quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Mídia

Sociólogo diz que sociedade está ‘enfeitiçada’ pela mídia:

‘Só as versões são realidade’*


Em debate realizado pelo Fórum 21 nesta quinta-feira (12) [de novembro], na série “Seminários para o Avanço Social”, o sociólogo Laymert Garcia dos Santos, da Unicamp, e doutor em Ciências da Informação pela Universidade de Paris VII, afirmou que a realidade atual, com o monopólio da informação pela mídia tradicional, é “desesperadora”. Para ele, a sociedade está “enfeitiçada” pela manipulação. “Só as versões se tornam realidade, ao ponto de as pessoas não saberem mais o que é real e o que não é.”
Eduardo Maretti**


Segundo Laymert, exemplo esclarecedor a respeito é a operação midiática de transformar a presidenta Dilma Rousseff no objeto de ataques sistemáticos e culpada de tudo o que de ruim acontece ou pode acontecer no país. A operação, lembra, começou na Copa do Mundo de 2014. “Trinta ou quarenta mil pessoas na Avenida Paulista (manifestação da esquerda em 13 de março de 2015) debaixo de chuva não é notícia. Porque para os meios de comunicação é preciso manter no ar a ideia do golpe. É preciso manter no ar permanentemente alguma coisa.”

O sociólogo lembra que o início da deslegitimação de Dilma, na Copa, partiu do camarote do Banco Itaú no estádio, onde estava a colunista Sonia Racy. “Não foi à toa que foi escolhido esse local.” Na ocasião da abertura da Copa, no Itaquerão, em São Paulo, o blogueiro Luiz Carlos Azenha registrou em seu blog: “Uma importante colunista social do Estadão, sentada no camarote do Banco Itaú, gritou a plenos pulmões – aparentemente entusiasmada – ‘Ei, Dilma, VTNC’”.

Diante da sistemática ofensiva do oligopólio de comunicação, “não existe mais” cobertura (jornalística), no sentido de processar informações reais. “A mídia é parte ativa na criação de versões e ficções sobre o que acontece. O que é de fato real soçobra.”

Entre os veículos de comunicação que fazem parte da campanha contra o governo petista de Dilma Rousseff, Laymert considera a Folha de S. Paulo o mais sofisticado e eficiente na construção do discurso da negatividade. “A Folha é a mais elaborada, porque eles estão há mais de 30 anos elaborando o discurso do ressentimento. Sempre, em qualquer momento em que há uma positividade, o discurso é negativo. Se a notícia é boa, existe o recurso: ‘mas…’”

A operação que se desenvolveu nos últimos meses para proteger o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), que poderia ser o condutor do impeachment desejado pela direita do país, para o sociólogo, é absurda. “Ele (Cunha) está apodrecendo todos os dias e não cai. Como é possível construir essas redes de proteção? Os ladrões estão gritando ‘pega ladrão’ para quem não é ladrão.”

O grande problema, para Laymert, é que “o outro lado não consiga responder”. Segundo a análise, “estamos vivendo um fenômeno complicado para o qual a esquerda não tem respostas”. Ele diz que desde os anos 1980 observa a dificuldade da esquerda em compreender a questão midiática. Um dos principais erros de líderes petistas foi acreditar que, quando o PT chegasse ao poder, haveria uma “troca de sinal” e os meios de comunicação passariam a ser mais benevolentes com os esquerdistas. Mas o que se viu foi o contrário. “Uma vez no poder, a esquerda tem uma atitude ao mesmo tempo de submissão e fascínio pelos meios de comunicação.”

Snowden e Assange

Laymert acredita que nem mesmo setores da mídia de esquerda, como os chamados “blogueiros sujos”, entendem o processo midiático atual. “Os ‘blogueiros sujos’ não entendem, embora estejam mais perto de entender, que a política hoje não é mais a política, mas a tecnopolítica. Quem entendeu isso foram homens como Julian Assange (do Wikileaks) e Edward Snowden”, disse o professor da Unicamp. Ex-funcionário da agência de inteligência americana, a NSA, Snowden tornou público que o governo dos Estados Unidos opera um sistema de vigilância que abrange cidadãos e governos em todos os lugares do mundo que lhe interessem.

“Há uma dimensão totalitária quanto à linguagem e a instrumentalização da linguagem política. Não vejo como a esquerda possa reagir diante dessa ofensiva totalitária da mídia”, diz Laymert. “Snowden e Assange entenderam que o poder está na informação. Mais do que isso, entenderam que, ao contrário do Facebook, que fornece mais do mesmo e satisfaz o narcisismo das pessoas, o que importa é a informação que não se vê, que está oculta. No mundo atual, a informação real é a que não é exposta.”

O último debate da série promovida pelo Fórum 21 será realizado nesta sexta-feira (13) [de novembro], às 9h, na Assembleia Legislativa, com o tema “Impeachment e golpe”, com a participação do ex-candidato ao governo de São Paulo pelo Psol, em 2014, Gilberto Maringoni.

*Extraído de Sul21

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

O mundo é o mercado?

Nestlé admite envolvimento em trabalho escravo*


Esquerda.net


As denúncias feitas por ONG e pela imprensa levaram a multinacional a investigar alegadas práticas de escravidão na pesca de marisco usado em produtos para animais de estimação.

Esta decisão resulta de uma investigação interna levada a cabo pela Nestlé desde dezembro do ano passado, depois de ter sido tornada pública a existência de práticas brutais e condições de trabalho não reguladas na pesca de marisco que entra na produção de algumas das marcas da Purina.

Trabalhadores do Camboja e Myanmar são vendidos ou atraídos com falsas promessas de trabalho para a pesca de marisco na Tailândia através de agentes que lhes cobram elevadas somas para lhes arranjar trabalho. Os trabalhadores são depois obrigados a trabalhar sem condições de segurança, em barcos-fábrica durante vários meses para arranjarem dinheiro para pagar aos traficantes.

A investigação levada a cabo pela Nestlé revela que praticamente todas as empresas europeias e norte-americanas que compram marisco na Tailândia podem estar adquirindo produtos fabricados por migrantes escravizados.

A multinacional suiça não é um dos maiores compradores de marisco nesta região, mas o marisco que compra na Tailândia é usado na gama de comida para gato, Fancy Feast [Friskies, no Brasil], da Purina.

Estas denúncias permitiram já a libertação de, pelo menos, 2 mil trabalhadores que se encontravam nestas condições.

As exportações resultantes da pesca de marisco rendem à Tailândia cerca de 7 bilhões de dólares por ano.

Recorde-se que no passado mês de agosto, vários compradores de comida para animais de estimação e o distribuidor de comida congelada Thai Frozen Products processaram a Nestlé por causa das condições a que estão sujeitos os trabalhadores.

*Extraído de Outras Palavras

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Educação e mercado

'A lógica do mercado prevalece na educação chilena'*



Gustavo Gerrtner, para o Página/12


Camila Vallejo não se deixa enganar pelos indicadores econômicos. O último Informe de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas poderia situar o Chile dentro do grupo de estados com “alto desenvolvimento humano” no âmbito da educação. Mas para ela, a educação em seu país continua sendo dominada por uma lógica mercantilista, que se reflete no alto custo econômico para as famílias dos estudantes. Nos bastidores do Centro Cultural Kirchner, minutos depois de concluir sua conferência “Política, Luta e Hegemonia” – na qual falou quase sem olhar suas anotações – a ex-dirigente estudantil, hoje deputada comunista, falou com o diário argentino Página/12, sobre os obstáculos que a criação de um sistema educacional de qualidade e voltado para a maioria da população do Chile. “Quando havia vontade de mudar, não havia maioria política para levar a essas mudanças, quando conseguimos gerar maior consenso dentro do mundo político, através das pressões dos movimentos sociais, lamentavelmente, os acordos que mantêm o sistema político e sua carga ideológica falaram mais alto”, afirmou.

Para Vallejo, nos últimos 25 anos, os governos que sucederam a ditadura de Pinochet (1973-1990) não quiseram ou não puderam reformar o sistema educativo devido à influência da ideologia neoliberal dentro da política chilena. “Esse pensamento penetrou alguns setores da Concertação (coalizão política que governou o país entre 1990 e 2010), através do convencimento ideológico, mas também devido à rede de privilégios e benefícios gerada pela mercantilização”, comentou ela. “Muitos se tornaram administradores privados das escolas públicas, donos ou acionistas de universidades, todos são parte do negócio e isso impede uma mudança mais radical no setor”. As políticas educacionais implantadas no Chile transformaram a educação do país num enorme negócio, onde até mesmo as escolas públicas, administradas por grupos privados, fundações ou cooperativas de professores, cobram mensalidades.

Vallejo lembra que algumas das mesas de trabalho criadas no Congresso durante os governos anteriores contou com a participação de acadêmicos, políticos e também dos dirigentes estudantis, como ocorreu após a chamada “Revolução dos Pinguins” (nome dado à mobilização realizada em 2006 pelos estudantes secundaristas, conhecidos como “pinguins”, devido ao seu uniforme engravatado), mas que depois, essas deliberações eram levadas ao parlamento, onde tinham que ser negociados com a direita. “Dessa época, surgiu uma lei (em 2009, durante o primeiro governo de Michelle Bachelet) que não representava o que havia sido conversado nas mesas de trabalho. Essa foi a grande traição ao Movimento Estudantil, que ainda não esqueceu o que aconteceu”, contou a deputada, que naquele então era presidenta da Federação de Estudantes da Universidade do Chile.

O Partido Comunista chileno, ao qual Vallejo representa no Congresso, forma parte da Nova Maioria, a coalizão que governa o país. “Em algum momento, o esforço que fazemos agora para impulsar as reformas, entre elas a do sistema educacional, vai esbarrar na questão constitucional”, explicou ela. “Podemos fazer muitas coisas, mas estamos sempre sob o risco de sermos impedidos pela inconstitucionalidade, já que o que prevalece na atual Constituição (imposta durante a ditadura de Pinochet) é um conceito de liberdade de ensino que se confunde com liberdade de empresa. E para mudar a Constituição, necessitamos de um quórum muito maior que o que temos agora no parlamento”, lamentou.

Em setembro, a presidenta chilena Michelle Bachelet apresentou ao Congresso o orçamento para o ano de 2016, que, se aprovado, financiará a educação gratuita para um milhão e meio de alunos da rede pública e mais de 200 mil universitários que pertencem aos extratos socioeconômicos mais vulneráveis do país. Assim, o de Educação passaria a ser o ministério que com mais verbas do país. Vallejo reconhece avanços no projeto, mas considera que será insuficiente, devido às mudanças estruturais que as escolas necessitam, e que requerem um investimento muito maior. “Existe uma dívida histórica tão grande com a educação pública que para alcançar a qualidade que queremos é preciso investir em vários outros aspectos”, alertou.

“Precisamos inovar em investigação, desenvolvimento científico e tecnologia, criar um maior vínculo entre as instituições de educação superior e os territórios ao qual elas pertencem. Com o projeto atual de reforma educacional, estamos promovendo o fim do lucro na educação pública chilena, e eliminando a segregação nas escolas e o financiamento compartilhado entre o Estado e as famílias. Significa que nenhuma escola poderá discriminar alunos, que demos um primeiro passo para haver gratuidade no sistema educacional chileno, que vai começar nos níveis menores, e depois chegará à educação superior. Mas ainda temos poucos detalhes sobre os fundos que serão destinados à recuperação da educação pública”, opinou Vallejo, que recebeu há dois anos seu diploma de Geografia, da Universidade do Chile.

“O discurso de buscar ter o PIB e o crescimento mais alto da América Latina tem sido uma grande falácia, porque não se transformou em melhores condições de vida para a população”, sentenciou. “Os governos posteriores à ditadura consolidaram a separação entre o povo e o Estado”, analisou a deputada. “A perseguição às organizações sindicais, ao mundo da cultura, professores e estudantes gerou uma ferida social brutal, que se reflete hoje no temor que os pais têm de que os jovens participem da política”. Para a deputada, a onda de ojeriza à política foi instalada pelos meios de comunicação, e também por iniciativas impulsadas dentro do sistema educativo. Segundo ela, para reconciliar o povo e a política, é preciso aprofundar a democracia. “Não podemos restringir a participação da cidadania na política a um voto dado a cada quatro anos. O Estado deve ter instâncias locais ou comunitárias de participação política. Por outro lado, a sociedade civil deve compreender a dimensão e a importância de formar parte do Estado, de disputar os espaços políticos, e não se isolar ou dizer que `esse mundo é tão podre que é melhor não se envolver´, e perceber que pode e deve se envolver”.

Tradução: Victor Farinelli

De líder estudantil a deputada mais votada do Chile
Por Victor Farinelli

Ela hoje é uma das políticas mais conhecidas do país, mas há cinco anos atrás era somente uma dirigente estudantil sem grandes pretensões além de se formar em Geografia e passar férias em Florianópolis.

Em 2011, Camila Vallejo foi eleita presidente da Federação de Estudantes da Universidade do Chile – que apesar de ser a maior instituição de ensino superior do país, não é gratuita, pelo contrário, é uma das que possui a mensalidade mais cara. Em maio daquele mesmo ano, durante o governo de Sebastián Piñera (2010-2014, o primeiro da direita chilena após a ditadura), ela liderou as primeiras marchas estudantis contra o sistema educacional chileno e o super endividamento que ele causava às famílias. As marchas tiveram alta convocatória, e passaram a ser semanais. Uma dessas marchas, em meados de julho daquele ano, chegou a reunir 300 mil pessoas no centro de Santiago e 500 mil contando as realizadas simultaneamente nas capitais das províncias, tornando-se a maior manifestação realizada no país após a ditadura.

O movimento liderado por Vallejo instalou definitivamente a educação como o assunto prioritário no debate político chileno, o que ficou evidente dois anos depois, quando a disputa presidencial se deu entre a ex-presidente Michelle Bachelet, que buscava voltar ao Palácio de La Moneda com a promessa de uma reforma educacional com bases semelhantes às demandadas pelo Movimento Estudantil, e a líder conservadora Evelyn Matthei, cuja proposta era a de manter e reforçar o modelo mercantil de educação. Em dezembro de 2013, Bachelet foi eleita com 63% dos votos, resultado que evidenciou o apoio popular por mudanças profundas na educação.

Naquele mesmo processo eleitoral, o Movimento Estudantil levou quatro dos seus líderes para a Câmara dos Deputados, com destaque para Camila Vallejo, que foi a deputada mais votada do país e foi preponderante para que o Partido Comunista tivesse o seu melhor desempenho eleitoral desde o retorno da democracia – conseguindo seis das 120 cadeiras da Câmara.

*Extraído de Carta Maior

quinta-feira, 8 de outubro de 2015

Estado e mercado

O paradoxo e a insensatez


José Luis Fiori

“Uma vez me perguntaram se o Estado brasileiro é muito grande.
Respondi assim: “Eu vou lhe dar o telefone da minha empregada,
porque você está perguntando isto para mim,
um cara que fez pós-doutorado, trabalha num lugar com ar-condicionado,
com vista para o Cristo Redentor.
Eu não dependo em nada do Estado, com exceção de segurança.
Nesse condomínio social, eu moro na cobertura.
Você tem que perguntar a quem precisa do Estado.”
Luiz G. Schymura, Valor Economico, 07/08/2015

Duas coisas ficaram mais claras nas últimas semanas, com relação à tal da “crise brasileira”. De um lado, o despudor golpista, e de outro, a natureza ultraliberal do seu projeto para o Brasil. Do ponto de vista político, ficou claro que dá absolutamente no mesmo o motivo dos que propõem um impeachment, o fundamental é sua decisão prévia de derrubar uma presidente da República eleita por 54,5 milhões de brasileiros há menos de um ano, o que caracteriza um projeto claramente golpista e antidemocrático e, o que pior, conduzido por lideranças medíocres e de discutível estatura moral.

Talvez, por isto mesmo, nas últimas semanas, a imprensa escalou um grupo expressivo de economistas liberais, para formular as ideias e projetos do que seria o governo nascido do golpe. Sem nenhuma surpresa: quase todos repetem as mesmas fórmulas, com distintas linguagens. Todos consideram que é preciso primeiro resolver a “crise política”, para depois poder resolver a “crise econômica”; e uma vez “resolvida” a crise política, todos propõem a mesma coisa, em síntese: “menos estado e menos política”.

Não interessa muito o detalhamento aqui das suas sugestões técnicas. O que importa é que suas premissas e conclusões são as mesmas que a utopia liberal repete desde o século XVIII, sem jamais alcançá-las ou comprová-las, como é o caso de sua crença na racionalidade utilitária do homo economicus, na superioridade dos “mercados desregulados”, na existência de mercados “competitivos globais”, e na sua fé cega na necessidade e possibilidade de despolitizar e reduzir ao mínimo a intervenção do Estado na vida econômica. É muito difícil para estes ideólogos que sonham com o “limbo”, entender que não existe vida econômica sem política e sem estado. É muito difícil para eles compreender ou aceitar que as duas “crises brasileiras” são duas faces de um conjunto de conflitos e disputas econômicas cruzadas, cuja solução tem que passar inevitavelmente pela política e pelo estado. Não se trata de uma disputa que possa ser resolvida através de uma fórmula técnica de validez universal. Por isto, é uma falácia dizer que existe uma luta e uma incompatibilidade entre a “aritmética econômica” e o “voluntarismo político”. Existem várias “aritméticas econômicas” para explicar um mesmo déficit fiscal, por exemplo, todas só parcialmente verdadeiras. Parece muito difícil para os economistas em geral, e em particular para os economistas liberais, aceitarem que a economia envolve relações sociais de poder, que a economia é também uma estratégia de luta pelo poder do estado, que pode estar mais voltado para o “pessoal da cobertura”, mas também pode ser inclinado na direção dos menos favorecidos pelas alturas.

Agora bem, na conjuntura atual, como entender o encontro e a colaboração destes economistas liberais com os políticos golpistas?

O francês, Pierre Rosanvallon, dá uma pista[1], ao fazer uma anátomo-patologia lógica do liberalismo da “escola fisiocrática” francesa, liderada por François Quesnay. Ela parte da proposta fisiocrático/liberal de redução radical da política à economia, e da transformação de todos os governos em máquinas puramente administrativas e despolitizadas, fiéis à ordem natural dos mercados. E mostra como e por que este projeto de despolitização radical da economia e do estado leva à necessidade implacável de um “tirano” ou “déspota esclarecido” que entenda a natureza nefasta da política e do estado, mantenha-se “neutro”, e promova a supressão despótica da política, criando as condições indispensáveis para a realização da “grande utopia liberal”, dos mercados livres e desregulados. Foi o que Rosanvallon chamou de “paradoxo fisiocrata”, ou seja: a defesa da necessidade de um “tirano liberal” que “adormecesse” as paixões e os interesses políticos e, se possível, os eliminasse.

No século XX, a experiência mais conhecida deste projeto ultraliberal, foi a da ditadura de Augusto Pinochet, no Chile, que foi chamada pelo economista americano, Paul Samuelson, de “fascismo de mercado”. Pinochet foi — por excelência — a figura do “tirano” sonhado pelos fisiocratas: primitivo, quase troglodita, dedicou-se quase inteiramente à eliminação dos seus adversários e de toda a atividade política dissidente, e entregou o governo de fato a um grupo de economistas ultraliberais que puderam fazer o que quiseram durante quase duas décadas. No Brasil não faltam — neste momento — os candidatos com as mesmas características e os economistas sempre rápidos em propor, e dispostos a levar até as últimas consequências, o seu projeto de “redução radical do Estado” e, se for possível, de toda atividade política capaz de perturbar a tranquilidade dos seus modelos matemáticos e dos seus cálculos contábeis. Neste sentido, não está errado dizer que os dois lados deste mesmo projeto são cúmplices e compartem a mesma e gigantesca insensatez, ao supor que seu projeto golpista e ultraliberal não encontrará resistência e, no limite, não provocará uma rebelião ou enfrentamento civil, de grandes proporções, como nunca houve antes no Brasil. Porque não é necessário dizer que tanto os lideres golpistas quanto seus economistas de plantão olham para o mundo como se ele fosse uma “enorme cobertura”, segundo a tipologia sugerida pelo Sr. Luiz Schymura, um raro economista liberal que entende e aceita a natureza contraditória dos mercados e do capitalismo, e a origem democrática do atual déficit público brasileiro.


[1] P. Rosanvallon, Le liberalisme économique. Histoire de l´idée de marché, Editions Seuil, Paris, 1988.

*Extraído de Outras Palavras

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

O real e o virtual

As tecnologias de informação e a participação social


Daniel Roedel

No âmbito das comemorações dos 10 anos do Programa de Políticas Públicas e Formação Humana  - PPFH da UERJ, será realizado, no dia 29 de setembro, o evento A Participação social mediada pelas tecnologias de informação e comunicação - TIC.

A parte da manhã terá como tema central Ciberativismo e a expansão da participação democrática e contará com a presença do deputado federal Alessandro Molon, relator do Projeto de Lei que criou o Marco Civil da Internet no Brasil, e de representantes do núcleo do Rio de Janeiro da Auditoria Cidadã da Dívida Pública, da Mídia Independente Coletiva e do Movimento Chega de Descaso. A intenção é conhecer e debater os alcances e limites do ativismo virtual na ação política transformadora.
Na parte da tarde o tema central será a Mediação da tecnologia na formação humana e na cidadania. Serão apresentadas pesquisas de mestrado e doutorado realizadas no PPFH. Os participantes terão direito a certificado. Esta é mais uma oportunidade para a reflexão e a troca de experiência sobre os usos das tecnologias e sua apropriação para a luta política democrática.



Conheça a programação completa da semana de comemorações clicando em PPFH.



quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Dívida pública e participação política

Seminário regional da Auditoria Cidadã da Dívida Pública


Daniel Roedel

O tema da corrupção tem sido apresentado como o grande causador dos problemas nacionais. Movimentos políticos ocupam as ruas e as redes virtuais da internet para demonstrar indignação e revolta contra o que classificam como uma imoralidade no trato da gestão pública no país. No entanto, a mesma indignação não é percebida quando se trata da grande corrupção institucionalizada que Maria Lúcia Fattorelli, coordenadora nacional da Auditoria Cidadã, denominou de Sistema da Dívida Pública que consumiu mais de 45% do orçamento federal executado em 2014. E nos anos anteriores a situação não foi diferente... Portanto, a condição de devedores de diversos países está integrada a um mecanismo que alimenta e transfere recursos para o sistema financeiro internacional. Mais do que uma questão estritamente moral, a dívida pública é parte integrante de uma relação de dependência que cresce a cada ano, incorpora novos países e impõe austeros programas de ajustes que penalizam as populações. Mas a intenção vai além da garantia do pagamento de juros e serviços dessas "dívidas". Tais programas e "acordos" pretendem mesmo é renovar as relações de dependência e eliminar qualquer alternativa de rebeldia.

É com esse entendimento que será realizado o Seminário Regional da Auditoria Cidadã da Dívida Pública do Rio de Janeiro. Etapa que antecede o seminário nacional que será realizado em outubro, esta é mais uma oportunidade de refletirmos, debatermos e nos mobilizarmos para que finalmente possamos conhecer as condições em que são assinados os acordos de pagamentos da dívida junto aos credores do sistema financeiro. E isto será possível mediante uma auditoria.

Venha debater com Maria Lúcia Fattorelli e com diversos especialistas e militantes da causa da auditoria. O evento ocorrerá no dia 23 de setembro, no horário de 13h às 20h30, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ. Haverá transmissão ao vivo pela internet.




quinta-feira, 13 de agosto de 2015

O virtual e o real

Novos movimentos: hora de deixar as redes sociais?*


Thomas Swann**

Em 2011, havia um forte sentimento de que a política radical estava mudando. A Primavera Árabe, os Indignados, o Occupy: tudo dava a impressão de que a ação direta e a democracia direta estavam saindo do gueto onde permaneceram, no movimento de altermundismo. Com assembleias massivas e uma política radical DIY (ou “Façamos nós próprios”- “Do It Ourselves”, DIO em inglês), alguma coisa parecia estar se transformando. Frente à “austeridade” e ao totalitarismo, uma alternativa real estava sendo forjada.

Ao mesmo tempo, as ferramentas usadas nesses protestos e rebeliões vieram para o centro do palco. Não somente os mecanismos de tomada de decisão democráticos, mas também as infra-estruturas digitais que, muitos argumentavam, facilitavam aquilo que era tão promissor nesses movimentos.

As mídias sociais eram cada vez mais vistas como elemento essencial para que grandes grupos pudessem organizar-se sem uma liderança centralizada. Plataformas como o Facebook e o Twitter estavam possibilitando às pessoas mobilizar-se não em estruturas hierárquicas como sindicatos e partidos políticos, mas em redes horizontais. Ativistas autônomos e subgrupos desfrutavam de autonomia tática, enquanto permaneciam sendo parte de um todo maior.

Passaram-se quase quatro anos e agora grande parte do brilho dessa narrativa se apagou. Alguns elementos das revoltas de 2011 foram consumidos pela tragédia da guerra civil e das ditaduras restauradas, enquanto outros se dispersaram.

É claro que quatro anos não significa um tempo longo no grande plano da História, e o exemplo do Podemos e do Syriza sugere que talvez esses movimentos estejam de fato evoluindo e desenvolvendo novas estratégias. Uma vez que a fase de mobilização de massa e movimentos sociais radicais de modo algum foi interrompida, o que está em disputa, talvez mais do que qualquer outra coisa nos últimos quatro anos, é a promessa contida nas ferramentas das rebeliões de 2011.

As mídias sociais, antes consideradas por alguns como a essência mesma da política radical contemporânea, são agora vistas sob uma luz mais crua e menos indulgente. Algumas experiências destacaram as desigualdades e hierarquias implícitas que eram reforçadas pelas mídias sociais.

Outras apontaram para a maneira como as mídias sociais exploram, visando lucro, nosso comportamento online. A saga de Snowden mostrou como nossa organização online é vulnerável, assim como a repressão do ativismo baseado nas mídias sociais ocorrida na Turquia e em outros lugares.

Mas haverá, diante dessas críticas, alguma coisa que possa ser salva? Plataformas como Facebook e Twitter podem ser úteis na política radical? Se sim, como? Eles ainda facilitam o tipo de organização que era tão promissor em 2011 e que continua, de vários modos, a definir política radical de esquerda?

A promessa das mídias sociais

As plataformas de mídia social são frequentemente consideradas meios de comunicação, de auto-expressão e formação do discurso público. Da mesma forma, contudo, as plataformas de mídia social – e as práticas de comunicação em geral – atuam também como infra-estruturas que apóiam as ações que desenvolvemos. Elas nos permitem partilhar informações e recursos, assim como tomar decisões coletivas.

Nesse sentido, práticas de comunicação podem também ser entendidas como um sistema de gerenciamento da informação. Esse é um conceito emprestado do mundo dos negócios e da administração, e refere-se a qualquer sistema, normalmente eletrônico e crescentemente digital, que facilita a organização. Emails de trabalho e intranets pertencem a esse tipo. Não só possibilitam às pessoas falar umas com as outras, mas contribuem também para a realização das tarefas.

O que as mídias sociais podem oferecer, quando consideradas como sistemas de gerenciamento da informação, plataformas que facilitam certas formas de ação, é um modo para tornar organizações radicais e anarquistas mais próximas das estruturas democráticas e participativas que caracterizam os levantes de 2011 e a política radical de esquerda, pelo menos desde a rebelião zapatista, o movimento anti-globalização dos anos 1990 e, antes ainda, o feminismo radical dos anos 1960 e 1970.

As mídias sociais podem oferecer a infra-estrutura tanto para tomadas de decisão democráticas e ações autônomas, possibilitando aos ativistas acesso a recursos e informações que podem capacitá-los para agir – de tal modo que estruturas mais hierárquicas de comunicação fiquem reduzidas aos processos de comando e controle.

Embora haja críticas significativas de ativistas, assim como de acadêmicos, às mídias sociais – com foco na privacidade e vigilância, controle corporativo e estatal, a economia política de trabalho gratuito e a psicologia e comportamento encorajados pela arquitetura das plataformas mainstream – quero sugerir que ainda existe um potencial inerente às mídias sociais, dada a natureza das práticas de comunicação a que dão suporte.

Essas práticas podem ser descritas como comunicação de muitos-para-muitos. São potencialmente construídas sobre diálogos com múltiplos atores, o que expressa um dos elementos necessários à democracia participativa da política radical de esquerda. As mídias sociais podem, portanto, ser vistas como sistemas que facilitam formas de organização radicalmente democráticas e que podem dar suporte a tipos de autonomia e horizontalidade que, em parte, foram vistas nos movimentos de 2011.

Essa é a promessa das mídias sociais. Uma promessa que ainda pode ser cumprida. Se as mídias sociais apresentam oportunidade para a comunicação horizontal, de conversação, e esse tipo de comunicação é consistente com os modos como tentamos imaginar relacionamentos sociais e estruturas de tomada-de-decisão não-hierárquicos, então as mídias sociais podem ser consideradas com potencial para ser parte da política radical de esquerda.

Práticas de comunicação interna e externa

Como parte de minha pesquisa de doutorado, entrevistei muitos ativistas envolvidos na esquerda radical e na cena anarquista holandesas. As imagens que eles apresentaram sobre práticas de comunicação dos grupos com que se relacionavam podem ser usadas para trabalhar algumas ideias em torno da comunicação de muitos-para-muitos, de sua relação com a política radical e a promessa das mídias sociais.

Internamente, todos os grupos de esquerda radical em questão adaptam-se, mais ou menos, ao modelo de comunicação de muitos-para-muitos. Grande parte dessa comunicação é feita por meio de encontros presenciais, nos quais as pessoas tentam chegar ao consenso sobre temas em discussão e decisões que precisam ser tomadas.

Sobre tecnologia de redes sociais, no entanto, os ativistas falaram das listas de discussão por e-mail e dos fóruns on-line, de uso comum na política radical de esquerda desde ao menos a Batalha de Seattle, em 1999, e os primórdios do movimento altermundista.

Embora nenhum dos grupos utilizasse, em suas práticas internas de comunicação, plataformas mais novas e mainstream como o Facebook, um deles usava o site alternativo de relacionamento social Crabgrasscomo parte central de sua infra-estrutura de debate e tomada-de-decisão. O Crabgrass foi desenvolvido por pessoas ligadas ao coletivoRiseUp, que oferece endereços de e-mail seguros a ativistas. O objetivo é facilitar a formação de redes sociais e colaboração em grupo, com inclinação especificamente radical e de esquerda.

Externamente, a comunicação de muitos-para-muitos tornou-se muito mais rara. Embora a maioria dos grupos usem Facebook e Twitter, usam-nos principalmente como extensões de seus sites, que por sua vez atuam principalmente como extensões de seus jornais impressos.

As três exceções ressaltam as potencialidades de ambas as plataformas de mídia social, a mainstream e a alternativa, no desempenho desse papel. Um grupo, envolvido em organização comunitária, era ativo no Facebook não apenas compartilhando artigos e avisos, mas também respondendo a comentários e envolvendo-se em discussões com outros usuários. Outro, usou um mapeamento coletivo, em estilocrowdsourced de forma a refletir o escopo da comunicação de muitos-para-muitos para apoiar a ação autônoma. O terceiro exemplo de uso de mídias sociais alinhado a esse ethos participativo veio de um grupo que publicava comentários e respostas do Facebook e do Twitter em seu jornal, facilitando algum nível de conversação entre os participantes do grupo e aqueles que estavam fora dele.

Institucionalizando a autonomia

A comunicação de muitos-para-muitos facilitada pelas mídias sociais – na medida em que permite a conversa, em vez de simplesmente a transmissão de informações, ou mesmo ordens –, está intimamente ligada a uma visão de organização de esquerda radical e anarquista. Se a representação do futuro, a realização dos objetivos políticos no aqui e agora, são tidas como parte das principais preocupações dos movimentos sociais radicais, então o compromisso com a comunicação de muitos-para-muitos pode ser considerado tão importante quanto o compromisso com a democracia e a igualdade.

Ela tem o potencial de empoderar ativistas para agir com autonomia e ser um alicerce da democracia participativa. Nesse sentido, as plataformas de mídia social podem contribuir para libertar o ativismo das estruturas de cima para baixo que costumavam ser comuns em partidos políticos e dos sindicatos.

Haverá todavia outros modos de olhar para esses tipos de organização e de estrutura sugeridos pelas mídias sociais e pela comunicação de muitos-para-muitos? No início deste artigo mencionei que as mídias sociais e o exemplo das rebeliões de 2011 perderam parte daquilo que os tornava tão atrativos. Os ativistas são, parece, cada vez mais cautelosos (e talvez com razão, dadas as limitações) com as organizações de relacionamento e a comunicação em rede. Há cerca de um ano, contudo, a política radical teve uma ligeira mudança.

Em lugar de movimentos sociais que se opõem completamente aos partidos políticos e guardam autonomia com relação a eles, o ascenso do Podemos e do Syriza, e certamente a onda de apoio aos Verdes, na Inglaterra e no País de Gales, e ao Partido Nacional Escocês, na Escócia, pode apontar para um retorno do partido de massas como elemento da estratégia dos movimentos sociais radicais de esquerda.

O Podemos e o Syriza, sob muitos pontos de vista, tornaram-se articulações institucionais de movimentos sociais de massa. Não os substituíram e têm clareza de que pretendem atuar como braços parlamentares a serviço desses movimentos – embora as tensões atuais no Syriza sugiram que isso é muito mais problemático do que alguns querem fazer parecer.

No caso do Podemos, significou uma continuidade da democracia direta radical do movimento 15-M. Para tanto, o partido contou com as mídias sociais e a comunicação de muitos-para-muitos não para levar suas mensagens até os eleitores, mas na definição do próprio conteúdo dessas mensagens e de suas políticas.

As mídias sociais podem continuar a ter um papel na política radical de esquerda, afinal de contas. As práticas de comunicação de muitos-para-muitos a que dão suporte podem, na sua melhor forma, ser prefigurativas das metas da política radical, de tomadas-de-decisão participativas e democráticas. Como sistema de gerenciamento da informação, facilitam a ação concreta – os exemplos dos grupos de esquerda radical em minha pesquisa de doutorado apontam para essa conclusão.

As diversas mídias sociais mainstream (como Facebook e Twitter), e as plataformas alternativas (tais como Crabgrass e n-1), podem ser parte importante da política radical de esquerda, seja na forma de mobilização dos movimentos sociais de massa ou de articulação desses movimentos em partidos políticos mais democráticos.

*Extraído de Outras Palavras
**Tradução: Inês Castilho

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

Crise e mídia

Virada gramatical tenta curar tiro no pé da grande mídia*


Wilson Roberto Vieira Ferreira


Depois de décadas de jornalismo adversativo onde dominavam conjunções como “mas”, “porém”, “contudo” etc. para minimizar impactos negativos e, com os governos petistas como oponentes, inverter o sinal e as adversativas minimizarem impactos positivos, a grande mídia dá uma virada gramatical: adjuntos adverbiais de concessão como “apesar da crise, indústria cresce...” ou “mesmo com a crise, setor de informática vende mais...” passam a se repetir ao ponto de tornarem-se bordões ridicularizados em redes sociais. Por que essa virada gramatical? Depois de 12 anos em uma cavalgada suicida querendo provar que o País está no abismo econômico detonando bombas semióticas da crise autorrealizável, a grande mídia chegou ao limite: a presunção da catástrofe volta-se contra ela própria, com queda de audiência e anunciantes. Depois do tiro no pé a grande mídia parece tentar sinalizar ao mercado: “apesar da crise, anuncie aqui!”.

Lá pelo final do século passado, em plena crise do Plano Real com as maxidesvalorizações logo depois da reeleição presidencial de Fernando Henrique Cardoso, um helicóptero da TV Globo sobrevoava os pátios lotados de veículos das montadoras da região do ABC paulista. A voz ao vivo do repórter aéreo falava em pátios lotados, crise e férias coletivas. Corta para o estúdio. E o apresentador Chico Pinheiro contemporizou: “Mas quem ganhará é o consumidor com os descontos que as concessionárias oferecerão...”.

Essa era ainda a época do jornalismo adversativo. Embora o jornalismo sempre tenha vivido da presunção da catástrofe (o acidente, o bizarro e o endêmico prendem a atenção do espectador), a utilização das conjunções coordenadas adversativas (mas, porém, contudo, todavia etc.) sempre tiveram duas funções primordiais.

Primeiro, a função existencial – relativizar ou minimizar o impacto negativo é a sua função comercial de entretenimento. Afinal, não importa se as notícias são boas ou ruins. No todo, seja o jornalismo televisivo ou impresso, deve ser uma experiência visual, gráfica e informativa agradável.

Anunciantes não querem associar subliminarmente suas marcas e serviços a experiências desagradáveis. Por exemplo, no dia dos atentados de 11 de setembro de 2001 as redes de TV dos EUA tiveram um prejuízo de US$ 200 milhões com a suspensão de inserções publicitárias. Um ano depois, ao fazer reportagens especiais em horário nobre sobre o evento, a FOX News teve mais prejuízos: anunciantes ficaram relutantes em associar suas marcas à lembrança de um evento tão negativo.

Segundo, a função política – desde a ditadura militar, a grande imprensa tentava conciliar a sua função informativa com a adesão às políticas dos governos militares e, mais tarde, o apoio e confiança irrestrita ao Plano Real. Inflação aumentou? Mas em termos relativos diminuiu comparando-se com o mesmo período do ano anterior... O desemprego cresceu? Porém, é a oportunidade de criar seu próprio negócio...

Marteladas adversativas

Conjunções coordenadas (aditivas, adversativas, conclusivas, explicativas etc.) sempre foram retoricamente interessantes para o jornalismo: conciliavam interesses muitas vezes contraditórios (publicitários e políticos), além de criarem uma percepção aos leitores/espectadores de um jornalismo articulado, explicativo ou investigativo. Parece haver isenção ao mostrar um pretenso “outro lado”. Ao contrários das conjunções subordinadas (causa, comparativa etc.), suspeitas de intenções ideológicas ao tentarem criar subordinações entre afirmações – porque, do que, mais, contanto etc.

A partir de 2003 e início da era dos governos petistas Lula e Dilma, a grande mídia manteve esse traquejo adversativo, mas agora com o sinal trocado: deve-se agora relativizar e minimizar o impacto positivo – O PIB cresceu? Mas o desemprego aumentou. A economia está aquecida? Entretanto, o “gargalo estrutural” não vai permitir escoar a produção...

Foram 12 anos de marteladas adversativas, até chegar a um ponto onde as duas funções dessa conjunção gramatical (existencial e política) começaram a entrar em choque: de um lado, a experiência do jornalismo como infotenimento começou a perder o seu lado do “entretenimento” – a experiência para o leitor/espectador tornou-se cada vez mais desagradável, alarmista, baixo astral com alusões recorrentes de abismos, crises, precipícios, buracos e quedas.

E do outro, a condição que a grande mídia passou a se auto-investir de ser a única opção viável de oposição ao Governo Federal, pautando as ações da oposição política e parlamentar.

A crise autorrealizável

Após a transformação diuturna de cada trepidação da Bolsa, de cada variação sazonal de preços de hortaliças e legumes (os vilões tomate e cebola, por exemplo) ou de cada flutuação do câmbio em sintomas de uma presumível catástrofe, finalmente explodiu a bomba semiótica da crise econômica autorrealizável.

A crise econômica autorrealizável lembra bastante a chamada inflação psicológica da hiperinflação brasileira dos anos 80-90 – por ter medo da inflação e na tentativa de se prevenir contra uma catástrofe futura, consumidores, indústria e comércio adotavam ações que colaboravam para a expansão da própria inflação.

Com a inversão dos sinais, o diapasão do discurso adversativo finalmente criou a percepção (paradoxalmente em todo espectro político) de que a crise econômica chegou, a corrupção é endêmica e o País caiu no abismo. Mas como coloca de forma simples e irônica a charge de Duke (publicada no jornal O Tempo de Minas Gerais – veja abaixo) sobre essa dinâmica psicológica da crise, a vitória da grande mídia pode ser um tiro no próprio pé – ou a chamada “vitória de Pirro”. 




“Apesar da crise...”

A começar, a contradição entre a função existencial e política: assistir a um telejornal tornou-se desagradável e chato, produzindo medo e ansiedade. Por isso, somada a ameaça das mídias de convergência (por exemplo, a Reuters lançou um canal de vídeos cujo slogan é: “o canal de notícias para quem não vê mais TV”), despencam as audiências dos telejornais, repercutindo nas telenovelas e todo o horário nobre. Os patrocinadores ameaçam debandar ou querem negociar preços mais baixos de inserção: afinal, todos sabem, estamos em crise...

Em desespero, a mídia vem nos últimos meses abandonando as conjunções adversativas como bem percebeu Pablo Villaça, que em seu Facebook ironizou o abuso da expressão “apesar da crise” pela imprensa – clique aqui. Villaça fala que se a grande mídia não utilizasse essa expressão, ela não teria mais o que publicar, já que os fatos econômicos insistem em contradizer as previsões dos colunistas.

“Apesar da crise, porto de Santos bate recorde de movimento no primeiro semestre de 2015”, informou a TV Tribuna de Santos nessa semana ou “Apesar da crise, a indústria está otimista com as venda na Páscoa”, informou o portal de O Globo. São amostras recentes desse repentino apego ao adjunto adverbial de concessão, abandonando as conjunções adversativas.

Virada gramatical

Por que essa virada gramatical? Comunicadores como Jô Soares ou Serginho Groisman logo perceberam que a mídia na sua cruzada oposicionista abriu uma espécie de caixa de Pandora que ameaça a si própria (sobre isso clique aqui), também a grande mídia percebe que chegou ao limite da distensão entre as funções existencial e política, entre o infotenimento e o papel oposicionista.

Para além do confronto político-partidário, existe a rotina contábil de entrada e saída do caixa, das atividades comerciais cotidianas, da necessidade do constante fluxo de inserções publicitárias que dependem de percepções e expectativas quanto ao futuro da indústria, comércio e serviços.

A grande mídia começa a perceber que há anos está em uma cavalgada suicida. Por isso, o verdadeiro bordão em que se tornou os adjuntos adverbias de concessão (apesar de, embora, em que pese, mesmo que etc.) é o sintoma dessa desesperada tentativa de conciliar a natureza comercial de entretenimento com o papel conjuntural de oposição política.

E uma sutil mensagem aos patrocinadores: sim, apesar da crise vocês podem continuar anunciando aqui...

No caso particular da TV Globo, a situação é ainda pior. Por muito tempo, a crise e a hiperinflação foram aliados para sua audiência cativa: na falta de dinheiro para ir a um cinema ou restaurante, o brasileiro ficava em casa assistindo ao horário nobre de futebol/telenovelas/noticiário.

A explosão da bomba semiótica da crise autorrealizável pode ter deprimido o consumo e o ímpeto de sair de casa para se divertir. Mas diante da chatice da recorrência de adversativas e adjuntos adverbiais de concessão, há atualmente em cada quarto da casa de um número crescente de brasileiros algum tipo de dispositivo de convergência (celular, ipad, notebook etc.) como a alternativa mais imediata para abandonar a grande mídia e deixar de vez que ela paute nossas vidas.

*Extraído de Cinegnose

Mídia e democracia

TeleSur: a revolução e o que veio depois*

Aram Aharonian


TeleSur é um dos projetos mais importantes da última década na América Latina. Apadrinhado pela Revolução Bolivariana e pelo presidente Hugo Chávez, o canal de notícias de tornou a primeira tentativa séria de liberação audiovisual e de descolonização midiática, talvez não só na América Latina. Nesta sua primeira década de vida, esse projeto revolucionário enfrentou muitas dúvidas e debates – que se acentuaram nas últimas semanas, quando as redes sociais discutiram a celebração dos seus dez anos. Vejamos alguns fatos importantes relacionados à história do canal:

– TeleSur surgiu como um projeto estratégico orientado a criar uma resposta ao relato jornalístico hegemônico das empresas de comunicação, que replica a visão de continente gerada do Norte. Para isso, era preciso a criação de um canal multi estatal latino-americano. A ideia era cristalizar aquele sonho acariciado durante anos por jornalistas e trabalhadores ligados à cultura na região, de oferecer a imagem e a voz da América Latina para todo o mundo, e, principalmente, ver o mundo a partir de uma perspectiva própria.

– A partir de então, pela primeira vez, havia um espaço público multi estatal de televisão, para difundir uma realidade latino-americana que era, em grande medida, invisibilizada, ocultada, ignorada ou minimizada pelos grandes meios de comunicação dos países desenvolvidos, e inclusive pelos meios comercias da região.

– Com a existência de uma alternativa ao relato hegemônico, novos apoiadores foram se somando à tela, aqueles que durante muitos anos não haviam tido voz nem imagem começaram a informar e ser informados. 

– Uma das ideias fundadoras do projeto foi a de que a TeleSur pudesse servir de ponte entre os povos do continente. Como dizia um documento do canal: se vemos, nos conhecemos, se nos conhecemos, nos respeitamos, se nos respeitamos, aprendemos a gostarmos uns dos outros, e esse último é o primeiro passo para nos integrarmos. Se a integração é o propósito, a TeleSur é o meio.

– O projeto do canal TeleSur não consistia em fazer uma CNN latino-americana ou de esquerda, mas sim de revolucionar a televisão com um maior rigor jornalístico, veracidade, qualidade e entretenimento, informação e formação de cidadania. E, junto com o projeto da televisão, transitava outro ainda mais importante: a da Indústria Latino-americana de Conteúdos, que garante material novo – partindo do pressuposto de que podemos ver-nos com nossos próprios olhos – para TeleSur e todas as emissoras que foram surgindo. Esse projeto era (e continua sendo) imprescindível! Hoje, os processos de democratização da comunicação em nossos países permitiram o surgimento de novas frequências… que, em geral, repetem os mesmos conteúdos do inimigo.

– Os documentos preparatórios da televisora multi estatal incluíram a investigação diversa e plural da identidade latino-americana, e nessa tarefa encontraram algumas peculiaridades: a informalidade do latino-americano, o uso coloquial da linguagem e seu senso de humor transversal.

– A TeleSur demonstrou que era possível sim fazer um canal de alcance massivo, que mostrasse a nossa idiossincrasia, nossas realidades, nossas lutas e nossas ânsias. Que nos mostrasse tal qual somos, em toda a imensidade da nossa diversidade étnica e cultural, em toda a pluralidade da região. Lamentavelmente, o alcance da TeleSur sempre esteve limitado, por ser um canal satelital, e haver optado por enaltecer o seu caráter de canal informativo: sua criação, que poderia ter sido massiva como se esperava, lamentavelmente foi frustrada por essas problemáticas, e talvez pelo desinteresse ou pela falta de conhecimento para solucioná-las.

– Quem mais teve que se adaptar a essa nova mensagem alternativa foi a CNN En Español, que depois de 10 anos de ocultamento e invisibilização de negros, índios e movimentos sociais, teve que começar a mudar sua agenda, quando percebeu que já não era transmissor exclusivo das mensagens: por exemplo, transmitiu a cerimônia indígena de posse presidencial de Evo Morales, não pode ignorar os golpes de estado em Honduras e no Paraguai, entre outros fatos.

– Um funcionário de TeleSur conta que o canal tinha uma audiência de mais de 460 milhões de pessoas… potencial. É difícil saber (por ser somente retransmitido através de cabo) a quantidade real de gente que vê um canal que, por ser eminentemente noticioso, é vítima fácil do zapping e pouco propenso a lealdades permanentes, apesar da sintonia política com os espectadores ou a preferência de alguns por programas específicos. A TeleSur é difundido na Venezuela por quatro canais UHF. No Equador, por cinco UHF, 13 canais via satélite e uma dúzia de operadoras de cabo – também pode chegar através de operadoras estrangeiras, através de assinatura.

– Contudo, vários jornalistas fundadores de TeleSur testemunharam as seguintes realidades críticas:

a) falta convicção sobre o que significa a democratização, sobre como garantir a democratização da palavra e da imagem, para que todos sejam protagonistas, sem necessidade de intermediários;

b) a agenda informativa é reativa à gerada pelos meios hegemônicos – e, portanto, dependente da agenda do inimigo);

c) se a maior parte das imagens dos noticiários são produzidas por duas cadeias multinacionais de informação, dificilmente haverá imagens dos fatos que envolvam a visão dos mais pobres e dos movimentos sociais;

d) existe uma prioridade em dar cobertura aos presidentes da região, o que acaba tirando protagonismo dos movimentos sociais;

e) deveria servir para resgatar a memória dos nossos povos, e não somente com documentários nostálgicos ou denunciantes, mas também com programas que estimulassem a reflexão sobre essa memória e o debate sobre para onde caminhamos. Um povo que não sabe de onde vem dificilmente saberá para onde vai.

– Muitas vezes se perde de vista aqueles que devem ser os sujeitos, os protagonistas das nossas histórias, e na louca ideia de competir (inseridos numa dinâmica capitalista), o canal acaba seguindo a agenda informativa dos meios hegemônicos. Não basta entrevistar os líderes dos movimentos sociais para promover suas lutas, é preciso explicar as razões delas, como funcionam, o porquê de lutar. Dando voz e imagem aos verdadeiros protagonistas, fazendo uma televisão realmente democrática, onde todos possam se expressar, não somente os representantes. Onde as pessoas se sintam identificada com as histórias narradas. Uma televisão que priorize claramente o protagonismo popular, como diria Chávez.

– Portanto, a TeleSur não aplicou totalmente sua própria fórmula de permitir que nos vejamos com nossos próprios olhos para poder ser um reflexo, espelho da nossa gente, e segue imitando o formato anglo-saxão de se vestir e discurso padronizado internacionalmente. Enquanto isso, CNN En Español, passou a ter apresentadores com mangas arregaçadas, conversação sobre as notícias tirando o peso da formalidade, e até com um toque de humor em algumas passagens, resgatando nossa investigação sobre a informalidade do latino-americano, o uso coloquial da linguagem e seu senso de humor como traço importante da identidade regional.

– Muitos “especialistas” chegaram oferecer assessoria ao canal (talvez atraídos pela possibilidade de acesso aos petrodólares), mas quase sempre com a ideia de que a comunicação alternativa significava comunicação marginal, enquanto TeleSur aposta na massificação da informação, para que essa possa chegar às grandes maiorias. Disputar a hegemonia. Alguns dos que chegaram tinham boa fé, outros tentaram impedir que o projeto fosse uma realidade. Talvez acreditavam que aquilo que eles não puderam, não souberam ou não quiseram fazer na Europa, não devia ser feito nestes países subdesenvolvidos… Foram fortes as pressões contra Chávez para que desistisse do projeto. E agora sobre Maduro, para abandoná-lo.

– Um Comitê de Assessores, com interessantes propostas, foi desmantelado para dar lugar a assessores e capacitadores de empresas comerciais europeias, com enormes custos e perda de sentido real à televisora. 

– Sem dúvidas, o processo de digitalização da televisão em nossos países pode ajudar a TeleSur a ser incluído nas plataformas de televisão digital, o que pode fazer com que o canal ganhe mais audiência, mas seria mais importante que os novos canais disponham dos conteúdos produzidos por TeleSur (e por muitas outras emissoras da região) para difundir esse material, superando os obstáculos capitalistas dos direitos de transmissão. E que a TeleSur aproveite esse acervo audiovisual que se está criando, para se transformar, como era previsto, numa janela importante para a difusão de conteúdos latino-americanos e caribenhos.

– TeleSur não é uma cadeia de televisão, como costumam definir os meios hegemônicos, é somente um canal, que deve responder a uma empresa estatal latino-americana, e que foi se burocratizando, ao insistir em copiar os modelos, em substituir o conselho assessor pelo caro assessoramento de empresas capitalistas europeias, em confundir a linha editorial com consignas.

– Inclusive a equipe que se formou no início, com uma certa “mística telesurenha”, foi desmantelada e substituída por profissionais de meios privados, que trouxeram sua cultura, seus vícios e se desinteresse pelo projeto.

– O “temor” de que se transformasse num meio de propaganda sempre existiu, mesmo antes da estreia do canal, quando o projeto foi apresentado em diferentes foros. Connie Mack, congressista republicano da Flórida, se atreveu a qualificar o TeleSur como “uma ameaça para os Estados Unidos”, porque, segundo ele, “sua existência pode minar o equilíbrio entre os poderes no hemisfério ocidental”, em declaração feita antes que o canal emitisse sua primeira programação. A Câmara de Representantes não duvidou em aprovar, em 20 de julho de 2005, uma emenda que autoriza o governo estadunidense a iniciar transmissões de rádio e televisão que ofereçam aos venezuelanos uma fonte de notícias precisa, objetiva e completa”, demostrando assim uma arrogância colonial descomunal.

– Obviamente, o projeto original não permitia que TeleSur se tornasse um canal propagandístico, ou que servisse à agenda política de algum governo. Porém, sitiados pelos problemas políticos surgidos na região, sua condução terminou não equilibrando a informação de cada país da região. Muitas vezes, pareceu ser mais um canal da Venezuela para o exterior, que uma emissora latino-americana e latino-americanista.

– Todo meio de comunicação tem uma linha editorial, seja ele estatal, público, privado, popular. Nenhum meio é objetivo, nem imparcial, nem neutro, ainda que se disfarce de objetivo – como muitas vezes acontece – para impor seus interesses políticos, econômicos ou religiosos. TeleSur também tinha sua linha editorial bem definida, mas ao não entender bem o que significa a batalha das ideias, muitas vezes acabou por flertar com os refrões, o que lhe valeu o rótulo de propagandístico. Como em todos os meios, os chefes são os que decidem que temas devem se cobertos, qual o enfoque, que fontes consultar. Não há muitas possibilidades de propor temáticas diferentes, já que não existe uma agenda própria, mas basicamente uma postura reativa, de contestar a agenda hegemônica.

– Não existe uma só visão, uma só leitura. Mas sim uma decisão de ver a América Latina com olhos latino-americanos, de visibilizar os processos que nossos povos viviam (e vivem), de contextualizar a informação, de ter uma visão alternativa – contra-hegemônica – à dos meios comerciais, das televisoras e agências europeias e estadunidenses, à mensagem e à imagem uniformizadas, no caminho de construir uma nova hegemonia, como adiantava Antonio Gramsci. Lamentavelmente, o discurso internacional está cheio de consignas, de golpes baixos, e carece de racionalidade, debate de ideias, construção de novas subjetividades e imaginários que ajudem à construção de novas democracias e novas sociedades.

– Durante décadas, os latino-americanos nacionalistas e/ou simpatizantes da esquerda se dedicaram a um denuncismo que parecia perpétuo. Conseguiram verdadeiros doutorados em denunciologia e choramingo. Poucas vezes mostrou alternativas às imposições dos regimes neoliberais: se conformam com denunciar, assumindo o lugar de vítimas. Nos últimos anos isso tem mudado. Agora, em muitos países da América Latina, o cidadão passou a ser sujeito da política (já não objeto), consciente de seus direitos, e vai assumindo a necessidade de passar da etapa de mais de 520 anos de resistência a uma etapa de construção de novas sociedades, baseadas numa democracia participativa, onde o cidadão seja o protagonista.

– E não mostrar essas realidades é o pecado. Existe muito a se informar, sobre o que fazemos, o que propomos, o que construímos o que sonhamos. Existe uma urgente necessidade de impor uma agenda informativa e política própria, sem perder tempo reagindo permanentemente às campanhas do inimigo. Ser reativo e não proativo dá enormes vantagens ao inimigo, que é quem impõe a temática e as regras do jogo. Ser reativo é ser, de alguma forma, cúmplice do inimigo.

Tradução: Victor Farinelli

*Extraído de Carta Maior

Nota da Plurimus: a partir desta semana disponibilizamos conexão para a TeleSur. O acesso pode ser feito pela barra lateral direita na parte superior do blog.

quinta-feira, 30 de julho de 2015

Público e Privado

Estado vs. Mercados: uma falsa dicotomia*


Mariana Mazzucato**
Caetano C.R. Penna***


O debate sobre os papéis relativos do Estado e do mercado em economias capitalistas tende a oscilar ao longo do tempo nas mentes e nos corações da opinião pública e dos decisores de políticas públicas: os períodos em que o Estado é defendido por seu papel no desenvolvimento econômico são sempre substituídos por um ataque à sua intervenção no “bom funcionamento” de mercados. Foi assim ao longo do século XX (ver REINERT, 2009, para uma análise de como as oscilações deste pêndulo estão ligadas a mudanças na agenda de investigação predominante da economia). E é isso o que aconteceu desde a mais recente crise financeira global e da recessão econômica: um breve período logo após a sua erupção, quando era quase um consenso que o Estado tinha um papel fundamental a desempenhar na promoção do desenvolvimento e do crescimento através da política industrial, foi rapidamente apreendido por aqueles que diziam o contrário. A austeridade tornou-se o prato do dia, enquanto as políticas industriais ativas transformaram-se no modismo da última estação.

O Brasil, que foi um retardatário na adoção de políticas neoliberais na década de 1990, chegou novamente atrasado no baile: a austeridade só agora é a principal agenda econômica do país. E com ela vem o ataque usual às instituições do Estado – agências, empresas, bancos – que, no Brasil, foram responsáveis por permitir que as poucas áreas de competitividade internacional surgissem (incluindo a “conquista do Cerrado” pelo agronegócio, a área aeroespacial, a exploração de petróleo em alto-mar, dentre outros).

De fato, em todas as economias capitalistas, o Estado fez e continua a fazer o que os mercados não fazem (MAZZUCATO, 2014). Tome-se o setor financeiro, por exemplo. Um sistema financeiro que funcione bem deve financiar o consumo e a produção, promovendo o crescimento econômico e, assim, um aumento do nível de vida (bem-estar) da população. No entanto, já há alguns anos o setor não tem financiado investimentos em inovação ou a economia real, mas sim financiado ativos financeiros. Desde os anos 1970, inovações financeiras juntamente com desregulamentação de mercados tornaram mais fácil obter lucros de investimentos especulativos em ativos financeiros (EPSTEIN, 2005; KRIPPNER, 2005; DORE, 2008; LAZONICK, 2013). No Brasil, a questão assume uma forma idiossincrática: devido ao alto rendimento, à curta maturidade e ao baixo risco relativo de títulos do Tesouro, bancos comerciais e de investimento preferem comprar dívida governamental a financiar investimentos de longo prazo na indústria, em infraestrutura, ou em inovação – que são ou capital-intensivos ou altamente incertos (ou ambos).

Investimentos produtivos exigem ‘paciência’ na forma do que chamamos em outro lugar de “capital paciente e comprometido com o longo prazo” (MAZZUCATO, 2013; MAZZUCATO e PENNA, 2015). Nos EUA, capital paciente é fornecido através da atividade de diferentes instituições públicas como Defense Advanced Research Projects Agency (Darpa), National Institutes of Health (NIH), National Science Foundation (NSF), National Aeronautics and Space Administration (NASA), os programas de Small Business Innovation Research (SBIR), a iniciativa nacional de nanotecnologia, dentre muitos outros. Um papel ativo do Estado é também encontrado em países como Alemanha, Finlândia, Israel, e, claro, a China, mas em cada país os tipos de instituições públicas responsáveis pelo fornecimento de financiamento paciente assumem diferentes formas. No Brasil, ele vem de bancos públicos, nomeadamente, BNDES, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal (ver MAZZUCATO e PENNA, 2014, para uma análise dos papéis desempenhados pelos bancos de desenvolvimento estatais), mas também de empresas estatais. Sim, suas operações podem e devem ser melhoradas. Mas atacar e diminuir a importância destas instituições estatais é ser desonesto com a história.

O exemplo da Embraer (BERNARDES, 2000; CASSIOLATO et al, 2002; FORJAZ, 2005) ilustra a importância do Estado como agente de liderança na promoção da mudança técnica, industrialização e desenvolvimento, bem como o seu papel de principal “financista paciente.” A Embraer foi fundada em 1969 a partir de uma visão concebida pelo Estado brasileiro para criar uma indústria aeroespacial a partir do zero. O sucesso da Embraer após a sua privatização, em 1994, é frequentemente reconhecido como um exemplo paradigmático da superioridade do setor privado sobre o Estado. É verdade, as finanças da empresa estavam em condições terminais no início da década de 1990 (muito por conta de como as empresas estatais brasileiras foram usadas na década de crise de 1980). Mas suas competências tecnológicas básicas, que foram a chave para o sucesso dos jatos regionais em mercados globalizados, foram adquiridas muito antes, no final da década de 1970, quando era controlada pelo Estado e foram firmados acordos de cooperação com outros países, como a Itália. Além disso, quando a Embraer assinou um de seus primeiros grandes contratos de venda, com a American Airlines (AA), a operação não foi financiada por bancos privados, que fugiam de seu perfil de risco e de longo prazo, mas pelo BNDES. Foi esse acordo com AA que colocou em evidência a Embraer, e a ajudou a se tornar um dos líderes mundiais no mercado de jatos regionais.

A importância das empresas estatais e das finanças públicas pacientes não é exclusiva de países em desenvolvimento. De fato, outro exemplo da indústria aeroespacial ilustra bem este ponto. Em um país onde, na imaginação do público, se pratica o liberalismo por excelência – a Grã-Bretanha – foi o apoio do Estado que salvou a Rolls-Royce (LAZONICK e PRENCIPE, 2005). Custos crescentes oriundos de atividades de pesquisa e desenvolvimento (P&D) para um novo motor de avião colocaram a icônica empresa em falência. Em vez de deixar a empresa morrer, o governo britânico fez o que a City londrina não fez: deu o seu apoio, através de uma nacionalização inicial (em 1971; logo em seguida o Estado britânico se desfez da divisão de automóveis para concentrar na área aeroespacial) e, em seguida, através de uma sequência de empréstimos pacientes. Em 1987, a empresa estava forte o suficiente para ser privatizada. A Rolls-Royce logo se tornaria uma das líderes no mercado global para motores aeroespaciais.

Conforme um de nós demonstra (MAZZUCATO, 2013), o próprio Vale do Silício na Califórnia (EUA) é em si o resultado de uma intervenção maciça do Estado. Cada tecnologia por trás do iPhone (e de celulares inteligentes em geral) foi financiada diretamente por diferentes organizações governamentais, principalmente no Departamento de Defesa dos Estados Unidos, cujo modelo foi copiado mais tarde também no Departamento de Saúde e no Departamento de Energia. De fato, a atual revolução do gás de xisto através da técnica de fraturamento hidráulico é o resultado de décadas de investimentos pelo Departamento de Energia dos EUA, que também foi responsável por fornecer o financiamento paciente para Elon Musk (o novo herói do Vale do Silício) para o carro Tesla S.

Na verdade, as empresas de Musk – Tesla Motors, SolarCity, e SpaceX – são muito competentes em surfar a onda de tecnologia desenvolvida e financiada pelo Estado e em obter a ajuda estatal. Juntos, esses empreendimentos de alta tecnologia beneficiaram-se de 4,9 bilhões de dólares de governos locais, estaduais e federal, incluindo subvenções, incentivos fiscais, investimentos na construção de fábricas, e empréstimos subsidiados. O governo dos Estados Unidos também forja demanda – cria o mercado – para os seus produtos, através da concessão de créditos fiscais e descontos para os consumidores de painéis solares e veículos elétricos, e assinando com SpaceX 5,5 bilhões dólares em contratos com a NASA e a Força Aérea dos EUA. Embora este apoio governamental tenha sido recentemente o foco de artigos e notícias (ver HIRSCH, 2015), o que passa relativamente despercebido é o fato de que Tesla Motors, SolarCity, e SpaceX também se beneficiarem de investimentos diretos em tecnologias radicais pelo Departamento de Energia dos EUA, como no caso de tecnologias de bateria e painéis solares, e pela NASA, no caso de tecnologias de foguetes. Nada disto deve ser visto como surpreendente ou injustificado. Pelo contrário, o Estado está por trás do desenvolvimento da maioria das tecnologias-chave que são posteriormente integrados pelo setor privado em inovações revolucionárias. Além disso, essas empresas estão ajudando a empurrar a fronteira da inovação através do desenvolvimento posterior de tecnologias concebidas e financiadas pelo Estado, e, crucialmente, contribuindo para uma transição para uma economia ambientalmente mais sustentável.

Mas como são investimentos públicos como estes – e de fato o papel do Estado na economia – justificados e analisados por economistas? Normalmente, eles afirmam que o papel do Estado na economia é o de corrigir falhas de mercado: casos em que os mercados competitivos falham na alocação eficiente de recursos (ARROW, 1962; STIGLITZ, 1989; MEDEMA, 2003; LEDYARD, 2008). Por exemplo, no caso de bens públicos – aqueles que podem ser consumidos por todos, como o ar limpo ou grandes infraestruturas – os mercados não alocam recursos para sua produção. Nesses casos, seria justificável o Estado intervir na economia para garantir a sua produção. No entanto, ainda que convincente, este arcabouço das falhas de mercado está associado a muito limitadas análises de custo-benefício dos investimentos públicos, que buscam medir se os benefícios que se obtêm a partir deles cobrem eventuais custos (incluindo custos de oportunidade) (MAZZUCATO, 2015).

Há três problemas nessas análises: primeiro, é um exercício analítico estático do processo intrinsecamente dinâmico de desenvolvimento econômico e de mudança técnica, que é cumulativo e se desenrola em direções imprevisíveis (quem poderia dizer que as tecnologias desenvolvidas para o exército dos EUA acabariam nas mãos de milhões de usuários ao redor do mundo sob a forma de smartphones?). Em segundo lugar, tais análises requerem estimar cada custo e benefício em valores monetários, o que não é fácil mesmo se for possível e desejável (o que é o valor monetário de ar limpo ou de empregos altamente qualificados?). Em terceiro lugar, análises de custo-benefício podem levar a um resultado semelhante ao que motivou os investimentos em primeiro lugar: a falta de investimento em projetos-chave, devido a elevados riscos e incertezas vis-à-vis outras oportunidades de investimento existentes. Deveria o Estado agir como um investidor privado e aplicar os seus recursos na melhor oportunidade de investimento alternativo (no caso do Brasil, investindo em títulos do Tesouro de alto rendimento e baixo risco)? Bem, se fosse o caso, hoje não teríamos uma Embraer, uma Rolls-Royce, e, possivelmente, uma Apple (uma vez que a maioria das tecnologias de informação e comunicação não existiria) – com todas as consequências em termos de perdas de emprego, capacidade tecnológica, e bem-estar.

O arcabouço das falhas de mercado não é adequado para justificar e analisar casos reais em que o Estado agiu empreendedoramente (MAZZUCATO, 2015). Quando o Estado concebeu, deu forma e criou novos mercados – e não “corrigiu” os já existentes. Ou quando investiu em áreas devido ao interesse público, sejam elas a industrialização e mudança técnica ou de segurança nacional e capacitação tecnológica. Nenhum país jamais conseguiu desenvolver-se e industrializar-se baseando suas decisões de investimentos públicos na avaliação de “falhas de mercado”, o que levaria a investimentos minguados e concentrados no máximo em P&D à montante (e não em toda a cadeia de inovação – pesquisa básica, pesquisa aplicada, e ainda no financiamento de empresas de alto risco – como aconteceu no Vale do Silício, por exemplo). Ignorar esta história significa usar o arcabouço das falhas de mercado e a associada dicotomia “Estado vs. mercados” para fins políticos, não econômicos. Sucesso nas economias capitalistas cada vez mais depende de parcerias sinérgicas entre os setores público e privado. Como os exemplos acima mostram, ambos têm papéis fundamentais a desempenhar no desenvolvimento econômico de um país: Embraer e Rolls-Royce desenvolveram as suas competências tecnológicas guiadas pela mão visível do Estado, mas alcançaram sucesso no mercado global sob gestão privada, depois de suas respectivas privatizações. Apple, Tesla, Solarcity, SpaceX são exemplos-chave da capacidade para inovação das empresas privadas com acesso a tecnologias inovadoras financiadas publicamente e ao capital paciente estatal. Os países mais bem-sucedidos na economia global têm o que se poderia chamar de um ecossistema simbiótico de inovação e de produção, em que agentes públicos e privados se beneficiam e lucram de ações e interações mútuas. Nestes casos, a iniciativa privada não “captura” o Estado, nem o Estado se torna uma ferramenta para favores políticos.

A questão, portanto, não é quem deve liderar e guiar a economia, o Estado ou o mercado (setor privado). Ambos são cruciais. A questão é como promover essas parcerias sinérgicas. Ainda que não haja receita mágica, uma coisa é certa: quanto mais ousado for o Estado em sua iniciativa estratégica, menos provável que seja capturado pela iniciativa privada. Isso significa definir as principais “missões” societais – desde “colocar um homem na lua”, passando por garantir a segurança nacional e energética, até combater e mitigar as mudanças climáticas, por exemplo – que irão guiar as políticas públicas e ações privadas a longo prazo (MAZZUCATO e PENNA, 2015). Em vez de focar em muito duvidosos benefícios de curto prazo de um programa de austeridade – e esperar que um futuro aconteça – o Brasil estaria muito mais bem posicionado se definisse as suas missões fundamentais – e fizesse o seu próprio futuro acontecer.

Referências:

ARROW, K., 1962. Economic welfare and the allocation of resources for invention, in: Nelson, R.R. (Ed.), The Rate and Direction of Inventive Activity. Princeton University Press, Princeton, NJ:, pp. 609-626.
BERNARDES, R., 2000. Embraer: elos entre Estado e mercado. Editora Hucitec.
CASSIOLATO, J.E., BERNARDES, R., LASTRES, H., 2002. Innovation Systems in the South: a case study of Embraer in Brazil. UNCTAD-DITE investment policy and capacity-building branch. New York and Geneva, United Nations.
DORE, R., 2008. Financialization of the Global Economy. Industrial and Corporate Change 17, 1097-1112.
EPSTEIN, G.A., 2005. Financialization and the world economy. Edward Elgar Publishing.
FORJAZ, M.C.S., 2005. The origins of Embraer. Tempo Social 17, 281-298.
HIRSCH, J., 2015. Elon Musk’s growing empire is fueled by $4.9 billion in government subsidies, Los Angeles Times, 30 de Maio.
KRIPPNER, G.R., 2005. The financialization of the American economy. Socio-Economic Review 3, 173-208.
LAZONICK, W., 2013. The Financialization of the U.S. Corporation: What Has Been Lost, and How It Can Be Regained. Seattle University Law Review 36, 857-909.
LAZONICK, W., PRENCIPE, A., 2005. Dynamic capabilities and sustained innovation: strategic control and financial commitment at Rolls-Royce plc. Industrial and Corporate Change 14, 501-542.
LEDYARD, J.O., 2008. Market Failure, in: DURLAUF, S.N., BLUME, L.E. (Eds.), The New Palgrave Dictionary of Economics. Palgrave Macmillan, Basingstoke.
MAZZUCATO, M., 2013. Financing innovation: Creative destruction vs. destructive creation. Industrial and Corporate Change 22, 851-867.
MAZZUCATO, M., 2014. O Estado Empreendedor: Desmascarando o mito do setor público vs. setor privado. Cia. das Letras, São Paulo.
MAZZUCATO, M., 2015. Beyond market failures: shaping and creating markets for innovation-led growth, in: Mazzucato, M., Penna, C.C.R. (Eds.), Mission-Oriented Finance for Innovation: New Ideas for Investment-Led Growth. Rowman & Littlefield, London, pp. 147-159.
MAZZUCATO, M., PENNA, C.C.R., 2014. Beyond Market Failures: State Investment Banks and the ‘Mission-Oriented’ Finance for Innovation. SPRU Working Paper Series 2014-21.
MAZZUCATO, M., PENNA, C.C.R., 2015. Mission-Oriented Finance for Innovation: New Ideas for Investment-Led Growth. Rowman & Littlefield, London.
MEDEMA, S.G., 2003. The economic role of government in the history of economic thought, in: Samuels, W.J., Biddle, J.E., Davis, J.B. (Eds.), A companion to the history of economic thought. Blackwell, Oxford, pp. 428-444.
REINERT , E.S., 2009. Financial Crises, Persistent Poverty, and the Terrible Simplifiers in Economics: A Turning Point Towards a New ‘1848 Moment’, Working Papers in Technology Governance and Economic Dynamics. The Other Canon Foundation & Tallinn University of Technology.
STIGLITZ, J.E., 1989. Markets, Market Failures, and Development. The American Economic Review 79, 197-203.

**Professora de Economia da Inovação da Science Policy Research Unit (SPRU) da Universidade de Sussex e autora de O Estado Empreendedor: Desmascarando o mito do setor público vs. setor privado (2014, Cia. das Letras).
***Professor do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro e pesquisador associado da Science Policy Research Unit (SPRU) da Universidade de Sussex.

quinta-feira, 23 de julho de 2015

Fórum Social Mundial

Outro Mundo Necessário


Boaventura de Sousa Santos


Escrevo de Tunis, onde participei no Fórum Social Mundial que se realizou pela segunda vez consecutiva no país que iniciou a “primavera árabe”, uma semana depois do atentado terrorista que matou 21 pessoas. O primeiro fato notável é que mais de 50.000 mil participantes, vindos de 121 países, não se deixaram intimidar pelos extremistas e mantiveram a sua participação como testemunho de solidariedade para com o povo tunisino, o país do Magreb que realizou com mais êxito a transição da ditadura para a democracia. Um país pobre em recursos naturais, cuja maior indústria é o turismo, está no centro de uma região que serviu de berço ao capitalismo e sempre foi dominada pelo comércio de recursos estratégicos, do ouro no século XIV ao petróleo nos nossos dias.

A riqueza da sua diversidade cultural é impressionante, e está presente tanto na arte e na política, como na sociedade e no quotidiano. Aqui se amalgamaram ao longo de séculos a cultura cartaginesa (povos berberes e fenícios), romana, cristã, árabe-muçulmana (do Médio Oriente e da Península Ibérica), otomana, francesa. Aqui nasceu e escreveu um dos fundadores das ciências sociais modernas, Ibn Khaldun, (1332-1406). Dez séculos antes, bem perto daqui, na Hipona romana (hoje a cidade de Annaba, na Argélia) nascera Santo Agostinho, para além de tudo o mais, um autor precoce do modernismo utópico e da crítica anti-colonial.

Hoje, e talvez para surpresa de muitos, as mulheres são 31% dos deputados no parlamento tunisino e, segundo os observadores mais atentos, são as mulheres quem têm defendido mais eficazmente a transição democrática na Tunísia. É, pois, difícil escapar à magia deste lugar. Tal como no primeiro encontro do FSM realizado em Tunis, em 2013, o tema central foi a dignidade, um conceito amplo e de vocação intercultural onde cabem os direitos humanos de raiz ocidental e as concepções de respeito pelo ser humano, suas comunidades e a própria natureza concebida como um ser vivo e fonte de vida próprias das cosmovisões indígenas e camponesas, bem como do Islão corânico. Dentro deste tema geral couberam os mais diversos debates sobre as três fontes principais da dominação e da opressão no nosso tempo – capitalismo, colonialismo (racismo, xenofobia e islamofobia) e patriarcado – debates que ora se centraram na denúncia, ora na proposta de alternativas.

Ao longo dos quinze anos do FSM, alguns temas foram ganhando mais centralidade: o avanço aparentemente irresistível da versão mais anti-social do capitalismo (o neoliberalismo assente no capital financeiro), atingindo agora a Europa que se julgava protegida; a escandalosa concentração de riqueza – segundo dados da respeitada Oxfam, as 85 pessoas mais ricas do mundo têm tanta riqueza quanto a metade mais pobre a humanidade (3,5 bilhões de pessoas); a destruição ambiental devido à exploração sem precedentes dos recursos naturais; a expulsão de camponeses das suas terras ancestrais para dar lugar à agricultura industrial e ao açambarcamento de terra em larga escala que ela envolve; a crescente invasão de sementes transgênicas e de produtos geneticamente modificados (da fruta ao eucalipto) que retira aos agricultores o controle das sementes, destrói a biodiversidade, mata as abelhas e causa danos à saúde humana; o crescimento da violência política e a necessidade de denunciar tanto o terrorismo como o terrorismo de Estado, que sempre tem recorrido a extremistas para prosseguir os seus fins; o trágico agravamento das condições de vida dos palestinos, sujeitos à forma mais violenta e selvagem de colonialismo por parte do estado de Israel; a luta heroica do povo saharaui pela sua independência e libertação do colonialismo marroquino.

Quinze anos depois do primeiro encontro do FSM, é tempo de fazer um balanço. O Fórum permitiu aos movimentos sociais de todo o mundo conhecerem-se melhor e articularem as suas lutas, de que os melhores exemplos serão talvez a Via Campesina e a Marcha Mundial da Mulheres. Mas a verdade é que o mundo está hoje mais violento, mais injusto e mais desigual, e muitos (eu próprio incluído) pensam que o FSM se devia ter renovado ao longo destes anos e tornado mais interventivo na formulação de propostas e de políticas. Uma coisa é certa, o FSM tem demonstrado que, mesmo se alguns duvidam de que um outro mundo é possível, um outro mundo é urgentemente necessário.


*Extraído de Outras Palavras