quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Desenvolvimento ou dependência?

Ilegalidades e ilegitimidades da Dívida Pública Brasileira*


Daniel Roedel**


O processo acelerado da acumulação do capital, proporcionado pela globalização neoliberal, tem intensificado as crises e diminuído os períodos em que elas ocorrem, tornando também globais seus impactos. No entanto, mesmo com as crises intensas e acirradas, o capitalismo continua dominando o pensamento e orientando a ação política. Na atual fase de hegemonia do pensamento neoliberal, em que se manifestam concepções que valorizam a liberdade individual, o livre-mercado e o livre-comércio, impõem-se reformas aos Estados, por meio da desregulamentação e da adoção dos princípios oriundos da gestão privada.

A dependência em relação a este modelo é reforçada pelas dívidas públicas dos países, fato que repercute na composição dos orçamentos públicos, que reservam elevados recursos para o pagamento de dívidas e serviços. Para garantir a efetiva alocação de recursos é assumida uma disciplina fiscal e uma austeridade na gestão pública para aumentar a receita e se obter superavits primários.

O Brasil tem sido um exemplo dessa conduta. A cada ano o orçamento federal reserva aproximadamente 50% para o pagamento de juros e serviços da dívida pública, ou seja, recursos diretamente comprometidos com o grande capital. Além disso, ocorre também um avanço desses capitais rumo aos percentuais restantes do orçamento público, uma vez que serviços públicos como educação, saúde e segurança são assediados por privatizações por meio de financiamento direto ou pela terceirização para as Organizações Sociais (OS).

O exemplo brasileiro se coaduna e reforça o argumento de Altvater (2010) acerca do papel desempenhado pela Troika[1] na gestão da crise Europeia de 2008, na qual a austeridade recomendada remeteu a uma ditadura financeira e colocou em segundo plano, para os governos, os compromissos sociais essenciais para a superação da crise. A prioridade dos orçamentos foi o cumprimento dos compromissos de dívida assumidos com os credores internacionais, que tiveram o apoio de instituições multilaterais.

Se tais políticas de austeridade vêm impondo restrições à ação social de governos em favor do capital, antes de representarem uma pressão para o resgate do que entendem por débitos, cumprem o papel de renovar, a cada “acordo” de negociação, a relação de dependência dos países devedores com os credores privados. É, portanto, uma situação em que a dívida se destina a “regular o comportamento do devedor” (ZIZEK, 2015, p. 145-146).

Esse papel do Estado é favorecido pelo argumento ideológico que o caracteriza como ineficiente, péssimo gestor e incapaz de prover adequadamente os serviços públicos. Sob essa ótica, sua reconfiguração passa pelo enxugamento da estrutura, privatização de empresas, incorporação de princípios de gestão adotados pela iniciativa privada, e até mesmo pelo financiamento dos capitais para assumirem serviços públicos. Desse modo, a gestão do Estado se integra à criação e circulação do capital e aos fluxos monetários, ao mesmo tempo em que, orientado pelos princípios da gestão privada, suas iniciativas buscam os mesmos resultados de monetários, mercantis e privatistas (HARVEY, 2011, p. 47-48).

Porém, o argumento da ineficiência do Estado desconsidera o relevante papel que este desempenhou no processo de industrialização de países desenvolvidos, inclusive por meio de financiamentos, e do planejamento e organização, que historicamente corrigiram os rumos desorientados dos mercados livres (HARVEY, p. 63).

A crise recente dos mercados foi mais uma evidência desse financiamento público à iniciativa privada. É a sociedade quem paga os custos decorrentes de mercados desregulamentados e de livre especulação financeira, características do modelo de acumulação capitalista que contou ainda com uma tecnologia que possibilita a realização de operações em instituições localizadas em diversas partes do mundo, principalmente em paraísos fiscais (FATTORELLI, 2013, p. 15-16).

A subordinação dos governos e de instituições multilaterais em favor do setor financeiro se evidencia mais ainda no critério adotado para a liberação de recursos para a superação da crise, que garante aos bancos a cobrança de juros elevados e obriga os países tomadores a seguirem receituários de ajuste econômico que acentuam os problemas sociais decorrentes do próprio salvamento de bancos e outras instituições financeiras. Trata-se, portanto, de um sistema de endividamento público que transfere recursos públicos para o sistema financeiro e perpetua o endividamento público tanto interno quanto externo (FATTORELLI, 2013b, p. 50).

No Brasil, no tratamento dado à crise de 2008, podem ser destacados alguns aspectos que reforçam esse papel, quando “algumas grandes empresas e instituições financeiras, que já apostavam no mercado de derivativos, contaram com forte ajuda estatal, mais especificamente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES” (FATTORELLI, 2013, p. 28).

Do mesmo modo do que foi praticado em países da Europa, recursos financeiros, originalmente destinados para áreas sociais, tem sido contingenciados em favor do cumprimento de metas de superavit primário, causando arrocho fiscal e programas de austeridade para os governos em favor do pagamento de juros ao sistema financeiro (Idem, p. 2013, p. 34), subordinando fortemente os interesses públicos à agenda dos mercados.

Assim, esse domínio dos interesses dos mercados globais provoca alterações nas estruturas de poder nacionais, deslocando-as para estruturas transnacionais e, embora ainda de modo irregular, plurinacionais (FURTADO, 1999, p. 13). Isto fortalece o poder transnacional representado por empresas, que na busca da minimização de custos e do aumento da remuneração do capital atuam em âmbito planetário.

O enfraquecimento das estruturas de poder nacionais e sua subsunção aos mercados financeiros globais enfraquece também a condição de se criar políticas sociais, essenciais principalmente em períodos de agudização das crises dos mercados, tais como nos anos recentes. Assim, as políticas sociais são transferidas para a ação filantrópica de indivíduos e instituições sociais ou para a ação de responsabilidade social empresarial.

Evidenciam-se, portanto, as limitações dos mecanismos colocados pela ordem dominante como organizadores e mediadores dessas crises, no enfrentamento e na superação das externalidades negativas que gera.

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*Texto apresentado na conclusão do curso sobre a dívida pública realizado pela ACD.
**Editor de Plurimus Ideias

Nota

1 - Comissão Europeia, Banco Central Europeu (BCE) e Fundo Monetário Internacional (FMI).

Referências

ALTVATER, Elmar. O fim do capitalismo como o conhecemos: uma crítica radical do capitalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

FATTORELLI, Maria Lúcia. Auditoria cidadã da Dívida dos Estados. Brasília: Inove Editora, 2013.

_________. Auditoria cidadã da dívida pública: experiências e métodos. Brasília: Inove Editora, 2013b.

FURTADO, Celso. O longo amanhecer: reflexões sobre a formação do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.

HARVEY, David. O enigma do capital: e as crises do capitalismo. São Paulo, SP: Boitempo, 2011.

ZIZEK, Slavoj e HORVAT, Srecko. O que quer a Europa? Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2015.