforme José Eduardo Faria, citado por Dinorá A. M. Grotti em O serviço público e a constituição brasileira de 1988, São Paulo, Malheiros Editores,
2003, p.67, “é a opinião partilhada pelo Departamento do Tesouro, pelo Federal Reserve e pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos, pelos ministérios
das finanças dos demais países do Grupo dos Sete e pelos presidentes dos vinte maiores bancos internacionais [...] constituído por dez reformas básicas:
1) disciplina fiscal para eliminação do déficit público;
2) mudança das prioridades em relação às despesas públicas, com a superação de subsídios;
3) reforma tributária, mediante a universalização dos contribuintes e o aumento de impostos.
4) adoção de taxas de juros positivas;
5) determinação da taxa de câmbio pelo mercado;
6) liberalização do comércio exterior;
7) extinção de restrições para os investimentos diretos;
8) privatização das empresas públicas;
9) desregulação das atividades produtivas; e
10) ampliação da segurança patrimonial, por meio do fortalecimento do direito à propriedade”.

[3] - Títulos da dívida pública emitidos para resolver crises financeiras e cujo valor de mercado era quase nulo. Foram usados para as compras do patrimônio público por seus valores de face. Isso representou grave lesão ao erário, mas ninguém foi julgado nem punido por isso.
 
[4] - Conversas gravadas na sede do BNDES revelaram esquema de favorecimento de empresas no leilão de privatização da Telebrás, conduzido pelo ministro das Comunicações, Luiz Carlos Mendonça de Barros, com o presidente do BNDES, André Lara Resende, e com a anuência do presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, que também aparece nas gravações.
 
*Extraído de Diplomatique
 
continua

quinta-feira, 27 de setembro de 2012

Mídia e cidadania

 Mídia, obstáculo à democracia - III/III*
Marilena Chauí

Como observa Christopher Lash, em A Cultura do Narcisismo, os mass media tornaram irrelevantes as categorias da verdade e da falsidade substituindo-as pelas noções de credibilidade ou plausibilidade e confiabilidade – para que algo seja aceito como real basta que apareça como crível ou plausível, ou como oferecido por alguém confiável Os fatos cedem lugar a declarações de “personalidades autorizadas”, que não transmitem informações, mas preferências e estas se convertem imediatamente em propaganda. Como escreve Lash, “sabendo que um público cultivado é ávido por fatos e cultiva a ilusão de estar bem informado, o propagandista moderno evita slogans grandiloquentes e se atém a ‘fatos’, dando a ilusão de que a propaganda é informação”.

Qual a base de apoio da credibilidade e da confiabilidade? A resposta encontra-se num outro ponto comum aos programas de auditório, às entrevistas, aos debates, às indagações telefônicas de rádios, revistas e jornais, aos comerciais de propaganda. Trata-se do apelo à intimidade, à personalidade, à vida privada como suporte e garantia da ordem pública. Em outras palavras, os códigos da vida pública passam a ser determinados e definidos pelos códigos da vida privada, abolindo-se a diferença entre espaço público e espaço privado. Assim, as relações interpessoais, as relações intersubjetivas e as relações grupais aparecem com a função de ocultar ou de dissimular as relações sociais enquanto sociais e as relações políticas enquanto políticas, uma vez que a marca das relações sociais e políticas é serem determinadas pelas instituições sociais e políticas, ou seja, são relações mediatas, diferentemente das relações pessoais, que são imediatas, isto é, definidas pelo relacionamento direto entre pessoas e por isso mesmo nelas os sentimentos, as emoções, as preferências e os gostos têm um papel decisivo. As relações sociais e políticas, que são mediações referentes a interesses e a direitos regulados pelas instituições, pela divisão social das classes e pela separação entre o social e o poder político, perdem sua especificidade e passam a operar sob a aparência da vida privada, portanto, referidas a preferências, sentimentos, emoções, gostos, agrado e aversão.

Não é casual, mas uma consequência necessária dessa privatização do social e do político, a destruição de uma categoria essencial das democracias, qual seja a da opinião pública. Esta, em seus inícios (desde a Revolução Francesa de 1789), era definida como a expressão, no espaço público, de uma reflexão individual ou coletiva sobre uma questão controvertida e concernente ao interesse ou ao direito de uma classe social, de um grupo ou mesmo da maioria. A opinião pública era um juízo emitido em público sobre uma questão relativa à vida política, era uma reflexão feita em público e por isso definia-se como uso público da razão e como direito à liberdade de pensamento e de expressão.

É sintomático que, hoje, se fale em “sondagem de opinião”. Com efeito, a palavra sondagem indica que não se procura a expressão pública racional de interesses ou direitos e sim que se vai buscar um fundo silencioso, um fundo não formulado e não refletido, isto é, que se procura fazer vir à tona o não-pensado, que existe sob a forma de sentimentos e emoções, de preferências, gostos, aversões e predileções, como se os fatos e os acontecimentos da vida social e política pudessem vir a se exprimir pelos sentimentos pessoais. Em lugar de opinião pública, tem-se a manifestação pública de sentimentos.

Nada mais constrangedor e, ao mesmo tempo, nada mais esclarecedor do que os instantes em que o noticiário coloca nas ondas sonoras ou na tela os participantes de um acontecimento falando de seus sentimentos, enquanto locutores explicam e interpretam o que se passa, como se os participantes fossem incapazes de pensar e de emitir juízo sobre aquilo de que foram testemunhas diretas e partes envolvidas. Constrangedor, porque o rádio e a televisão declaram tacitamente a incompetência dos participantes e envolvidos para compreender e explicar fatos e acontecimentos de que são protagonistas. Esclarecedor, porque esse procedimento permite, no instante mesmo em que se dão, criar a versão do fato e do acontecimento como se fossem o próprio fato e o próprio acontecimento. Assim, uma partilha é claramente estabelecida: os participantes “sentem”, portanto, não sabem nem compreendem (não pensam); em contrapartida, o locutor pensa, portanto, sabe e, graças ao seu saber, explica o acontecimento.

É possível perceber três deslocamentos sofridos pela ideia e prática da opinião pública: o primeiro, como salientamos, é a substituição da ideia de uso público da razão para exprimir interesses e direitos de um indivíduo, um grupo ou uma classe social pela ideia de expressão em público de sentimentos, emoções, gostos e preferências individuais; o segundo, como também observamos, é a substituição do direito de cada um e de todos de opinar em público pelo poder de alguns para exercer esse direito, surgindo, assim, a curiosa expressão “formador de opinião”, aplicada a intelectuais, artistas e jornalistas; o terceiro, que ainda não havíamos mencionado, decorre de uma mudança na relação entre s vários meios de comunicação sob os efeitos das tecnologias eletrônica e digital e da formação de oligopólios midiáticos globalizados (alguns autores afirmam que o século XXI começou com a existência de 10 ou 12 conglomerados de mass media de alcance global). Esse terceiro deslocamento se refere à forma de ocupação do espaço da opinião pública pelos profissionais dos meios de comunicação. Esses deslocamentos explicam algo curioso, ocorrido durante as sondagens de intenção de voto nas eleições presidenciais de 2006: diante dos resultados, uma jornalista do jornal O Globo escreveu que o povo estava contra a opinião pública!

O caso mais interessante é, sem dúvida, o do jornalismo impresso. Em tempos passados, cabia aos jornais a tarefa noticiosa e um jornal era fundamentalmente um órgão de notícias. Sem dúvida, um jornal possuía opiniões e as exprimia: isso era feito, de um lado, pelos editorais e por artigos de não-jornalistas, e, de outro, pelo modo de apresentação da notícia (escolha das manchetes e do “olho”, determinação da página em que deveria aparecer e na vizinhança de quais outras, do tamanho do texto, da presença ou ausência de fotos, etc.). Ora, com os meios eletrônicos e digitais e a televisão, os fatos tendem a ser noticiados enquanto estão ocorrendo, de maneira que a função noticiosa do jornal é prejudicada, pois a notícia impressa é posterior à sua transmissão pelos meios eletrônicos e pela televisão. Ou na linguagem mais costumeira dos meios de comunicação: no mercado de notícias, o jornalismo impresso vem perdendo competitividade (alguns chamam a isso de progresso; outros, de racionalidade inexorável do mercado!).

O resultado dessa situação foi duplo: de um lado, a notícia é apresentada de forma mínima, rápida e, frequentemente, inexata – o modelo conhecido como News Letter – e, de outro, deu-se a passagem gradual do jornal como órgão de notícias a órgão de opinião, ou seja, os jornalistas comentam e interpretam as notícias, opinando sobre elas. Gradualmente desaparece uma figura essencial do jornalismo: o jornalismo investigativo, que cede lugar ao jornalismo assertivo ou opinativo. Os jornalista passam, assim, o ocupar o lugar que, tradicionalmente, cabia a grupos e classes sociais e a partidos políticos e, além disso, sua opinião não fica restrita ao meio impresso, mas passa a servir como material para os noticiários de rádio e televisão, ou seja, nesses noticiários, a notícia é interpretada e avaliada graças à referência às colunas dos jornais.

Os deslocamentos mencionados e, particularmente, este último, têm consequências graves sob dois aspectos principais:

1) uma vez que o jornalista concentra poderes e forma a opinião pública, pode sentir-se tentado a ir além disso e criar a própria realidade, isto é, sua opinião passa a ter o valor de um fato e a ser tomada como um acontecimento real;

2) os efeitos da concentração do poder econômico midiático. Os meios de comunicação tradicionais (jornal, rádio, cinema, televisão) sempre foram propriedade privada de indivíduos e grupos, não podendo deixar de exprimir seus interesses particulares ou privados, ainda que isso sempre tenha imposto problemas e limitações à liberdade de expressão, que fundamenta a ideia de opinião pública. Hoje, porém, os conglomerados de alcance global controlam não só os meios tradicionais, mas também os novos meios eletrônicos e digitais, e avaliam em termos de custo-benefício as vantagens e desvantagens do jornalismo escrito ou da imprensa, podendo liquidá-la, se não acompanhar os ares do tempo.

Esses dois aspectos incidem diretamente sobre a transformação da verdade e da falsidade em questão de credibilidade e plausibilidade. Rápido, barato, inexato, partidarista, mescla de informações aleatoriamente obtidas e pouco confiáveis, não investigativo, opinativo ou assertivo, detentor da credibilidade e da plausibilidade, o jornalismo se tornou protagonista da destruição da opinião pública.

De fato, a desinformação é o principal resultado da maioria dos noticiários nos jornais, no rádio e na televisão, pois, de modo geral, as notícias são apresentadas de maneira a impedir que se possa localizá-la no espaço e no tempo.

Ausência de referência espacial ou atopia: as diferenças próprias do espaço percebido (perto, longe, alto, baixo, grande, pequeno) são apagadas; o aparelho de rádio e a tela da televisão tornam-se o único espaço real. As distâncias e proximidades, as diferenças geográficas e territoriais são ignoradas, de tal modo que algo acontecido na China, na Índia, nos Estados Unidos ou em Campina Grande apareça igualmente próximo e igualmente distante.

Ausência de referência temporal ou acronia: os acontecimentos são relatados como se não tivessem causas passadas nem efeitos futuros; surgem como pontos puramente atuais ou presentes, sem continuidade no tempo, sem origem e sem consequências; existem enquanto forem objetos de transmissão e deixam de existir se não forem transmitidos. Têm a existência de um espetáculo e só permanecem na consciência dos ouvintes e espectadores enquanto permanecer o espetáculo de sua transmissão.
Como operam efetivamente os noticiários?

Em primeiro lugar, estabelecem diferenças no conteúdo e na forma das notícias de acordo com o horário da transmissão e o público, rumando para o sensacionalismo e o popularesco nos noticiários diurnos e do início da noite e buscando sofisticação e aumento de fatos nos noticiários de fim de noite. Em segundo, por seleção das notícias, omitindo aquelas que possam desagradar o patrocinador ou os poderes estabelecidos. Em terceiro, pela construção deliberada e sistemática de uma ordem apaziguadora: em sequência, apresentam, no início, notícias locais, com ênfase nas ocorrências policiais, sinalizando o sentimento de perigo; a seguir, entram as notícias regionais, com ênfase em crises e conflitos políticos e sociais, sinalizando novamente o perigo; passam às notícias internacionais, com ênfase em guerras e cataclismos (maremoto, terremoto, enchentes, furacões), ainda uma vez sinalizando perigo; mas concluem com as notícias nacionais, enfatizando as ideias de ordem e segurança, encarregadas de desfazer o medo produzido pelas demais notícias. E, nos finais de semana, terminam com notícias de eventos artísticos ou sobre animais (nascimento de um ursinho, fuga e retorno de um animal em cativeiro, proteção a espécies ameaçadas de extinção), de maneira a produzir o sentimento de bem-estar no espectador pacificado, sabedor de que, apesar dos pesares, o mundo vai bem, obrigado.

Paradoxalmente, rádio e televisão podem oferecer-nos o mundo inteiro num instante, mas o fazem de tal maneira que o mundo real desaparece, restando apenas retalhos fragmentados de uma realidade desprovida de raiz no espaço e no tempo. Como desconhecemos as determinações econômico-territoriais (geográficas, geopolíticas, etc.) e como ignoramos os antecedentes temporais e as consequências dos fatos noticiados, não podemos compreender seu verdadeiro significado. Essa situação se agrava com a TV a cabo, com emissoras dedicadas exclusivamente a notícias, durante 24 horas, colocando num mesmo espaço e num mesmo tempo (ou seja, na tela) informações de procedência, conteúdo e significado completamente diferentes, mas que se tornam homogêneas pelo modo de sua transmissão. O paradoxo está em que há uma verdadeira saturação de informação, mas, ao fim, nada sabemos, depois de termos tido a ilusão de que fomos informados sobre tudo.
 
Se não dispomos de recursos que nos permitam avaliar a realidade e a veracidade das imagens transmitidas, somos persuadidos de que efetivamente vemos o mundo quando vemos a TV ou quando navegamos pela internet. Entretanto, como o que vemos são as imagens escolhidas, selecionadas, editadas, comentadas e interpretadas pelo transmissor das notícias, então é preciso reconhecer que a TV é o mundo ou que a internet é o mundo.

A multimídia potencializa o fenômeno da indistinção entre as mensagens e entre os conteúdos. Como todas as mensagens estão integradas num mesmo padrão cognitivo e sensorial, uma vez que educação, notícias e espetáculos são fornecidos pelo mesmo meio, os conteúdos se misturam e se tornam indiscerníveis. No sistema de comunicação multimídia a própria realidade fica totalmente imersa em uma composição de imagens virtuais num mundo irreal, no qual as aparências não apenas se encontram na tela comunicadora da experiência, mas se transformam em experiência. Todas as mensagens de todos os tipos são incluídas no meio por que fica tão abrangente, tão diversificado, tão maleável, que absorve no mesmo texto ou no mesmo espaço/tempo toda a experiência humana, passada, presente e futura, como num ponto único do universo.
 
Se, portanto, levarmos em consideração o monopólio da informação pelas empresas de comunicação de massa, podemos considerar, do ponto de vista da ação política, as redes sociais como ação democratizadora tanto por quebrar esse monopólio, assegurando a produção e a circulação livres da informação, como também por promover acontecimentos políticos de afirmação do direito democrático à participação. No entanto, os usuários das redes sociais não possuem autonomia em sua ação e isto sob dois aspectos: em primeiro lugar, não possuem o domínio tecnológico da ferramenta que empregam e, em segundo, não detêm qualquer poder sobre a ferramenta empregada, pois este poder é uma estrutura altamente concentrada, a Internet Protocol, com dez servidores nos Estados Unidos e dois no Japão, nos quais estão alojados todos os endereços eletrônicos mundiais, de maneira que, se tais servidores decidirem se desligar, desaparece toda a internet; além disso, a gerência da internet é feita por uma empresa norte-americana em articulação com o Departamento de Comércio dos Estados Unidos, isto é, gere o cadastro da internet mundial. Assim, sob o aspecto maravilhosamente criativo e anárquico das redes sociais em ação política ocultam-se o controle e a vigilância sobre seus usuários em escala planetária, isto é, sobre toda a massa de informação do planeta.
 
Na perspectiva da democracia, a questão que se coloca, portanto, é saber quem detêm o controle dessa massa cósmica de informações. Ou seja, o problema é saber quem tem a gestão de toda a massa de informações que controla a sociedade, quem utiliza essas informações, como e para que as utiliza, sobretudo quando se leva em consideração um fato técnico, que define a operação da informática, qual seja, a concentração e centralização da informação, pois tecnicamente, os sistemas informáticos operam em rede, isto é, com a centralização dos dados e a produção de novos dados pela combinação dos já coletados.

*Extraído de Outras Palavras

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Mídia e cidadania

 Mídia, obstáculo à democracia - II/III*
Marilena Chauí

II. Os meios de comunicação como exercício de poder
Do ponto de vista econômico, os meios de comunicação fazem parte da indústria cultural. Indústria porque são empresas privadas operando no mercado e que, hoje, sob a ação da chamada globalização, passa por profundas mudanças estruturais, “num processo nunca visto de fusões e aquisições, companhias globais ganharam posições de domínio na mídia.”, como diz o jornalista Caio Túlio Costa. Além da forte concentração (os oligopólios beiram o monopólio), também é significativa a presença, no setor das comunicações, de empresas que não tinham vínculos com ele nem tradição nessa área. O porte dos investimentos e a perspectiva de lucros jamais vistos levaram grupos proprietários de bancos, indústria metalúrgica, indústria elétrica e eletrônica, fabricantes de armamentos e aviões de combate, indústria de telecomunicações a adquirir, mundo afora, jornais, revistas, serviços de telefonia, rádios e televisões, portais de internet, satélites, etc..

No caso do Brasil, o poderio econômico dos meios é inseparável da forma oligárquica do poder do Estado, produzindo um dos fenômenos mais contrários à democracia, qual seja, o que Alberto Dines chamou de “coronelismo eletrônico”, isto é, a forma privatizada das concessões públicas de canais de rádio e televisão, concedidos a parlamentares e lobbies privados, de tal maneira que aqueles que deveriam fiscalizar as concessões públicas se tornam concessionários privados, apropriando-se de um bem público para manter privilégios, monopolizando a comunicação e a informação. Esse privilégio é um poder político que se ergue contra dois direitos democráticos essenciais: a isonomia (a igualdade perante a lei) e a isegoria (o direito à palavra ou o igual direito de todos de expressar-se em público e ter suas opiniões publicamente discutidas e avaliadas). Numa palavra, a cidadania democrática exige que os cidadãos estejam informados para que possam opinar e intervir politicamente e isso lhes é roubado pelo poder econômico dos meios de comunicação.


A isonomia e a isegoria são também ameaçadas e destruídas pelo poder ideológico dos meios de comunicação. De fato, do ponto de vista ideológico, a mídia exerce o poder sob a forma do denominamos a ideologia da competência, cuja peculiaridade está em seu modo de aparecer sob a forma anônima e impessoal do discurso do conhecimento, e cuja eficácia social, política e cultural está fundada na crença na racionalidade técnico-científica.


A ideologia da competência pode ser resumida da seguinte maneira: não é qualquer um que pode em qualquer lugar e em qualquer ocasião dizer qualquer coisa a qualquer outro. O discurso competente determina de antemão quem tem o direito de falar e quem deve ouvir, assim como pré-determina os lugares e as circunstâncias em que é permitido falar e ouvir, e define previamente a forma e o conteúdo do que deve ser dito e precisa ser ouvido. Essas distinções têm como fundamento uma distinção principal, aquela que divide socialmente os detentores de um saber ou de um conhecimento (científico, técnico, religioso, político, artístico), que podem falar e têm o direito de mandar e comandar, e os desprovidos de saber, que devem ouvir e obedecer. Numa palavra, a ideologia da competência institui a divisão social entre os competentes, que sabem e por isso mandam, e os incompetentes, que não sabem e por isso obedecem.


Enquanto discurso do conhecimento, essa ideologia opera com a figura do especialista. Os meios de comunicação não só se alimentam dessa figura, mas não cessam de institui-la como sujeito da comunicação. O especialista competente é aquele que, no rádio, na TV, na revista, no jornal ou no multimídia, divulga saberes, falando das últimas descobertas da ciência ou nos ensinando a agir, pensar, sentir e viver. O especialista competente nos ensina a bem fazer sexo, jardinagem, culinária, educação das crianças, decoração da casa, boas maneiras, uso de roupas apropriadas em horas e locais apropriados, como amar Jesus e ganhar o céu, meditação espiritual, como ter um corpo juvenil e saudável, como ganhar dinheiro e subir na vida. O principal especialista, porém, não se confunde com nenhum dos anteriores, mas é uma espécie de síntese, construída a partir das figuras precedentes: é aquele que explica e interpreta as notícias e os acontecimentos econômicos, sociais, políticos, culturais, religiosos e esportivos, aquele que devassa, eleva e rebaixa entrevistados, zomba, premia e pune calouros — em suma, o chamado “formador de opinião” e o “comunicador”.


Ideologicamente, o poder da comunicação de massa não é um simples inculcação de valores e idéias, pois, dizendo-nos o que devemos pensar, sentir, falar e fazer, o especialista, o formador de opinião e o comunicados nos dizem que nada sabemos e por isso seu poder se realiza como manipulação e intimidação social e cultural.


As ondas sonoras do rádio e as transmissões televisivas tornam-se cada vez mais consultórios sentimental, sexual, gastronômico, geriátrico, ginecológico, culinário, de cuidados com o corpo (ginástica, cosméticos, vestuário, medicamentos), de jardinagem, carpintaria, bastidores da criação artística, literária e da vida doméstica. Há programas de entrevista no rádio e na televisão que ou simulam uma cena doméstica – um almoço, um jantar – ou se realizam nas casas dos entrevistados durante o café da manhã, o almoço ou o jantar, nos quais a casa é exibida, os hábitos cotidianos são descritos e comentados, álbuns de família ou a própria são mostrados ao vivo e em cores. Os entrevistados e debatedores, os competidores dos torneios de auditório, os que aparecem nos noticiários, todos são convidados e mesmo instados com vigor a que falem de suas preferências, indo desde sabores de sorvete até partidos políticos, desde livros e filmes até hábitos sociais. Não é casual que os noticiários, no rádio e na televisão, ao promoverem entrevistas em que a notícia é intercalada com a fala dos direta ou indiretamente envolvidos no fato, tenham sempre repórteres indagando a alguém: “o que você sentiu/sente com isso?” ou “o que você achou/acha disso?” ou “você gosta? não gosta disso?”. Não se pergunta aos entrevistados o que pensam ou o que julgam dos acontecimentos, mas o que sentem, o que acham, se lhes agrada ou desagrada.
 

Podemos focalizar o exercício do poder pelos meios de comunicação de massa sob dois aspectos principais: o econômico e o ideológico.

Um dos aspectos mais terríveis desse duplo poder dos meios de comunicação se manifesta nos procedimentos midiáticos de produção da culpa e condenação sumária dos indivíduos, por meio de um instrumento psicológico profundo: a suspeição, que pressupõe a presunção de culpa. Ao se referir ao período do Terror, durante a Revolução Francesa, Hegel considerou que uma de suas marcas essenciais é afirmar que, por princípio, todos são suspeitos e que os suspeitos são culpados antes de qualquer prova. Ao praticar o terror, a mídia fere dois direitos constitucionais democráticos, instituídos pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 (Revolução Francesa) e pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, quais sejam: a presunção de inocência (ninguém pode ser considerado culpado antes da prova da culpa) e a retratação pública dos atingidos por danos físicos, psíquicos e morais, isto é, atingidos pela infâmia, pela injúria e pela calúnia. É para assegurar esses dois direitos que as sociedades democráticas exigem leis para regulação dos meios de comunicação, pois essa regulação é condição da liberdade e da igualdade que definem a sociedade democrática.

III.
Faz parte da vida da grande maioria da população brasileira ser espectadora de um tipo de programa de televisão no qual a intimidade das pessoas é o objeto central do espetáculo: programas de auditório, de entrevistas e de debates com adultos, jovens e crianças contando suas preferências pessoais desde o sexo até o brinquedo, da culinária ao vestuário, da leitura à religiosidade, do ato de escrever ou encenar uma peça teatral, de compor uma música ou um balé até os hábitos de lazer e cuidados corporais.

Também tornou-se um hábito nacional jornais e revistas especializarem-se cada vez mais em telefonemas a “personalidades” indagando-lhes sobre o que estão lendo no momento, que filme foram ver na última semana, que roupa usam para dormir, qual a lembrança infantil mais querida que guardam na memória, que música preferiam aos 15 anos de idade, o que sentiram diante de uma catástrofe nuclear ou ecológica, ou diante de um genocídio ou de um resultado eleitoral, qual o sabor do sorvete preferido, qual o restaurante predileto, qual o perfume desejado. Os assuntos se equivalem, todos são questão de gosto ou preferência, todos se reduzem à igual banalidade do “gosto” ou “não gosto”, do “achei ótimo” ou “achei horrível”.
Todos esses fatos nos conduzem a uma conclusão: a mídia está imersa na cultura do narcisismo.

*Extraído de Outras Palavras


quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Mídia e cidadania

Mídia, obstáculo à democracia - I/III*
Marilena Chauí

No evento de lançamento da Campanha Nacional pela Liberdade de Expressão, realizado no dia 27/8, no Sindicato dos Jornalistas de São Paulo, a professora Marilena Chauí falou sobre democracia, e a sociedade frente ao poder e a manipulação da mídia.
 
I. Democracia e autoritarismo social
 
Estamos acostumados a aceitar a definição liberal da democracia como regime da lei e da ordem para a garantia das liberdades individuais. Visto que o pensamento e a prática liberais identificam a liberdade com a ausência de obstáculos à competição, essa definição da democracia significa, em primeiro lugar, que a liberdade se reduz à competição econômica da chamada “livre iniciativa” e à competição política entre partidos que disputam eleições; em segundo, que embora a democracia apareça justificada como “valor” ou como “bem”, é encarada, de fato, pelo critério da eficácia, medida no plano do poder executivo pela atividade de uma elite de técnicos competentes aos quais cabe a direção do Estado. A democracia é, assim, reduzida a um regime político eficaz, baseado na idéia de cidadania organizada em partidos políticos, e se manifesta no processo eleitoral de escolha dos representantes, na rotatividade dos governantes e nas soluções técnicas para os problemas econômicos e sociais.

Ora, há, na prática democrática e nas idéias democráticas, uma profundidade e uma verdade muito maiores e superiores ao que liberalismo percebe e deixa perceber.
Podemos, em traços breves e gerais, caracterizar a democracia ultrapassando a simples idéia de um regime político identificado à forma do governo, tomando-a como forma geral de uma sociedade e, assim, considerá-la:

1. forma sócio-política definida pelo princípio da isonomia ( igualdade dos cidadãos perante a lei) e da isegoria (direito de todos para expor em público suas opiniões, vê-las discutidas, aceitas ou recusadas em público), tendo como base a afirmação de que todos são iguais porque livres, isto é, ninguém está sob o poder de um outro porque todos obedecem às mesmas leis das quais todos são autores (autores diretamente, numa democracia participativa; indiretamente, numa democracia representativa). Donde o maior problema da democracia numa sociedade de classes ser o da manutenção de seus princípios – igualdade e liberdade – sob os efeitos da desigualdade real;

2. forma política na qual, ao contrário de todas as outras, o conflito é considerado legítimo e necessário, buscando mediações institucionais para que possa exprimir-se. A democracia não é o regime do consenso, mas do trabalho dos e sobre os conflitos. Donde uma outra dificuldade democrática nas sociedades de classes: como operar com os conflitos quando estes possuem a forma da contradição e não a da mera oposição?

3. forma sócio-política que busca enfrentar as dificuldades acima apontadas conciliando o princípio da igualdade e da liberdade e a existência real das desigualdades, bem como o princípio da legitimidade do conflito e a existência de contradições materiais introduzindo, para isso, a idéia dos direitos (econômicos, sociais, políticos e culturais). Graças aos direitos, os desiguais conquistam a igualdade, entrando no espaço político para reivindicar a participação nos direitos existentes e sobretudo para criar novos direitos. Estes são novos não simplesmente porque não existiam anteriormente, mas porque são diferentes daqueles que existem, uma vez que fazem surgir, como cidadãos, novos sujeitos políticos que os afirmaram e os fizeram ser reconhecidos por toda a sociedade.

4. graças à idéia e à prática da criação de direitos, a democracia não define a liberdade apenas pela ausência de obstáculos externos à ação, mas a define pela autonomia, isto é, pela capacidade dos sujeitos sociais e políticos darem a si mesmos suas próprias normas e regras de ação. Passa-se, portanto, de uma definição negativa da liberdade – o não obstáculo ou o não-constrangimento externo – a uma definição positiva – dar a si mesmo suas regras e normas de ação. A liberdade possibilita aos cidadãos instituir contra-poderes sociais por meio dos quais interferem diretamente no poder por meio de reivindicações e controle das ações estatais.

5. pela criação dos direitos, a democracia surge como o único regime político realmente aberto às mudanças temporais, uma vez que faz surgir o novo como parte de sua existência e, conseqüentemente, a temporalidade é constitutiva de seu modo de ser, de maneira que a democracia é a sociedade verdadeiramente histórica, isto é, aberta ao tempo, ao possível, às transformações e ao novo. Com efeito, pela criação de novos direitos e pela existência dos contra-poderes sociais, a sociedade democrática não está fixada numa forma para sempre determinada, pois não cessa de trabalhar suas divisões e diferenças internas, de orientar-se pela possibilidade objetiva de alterar-se pela própria práxis;

6. única forma sócio-política na qual o caráter popular do poder e das lutas tende a evidenciar-se nas sociedades de classes, na medida em que os direitos só ampliam seu alcance ou só surgem como novos pela ação das classes populares contra a cristalização jurídico-política que favorece a classe dominante. Em outras palavras, a marca da democracia moderna, permitindo sua passagem de democracia liberal á democracia social, encontra-se no fato de que somente as classes populares e os excluídos (as “minorias”) reivindicam direitos e criam novos direitos;

7. forma política na qual a distinção entre o poder e o governante é garantida não só pela presença de leis e pela divisão de várias esferas de autoridade, mas também pela existência das eleições, pois estas ( contrariamente do que afirma a ciência política) não significam mera “alternância no poder”, mas assinalam que o poder está sempre vazio, que seu detentor é a sociedade e que o governante apenas o ocupa por haver recebido um mandato temporário para isto. Em outras palavras, os sujeitos políticos não são simples votantes, mas eleitores. Eleger significa não só exercer o poder, mas manifestar a origem do poder, repondo o princípio afirmado pelos romanos quando inventaram a política: eleger é “dar a alguém aquilo que se possui, porque ninguém pode dar o que não tem”, isto é, eleger é afirmar-se soberano para escolher ocupantes temporários do governo.

Dizemos, então, que uma sociedade — e não um simples regime de governo — é democrática quando, além de eleições, partidos políticos, divisão dos três poderes da república, respeito à vontade da maioria e da minoria, institui algo mais profundo, que é condição do próprio regime político, ou seja, quando institui direitos e que essa instituição é uma criação social, de tal maneira que a atividade democrática social realiza-se como uma contra-poder social que determina, dirige, controla e modifica a ação estatal e o poder dos governantes.

Se esses são os principais traços da sociedade democrática, podemos avaliar as enormes dificuldades para instituir a democracia no Brasil. De fato, a sociedade brasileira é estruturalmente violenta, hierárquica, vertical, autoritária e oligárquica e o Estado é patrimonialista e cartorial, organizado segundo a lógica clientelista e burocrática. O clientelismo bloqueia a prática democrática da representação — o representante não é visto como portador de um mandato dos representados, mas como provedor de favores aos eleitores. A burocracia bloqueia a democratização do Estado porque não é uma organização do trabalho e sim uma forma de poder fundada em três princípios opostos aos democráticos: a hierarquia, oposta à igualdade; o segredo, oposto ao direito à informação; e a rotina de procedimentos, oposta à abertura temporal da ação política.

Além disso, social e economicamente nossa sociedade está polarizada entre a carência absoluta das camadas populares e o privilégio absoluto das camadas dominantes e dirigentes, bloqueando a instituição e a consolidação da democracia. Um privilégio é, por definição, algo particular que não pode generalizar-se nem universalizar-se sem deixar de ser privilégio. Uma carência é uma falta também particular ou específica que se exprime numa demanda também particular ou específica, não conseguindo generalizar-se nem universalizar-se. Um direito, ao contrário de carências e privilégios, não é particular e específico, mas geral e universal, seja porque é o mesmo e válido para todos os indivíduos, grupos e classes sociais, seja porque embora diferenciado é reconhecido por todos (como é caso dos chamados direitos das minorias). Assim, a polarização econômico-social entre a carência e o privilégio ergue-se como obstáculo à instituição de direitos, definidora da democracia.

A esses obstáculos, podemos acrescentar ainda aquele decorrente do neoliberalismo, qual seja o encolhimento do espaço público e o alargamento do espaço privado. Economicamente, trata-se da eliminação de direitos econômicos, sociais e políticos garantidos pelo poder público, em proveito dos interesses privados da classe dominante, isto é, em proveito do capital; a economia e a política neoliberais são a decisão de destinar os fundos públicos aos investimentos do capital e de cortar os investimentos públicos destinados aos direitos sociais, transformando-os em serviços definidos pela lógica do mercado, isto é, a privatização dos direitos transformados em serviços, privatização que aumenta a cisão social entre a carência e o privilégio, aumentando todas formas de exclusão. Politicamente o encolhimento do público e o alargamento do privado colocam em evidência o bloqueio a um direito democrático fundamental sem o qual a cidadania, entendida como participação social, política e cultural é impossível, qual seja, o direito à informação.

*Extraído de Outras Palavras

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Altamiro Carrilho

A flauta mágica
Celso Evaristo Silva*

Altamiro Carrilho (1924-2012) parou de soprar. Nós suspiramos. Ele chorou na flauta um dos gêneros musicais com maior toque de brasilidade na sua essência e, ao mesmo tempo, portador de uma universalidade reconhecida. O choro e sua variante mais conhecida, chorinho, nasceram no final do séc. XIX, no Rio de Janeiro, atingindo o auge nas primeiras décadas do séc. XX. Instrumentistas chamados chorões formavam grupos musicais denominados regionais, com seus violões de seis e sete cordas, clarinete, flauta, cavaquinho, trombone (com o tempo, o pandeiro passou a ser admitido, desde que não fizesse muito barulho). Tocavam-se polcas, mazurcas, valsas, modinhas, maxixes e, claro, o choro: uma forma de música bem melodiosa, com um corte rítmico e modulações tonais próprias; às vezes alegre e brejeira, por vezes, melancólica e sentimental, mas sempre de uma riqueza harmônica digna de uma fugata. Sincrético na sua origem, o choro mescla elementos musicais africanos e europeus, fazendo com nossa música o que o maxixe fez com a dança.

O ambiente onde os chorões se apresentavam podia ser qualquer lugar da cidade. Faziam longas serenatas pelas ruas e praças do Rio de outrora. Alegravam festas e saraus. Frequentemente reuniam-se em uma taverna, botequim ou quintal de casa de subúrbio para desfrutar do simples prazer de tocar junto; neste caso, a platéia era dispensável se relutasse em fazer silêncio absoluto; idem para com o músico não virtuoso, por eles apelidado de “facão”.

Os pioneiros do gênero foram: Joaquim Callado (1848-1880) e sua Flor amorosa, Chiquinha Gozaga (1847-1935), Ernesto Nazareth (1863-1934), criador do famoso chorinho Odeon; Catulo da Paixão Cearense (1863-1946), autor da mais tradicional modinha - Luar do sertão; o paulista Zequinha de Abreu (1880-1935), com o sucesso Tico-tico no fubá; os grandes flautistas Patápio Silva (1881-1907) e Benedito Lacerda (1903-1958), por cujas obras Altamiro manteve sempre respeitosa admiração.

Toda essa gente abençoada por dois mestres: Heitor Villa-Lobos (1887-1959), que, entre a vida boêmia e as salas de concerto, unia o clássico ao popular; e Alfredo da Rocha Viana Filho (1898-1973), mais conhecido como Pixinguinha. A ele devemos a consolidação definitiva do choro. Altamiro Carrilho sempre incluía no repertório de suas apresentações choros de Pixinguinha – Um a zero, Urubu malandro, Lamento, Naquele Tempo, Sofres porque queres e o indefectível Carinhoso.

São com essas referências que o nosso flautista, prático de farmácia e fluminense de Santo Antônio de Pádua, assume a liderança na defesa do chorinho no Brasil e mundo afora. Mestre na improvisação, começou sua carreira no programa de calouros de Ary Barroso (1903-1964). Em 1951, ingressa no conjunto regional do violonista Garoto (1915-1955), na Rádio Marynk Veiga, em substituição a Benedito Lacerda. Daí por diante, acompanhou grandes nomes de nossa música popular, como Vicente Celestino (1894-1968), Francisco Alves (1898-1952)
, o Rei da Voz, Orlando Silva (1915-1978); Dalva de Oliveira (1917-1972), dentre outros. Mais tarde, criou o grupo Altamiro e sua bandinha, para se apresentar em horário nobre na antiga TV Tupi, alcançando enorme sucesso.

Todavia, no final dos anos 50, início dos 60, o fôlego do chorinho já não acompanhava o seu. Há muito o gênero perdera espaço para o samba, em especial, o samba-canção, primo-irmão do bolero; e, por fim, a bossa nova assumiu a vanguarda, atraindo a juventude talentosa que ansiava por novos caminhos estéticos para a música brasileira. O golpe final veio com o chorrilho da Jovem Guarda e do iê-iê-iê (simulacros tupiniquins do pop rock norte-americano). Nichos ainda resistiam nos subúrbios cariocas, mas não houve renovação possível. Os principais centros culturais do país – Rio e São Paulo - estavam divididos entre o pop rock vindo do norte e o que se convencionou chamar de Música Popular Brasileira – MPB, uma mixórdia de gêneros e estilos unidos na tentativa de fazer frente à invasão alienígena. A música brasileira de boa qualidade havia sido expulsa lentamente das rádios, TV e casas noturnas.

Em meados dos anos 70 acontece fugaz renascimento do choro. O QG deste acontecimento espontâneo era um armazém localizado no subúrbio carioca da Penha: o Sovaco de cobra.

O português dono do estabelecimento, além de torcer pelo Vasco, era amante de chorinho. Regionais remanescentes começaram a atacar por lá os tremoços regados a chope, todos os sábados à tarde. Não demorou muito para o mineiro Abel Ferreira (1915-1980), Dino 7 Cordas (1918-2006), o trombonista Zé da Velha, o Conjunto Época de Ouro, Paulinho da Viola e o regional de seu pai; os violonistas Guinga, Raphael Rabello (1962-1995) e Paulinho Nogueira (1929-2003); o gaúcho Radamés Gnattali (1906-1988), Joel do Bandolim, Paulo Moura e, claro, o nosso Ás da flauta identificarem o cheiro da boa música e darem suas “canjas” por lá. Seguiram novelas, filmes, discos, shows de choro pelo Brasil inteiro. O lugar virou point, encheu de gente “descolada”, o português abriu filiais, bandas ecléticas “aguitarradas” foram contratadas e a vida seguiu seu curso. A duração dessa renascença foi efêmera. Rapidamente a coisa perdeu o frescor da novidade, e, com ele, o interesse mercadológico. Brasília e a cidade de Conservatória, no Rio, ainda tentam manter viva a chama. Na verdade, o chorinho retornou à condição de relíquia do folclore nacional.

Porém, Altamiro Carrilho já tinha atravessado o Atlântico para tocar Mozart, Bach, Villa-Lobos e Pixinguinha para boquiabertos alemães, ingleses, espanhóis, portugueses, egípcios, indianos etc. Suas apresentações impressionavam pelo amálgama equilibrado entre o rigor técnico da execução e a emoção passada ao público.

Hoje, no Japão, Europa, EUA existem grupos musicais dedicados ao estudo e execução do chorinho. Yo-Yo Ma, Wynton Marsalis, Stéphane Grappelli e muitos músicos de renome, além de apaixonados pelo chorinho, consideram Altamiro um dos maiores flautistas de todos os tempos.

Se algo parecido com Shangri-La existe, lá, com certeza, estão Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Waldyr Azevedo, Dilermando Reis, Jackson do Pandeiro e Ademilde Fonseca tocando e cantando Brasileirinho junto com Altamiro e suas flautas. Sem dúvida, música para os deuses . . . !



Quinho

                                         
*Administrador e Sociólogo