quinta-feira, 29 de março de 2012

Primavera árabe

Para Hobsbawm, protagonismo da classe média marca revoltas de 2011*

Andrew Whitehead**

Em entrevista à BBC, o historiador marxista nascido no Egito, mas radicado na Grã-Bretanha, afirma ainda que a classe operária e a esquerda tradicional - da qual ele ainda é um dos principais expoentes - estiveram à margem das grandes mobilizações populares que ocorreram ao longo deste ano.

''As mais eficazes mobilizações populares são aquelas que começam a partir da nova classe média modernizada e, particularmente, a partir de um enorme corpo estudantil. Elas são mais eficazes em países em que, demograficamente, jovens homens e mulheres constituem uma parcela da população maior do que a que constituem na Europa'', diz, em referência especial à Primavera Árabe, um movimento que despertou seu fascínio.

''Foi uma alegria imensa descobrir que, mais uma vez, é possível que pessoas possam ir às ruas e protestar, derrubar governos'', afirma Hobsbawm, cujo título do mais recente livro, Como Mudar o Mundo, reflete sua contínua paixão pela política e pelos ideais de transformação social que defendeu ao longo de toda a vida e que segue abraçando aos 94 anos de idade.

As ausências da esquerda tradicional e da classe operária nesses movimentos, segundo ele, se devem a fatores históricos inevitáveis.

''A esquerda tradicional foi moldada para uma sociedade que não existe mais ou que está saindo do mercado. Ela acreditava fortemente no trabalho operário em massa como o sendo o veículo do futuro. Mas nós fomos desindustrializados, portanto, isso não é mais possível'', diz Hobsbawm.

Hobsbawm comenta que as diversas ocupações realizadas em diferentes cidades do mundo ao longo de 2011 não são movimentos de massa no sentido clássico.

''As ocupações na maior parte dos casos não foram protestos de massa, não foram os 99% (como os líderes dos movimentos de ocupação se autodenominam), mas foram os famosos 'exércitos postiços', formados por estudantes e integrantes da contracultura. Por vezes, eles encontraram ecos na opinião pública. Em se tratando das ocupações anti-Wall Street e anticapitalistas foi claramente esse o caso.''

À sombra das revoluções

Hobsbawm passou sua vida à sombra - ou ao brilho - das revoluções.

Ele nasceu apenas meses após a revolução de 1917 e foi comunista por quase toda a sua vida adulta, bem como um autor e pensador influente e inovador.

Ele tem sido um historiador de revoluções e, por vezes, um entusiasta de mudanças revolucionárias.

O historiador enxerga semelhanças entre 2011 e 1848, o chamado ''ano das revoluções'', na Europa, quando ocorreram uma série de insurreições na França, Alemanha, Itália e Áustria e quando foi publicado um livro crucial na formação de Hobsbawm, O Manifesto Comunista, de Marx e Engels.

Hobsbawm afirma que as insurreições que sacudiram o mundo árabe e que promoveram a derrubada dos regimes da Tunísia, Egito, Líbia e Iêmen, ''me lembram 1848, uma outra revolução que foi tida como sendo auto-impulsionada, que começou em um país (a França) e depois se espalhou pelo continente em um curto espaço de tempo''.

Para aqueles que um dia saudaram a insurreição egípcia, mas que se preocupam com os rumos tomados pela revolução no país, Hobsbawm oferece algumas palavras de consolo.

''Dois anos depois de 1848, pareceu que alguma coisa havia falhado. No longo prazo, não falhou. Foi feito um número considerável de avanços progressistas. Por isso, foi um fracasso momentâneo, mas sucesso parcial de longo prazo - mas não mais em forma de revolução''.

Mas, com a possível exceção da Tunísia, o historiador não vê perspectivas de que os países árabes adotem democracias liberais ao estilo das europeias.

''Estamos em meio a uma revolução, mas não se trata da mesma revolução. O que as une é um sentimento comum de descontentamento e a existência de forças comuns mobilizáveis - uma classe média modernizadora, particularmente, uma classe média jovem e estudantil e, é claro, a tecnologia, que hoje em dia torna muito mais fácil organizar protestos.''

*Extraído de BBC Brasil.
**Do Serviço Mundial da BBC

quinta-feira, 22 de março de 2012

Revista eletrônica

Plurimus Cultura e Desenvolvimento em Revista

Daniel Roedel
 
A Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável (UNCSD) acontecerá no Brasil em junho deste ano. O evento marca o 20º aniversário da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (UNCED), de 1992, no Rio de Janeiro, e o 10º aniversário da Cimeira Mundial sobre o Desenvolvimento Sustentável (WSSD), de 2002, em Joanesburgo. É mais uma oportunidade para que chefes de Estado e de Governo negociem, decidam e se posicionem sobre a implementação de ações que efetivamente promovam um desenvolvimento sustentável do planeta. Para tanto, a mobilização da sociedade civil é imprescindível e determinante.

A próxima edição da Plurimus Cultura e Desenvolvimento em Revista terá como tema central o desenvolvimento sustentável do planeta.
 
A revista, que já obteve o ISSN (2238-1953), é uma publicação eletrônica semestral, com recorte editorial em gestão, educação, história, cultura, sustentabilidade, cidadania e desenvolvimento local.
Poderão ser enviados artigos e resenhas de livros que articulem o desenvolvimento sustentável com o recorte editorial da Plurimus Cultura e Desenvolvimento em Revista.

Os autores interessados em submeter artigos ou resenhas deverão cumprir as normas de publicação.

A edição II conterá até cinco artigos e duas resenhas de livros, além de um espaço para até dois artigos de estudantes de cursos de pós-graduação lato sensu. Estes artigos deverão ter entre 10 e 12 laudas e cumprir os demais requisitos das normas de publicação.

Os artigos serão avaliados pelo conselho editorial da revista quanto aos seguintes critérios:
  • Pertinência ao tema da edição;
  • Qualidade do texto; e
  • Adequação às normas de publicação.
 
A submissão deverá ser enviada para o email revista@plurimus.com.br em arquivo extensão .doc. O prazo desta chamada é até o dia 30 de junho de 2012.

Todos os autores serão notificados quanto ao resultado da avaliação de seus textos.

quinta-feira, 15 de março de 2012

O Estado e o Cidadão

O Pinheirinho visto pela ciência política clássica*

Luís Fernando Vitagliano

Segundo Thomas Hobbes o estado moderno deve ser como um Leviatã, com todos os poderes opressores possíveis. Detentor da força e da capacidade de submeter seus cidadãos ao poder das suas opressões. Mas um bom leitor de Hobbes vai se lembrar do contrato social ao qual até mesmo o rei deve se submeter. Todo estado moderno deve levar em consideração que os cidadãos abram mão da sua liberdade e ganhem com isso segurança. Contra a barbárie de uma guerra de todos contra todos, da sujeição do homem ao egoísmo do próprio homem, nasce o Leviatã, o estado, aquele aparato que vai impor ordem à sociedade. E mesmo nesta proposta hobbesiana de política, onde o estado é monárquico e absoluto há uma única possibilidade de desobediência civil: quando o estado não dá segurança aos seus cidadãos, os cidadãos têm o direito de questionar a autoridade do rei.

Porém, devemos entender segurança no seu sentido mais amplo: segurança alimentar, segurança civil, segurança contra ameaças internas e externas à vida dos cidadãos, e também segurança de que se pode ter uma vida plena para realizar tranquilamente o trabalho e a devoção a Deus (Hobbes era um dedicado cristão). Enfim, para resumir a teoria hobbesiana, se não é por todas essas funções exercidas pelo estado em nome da segurança, por que uma pessoa trocaria sua liberdade? Justificam-se, em consequência, as atitudes que confrontam as ações do estado, quando ele não garante condições dignas de segurança social.

John Locke, um dos pais do liberalismo moderno e talvez a principal referência clássica aos federalistas da Constituição americana defende que a propriedade privada deve ser resguardada em todos os casos. Para isso, não há exceção. A propriedade privada, fruto do trabalho e da dedicação do homem na transformação da natureza, deve ser defendida como o direito fundamental de qualquer sociedade política. Para Locke nenhum direito está acima deste. Para defender sua propriedade, uma pessoa pode até mesmo desobedecer as regras impostas pelo Estado. Todos os cidadãos têm direitos e deveres, mas nenhum direito pode se impor ao direito da propriedade, porque Locke entende que ela é fruto do trabalho e a dignidade de quem trabalha deve ser defendida a todo o custo.

E quando conquistamos propriedades ilicitamente, sem o uso do trabalho? Nem mesmo Locke defende este regime de propriedade. O estado, para ele, deve se preocupar exclusivamente com isso: as garantias das valorizações do trabalho como forma de resguardar a propriedade. Que ninguém use da força ou de poder para levar vantagens sobre ninguém e que simplesmente seja preservada a liberdade de fazer.

Dos liberais, o mais marcante cientista político clássico é Jean Jaques Rousseau. Sua obra é uma mistura de ensaios com defesas engajadas da emancipação humana. Rousseau teve influencia fundamental na Revolução Francesa e foi sem dúvidas um dos intelectuais mais lidos para a formação das noções da república moderna. No seu Discurso sobre as origens e fundamentos da desigualdade entre os homens, defende que, nas várias fases do desenvolvimento das sociedades humanas, a desigualdade começa a aparecer quando se cria a noção de propriedade privada. Neste momento os governos garantem que a divisão entre ricos e pobres preserve-se, assim como a divisão entre governantes e governados.

No Contrato Social, Rousseau não aceita que os homens entreguem sua liberdade aos dirigentes. Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Azul, Branco e Vermelho são os lemas da Revolução Francesa que colorem a bandeira daquele país e que se baseiam nas noções de pensadores clássicos como Rousseau (principalmente), Montesquieu, Diderot, d’Alembert, Voltaire etc. A ideia de república é a mesma: que o público se coloque acima dos interesses individuais. Para a filosofia política francesa, os interesses republicanos valem mais que os interesses privados.

Levando em consideração esses filósofos clássicos, há uma clara diferença entre a ciência política francesa e a saxônica. Enquanto as constituições inglesa (monárquica) e norte-americana (federalista) simplesmente versam sobre os direitos e deveres individuais, a constituição republicana francesa fala do universalismo dos direitos e das garantias básicas dos cidadãos. Pensa a sociedade de forma coletiva e universalizada, com garantias que devem sobrepor o coletivo ao individual.

O Brasil foi nitidamente influenciado pelo Estado de Direito francês onde a universalidade de direitos se impõe aos individualismos é a base da Constituição Federal. É só lembrar que a Carta Magna de 1988 foi batizada de “Constituição Cidadã”, dada a abrangência com que garantia direitos sociais aos brasileiros.

Não foi despropositado este longo exercício de memória da ciência política clássica e dos filósofos políticos. Se tomarmos esses pensadores para falar da recente crise da reintegração de posse dos moradores de Pinheirinho, nada do que se defende em relação à reintegração pode ser fundamentado.

Primeiro, o estado brasileiro tem obrigação de garantir aos cidadãos condições mínimas de direito. A tomar pela Constituição do estado republicano brasileiro, não podemos condenar comunidades que tentam, por meio da desobediência civil, garantir seu direito a moradia, educação e saúde. Hobbes poderia dizer que no Brasil o dever fundamental do estado em garantir segurança aos seus cidadãos não é cumprido e isso os desobriga de cumprir com o contrato social.

Locke, sobre o caso de Pinheirinho, diria que aquele espaço não foi conquistado com base no trabalho, mas em manobras de especuladores e criminosos do colarinho branco. E se os moradores locais trabalharam e promoveram benefícios ao lugar, construindo sua casa com seu próprio trabalho, isso deve ser mais valorizado que o termo de posse conquistado com base em manobras jurídicas. Rousseau argumentaria que o direito republicano dos cidadãos torna-os obrigados a contrariar o governo e que a propriedade privada neste caso é antirrepublicana.

No curso básico de pensamento político clássico, ainda teríamos uma discussão sobre Maquiavel. Bem, o caso de Pinheirinho, visto sob a ótica maquiavélica, é um exemplo de como o Príncipe não deve se comportar. Precipitada, mal dirigida, escandalosa e desnecessária foi a reintegração de posse. Provocou crise com os moradores, tornou-se manchete dos veículos de imprensa, desgastou a relação entre governo estadual e federal. Então, usando a frase famosa e maquiavélica: os fins justificam os meios? Engana-se que responde sempre sim. Em geral não, os fins justificam os meios somente quando esses fins levam em consideração o bem público. A reintegração de posse foi muito mais um exercício exagerado de autoridade, que não fez com que o Príncipe fosse amado ou respeitado, mas odiado. Ou seja, nenhuma das lições contidas em Maquiavel foi assimilada neste caso e a real politik foi abandonada em função de interesses absolutamente obscuros.

Falando especificamente da experiência brasileira, qualquer pessoa minimamente envolvida com as políticas de urbanização e desocupação de zonas irregulares sabe que os procedimentos são diferentes. Em primeiro lugar, quando se trata de uma ocupação irregular, a única justificativa plausível para a retirada das famílias é se o terreno é uma área de risco ou um espaço de preservação ambiental. Encostas e regiões ribeirinhas ocupadas não são prioridades dos ocupantes. O Estado deve providenciar a desocupação.

De outro lado, quando a região não é de risco, outras atitudes devem ser cogitadas e a primeira delas é considerar a manutenção das famílias nos locais e a urbanização das áreas, com a iluminação pública, a abertura de vias de trânsito, a regularização do fornecimento de água e luz e a garantia de tratamento do esgoto. Remoção das famílias tem que ser negociada, combinada, acertada e garantida com outras possibilidades. Se não acontece desta forma, o governo está suscetível às criticas e o motivo é bastante simples: é obrigação de o Estado gerar moradias antes mesmo de garantir o direito de acumulação para especuladores. Alguém duvida dessa hierarquia em relação às prioridades de direitos?

A propaganda em favor da barbárie promovida pela desocupação tenta inverter a culpa e levar a população a crer que quem está em favor da comunidade do Pinheirinho é arruaceiro, quer rasgar a Constituição, não quer saber dos direitos na sociedade. Mas se levarmos o direito republicano a sério é justamente o contrário: defender a comunidade do Pinheirinho é defender a Constituição e os direitos sociais no Brasil – apesar de o Estado querer convencer as classes médias a defender o interesse de alguns poucos privilegiados.

Extraído de Outras Palavras.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Mulheres

A origem do Dia Internacional da Mulher*

Luis Alberto Prado

Oficializado pela Organização das Nações Unidas (ONU) somente 1975, o Dia Internacional da Mulher já fora proposto na virada do século XIX para o século XX, no contexto da Segunda Revolução Industrial, quando ocorreu a incorporação da mão de obra feminina em massa na indústria. Apesar do reconhecimento oficial, ainda persistem muitos preconceitos em relação ao papel da mulher na sociedade.

Naquela época, as condições de trabalho, insalubres e perigosas, eram motivo de frequentes protestos por parte dos trabalhadores. Como o das operárias de fábricas de vestuário e indústria têxtil, que protagonizaram uma dessas manifestações contra as más condições de trabalho e os baixos salários, em 8 de março de 1857, em Nova York (EUA).

É a partir da Revolução Industrial, em 1789, que estas reivindicações começam a tomar corpo com a exigência de melhores condições de trabalho, acesso à cultura e igualdade entre os sexos. Segundo dados históricos, as operárias daquela época eram submetidas a um sistema desumano de trabalho, com jornadas de 12 horas diárias, espancamentos e assédios sexuais.

Muitas outras manifestações ocorreram nos anos subsequentes, destacando-se a de 1908, quando 15 mil mulheres marcharam sobre a cidade de Nova York exigindo a redução de horário, melhores salários e direito ao voto. Por iniciativa do Partido Socialista da América, o primeiro Dia Internacional da Mulher foi celebrado em 28 de fevereiro de 1909.

No ano seguinte, ocorreu a primeira conferência internacional de mulheres, em Copenhague (Dinamarca), dirigida pela Internacional Socialista – organização global de partidos social-democratas, socialistas e trabalhistas –, quando foi aprovada proposta da socialista alemã Clara Zetkin de instituição de um dia internacional da mulher, embora nenhuma data tivesse sido especificada. Em 1911, o Dia Internacional da Mulher foi celebrado em 19 de março, por mais de um milhão de pessoas, na Áustria, Dinamarca, Alemanha e Suíça.

Poucos dias depois, 25 de março, um incêndio na fábrica da Triangle Shirtwaist mataria 146 trabalhadores – costureiras em sua a maioria. O número elevado de óbitos foi atribuído às más condições de segurança do imóvel onde a fábrica funcionava. Foi considerado como o pior incêndio da história da cidade de Nova York, até o ataque as Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001. A morte das trabalhadoras possivelmente se incorporou ao imaginário coletivo como sendo o fato que deu origem ao Dia Internacional da Mulher.

Na Rússia, as comemorações do Dia Internacional da Mulher foram o estopim da Revolução de Fevereiro de 1917 – abdicação do Czar Nicolau II, entre outras ações. Em 8 de março de 1917 (23 de fevereiro pelo calendário juliano), a greve das operárias da indústria têxtil contra a fome, em oposição ao Czar Nicolau II da Rússia e pelo fim da participação do país na I Guerra Mundial precipitaram os acontecimentos que resultaram na Revolução de Fevereiro.

Após a Revolução de Outubro – também conhecida como Revolução Bolchevique ou Revolução Vermelha, que foi a segunda fase da Revolução Russa de 1917 –, a feminista bolchevique Alexandra Kollontai persuadiu Lenin para oficial o Dia da Mulher que, durante o período da União Soviética permaneceu numa celebração da "heroica mulher trabalhadora".

Enquanto a antiga Checoslováquia integrava o Bloco Soviético (1948 - 1989), esta celebração foi apoiada pelo Partido Comunista, sendo gradualmente transformado em paródia. A data, então, era usada como instrumento de propaganda do partido. Durante as últimas décadas, o dia acabou por se tornar um arremedo de si próprio. A cada dia 8 de março, as mulheres ganhavam uma flor ou um presente barato do chefe. Assim, o propósito original da celebração perdeu-se completamente.

No Ocidente, a data foi comemorada durante as décadas de 1910 e 1920, ganhando força ao longo do movimento feminista dos anos 60. Porém, somente em 1910, durante uma conferência na Dinamarca, ficou decidido que o 8 de março passaria a ser o Dia Internacional da Mulher, em homenagem às mártires que morreram no incêndio na fábrica em 1857.

*Extraído de MultiRio

quinta-feira, 1 de março de 2012

Estado

As duas faces do Estado*
Pierre Bourdieu**

Descrever a gênese do Estado é descrever a gênese de um campo social, de um microcosmo social relativamente autônomo no interior de um mundo social abarcador, onde se joga um jogo particular, o jogo político legítimo. Um exemplo é a invenção do Parlamento, lugar onde os problemas que opõem grupos de interesses conflitantes são alvo de debates públicos realizados segundo formatos e regras específicas. Marx analisou apenas os bastidores: o recurso à metáfora do teatro, à teatralização do consenso, mascara o fato de que existem pessoas que manipulam os cordéis das marionetes, e que as verdadeiras apostas, os poderes de fato, estão em outro lugar. Retomar a gênese do Estado é retomar a gênese do campo onde a política se desenrola, se simboliza, se dramatiza em suas formas características.

Entrar nesse jogo do político legítimo, com suas regras, é ter acesso à fonte progressivamente acumulada do “universal”, à palavra universal, às posições universais a partir das quais é possível falar em nome de todos, do universum, da totalidade de um grupo. É possível falar em nome do bem público, do que é o bem público, e, ao mesmo tempo, apropriar-se dele. Esse é o princípio do “efeito Janus”: há pessoas que possuem acesso ao privilégio do universal, mas não é possível ter o universal sem ao mesmo tempo monopolizar o universal. Há um capital do universal. O processo constitutivo dessa instância de gestão do universal é inseparável do processo de constituição de uma categoria de agentes que se apropriam desse universal.

Tomo um exemplo do âmbito da cultura. A gênese do Estado é um processo ao longo do qual se dá uma série de concentrações de diferentes formas e recursos: concentração da informação (relatórios, estatísticas com base em pesquisas), de capital linguístico (oficialização de uma língua como idioma dominante, de forma que as outras línguas de um território nacional passem a figurar como formas depravadas, desviadas ou inferiores à dominante). Esse processo de concentração se dá junto ao processo de desapropriação: constituir uma cidade como capital, como local onde se concentram todas as formas do capital[1], é relegar o Estado e o resto do país à desapropriação do capital; constituir uma língua legítima é relegar todas as outras à condição de patoás[2].

A cultura legítima é a cultura garantida pelo Estado, garantida por essa instituição que garante os títulos de cultura, que entrega diplomas cuja função é validar a possessão de uma cultura garantida. Os programas escolares são questão de Estado; modificar um programa é modificar a estrutura de distribuição do capital, é definhar certas formas de capital. Por exemplo, suprimir o latim e o grego do ensino é devolver ao poujadismo toda uma categoria de pequenos portadores de capital linguístico. Eu mesmo, em todos os meus trabalhos anteriores sobre a escola, nunca deixei de lado completamente o fato de que a cultura legítima é a cultura do Estado...

Essa concentração é, ao mesmo tempo, uma unificação e uma forma de universalização. Onde havia o diferente, o disperso, o local, passa a figurar o único. Com Germaine Tillion, comparamos as unidades de medida em diferentes povoados cabilas em um raio de 30 quilômetros: as variações correspondiam ao próprio número de vilarejos, cada um com suas particularidades. A criação de unidades de medida nacionais e estatais é um progresso em direção à universalização: o sistema métrico é um padrão universal que supõe consenso, do latim consensus, “concordância” ou “conformidade”. Esse processo de concentração, de unificação, de integração é acompanhado de um processo de desapropriação, porque todos os saberes e competências associados ao local passam a ser desqualificados.

Dito de outra forma, o próprio processo pelo qual se constitui a universalidade vem acompanhado da concentração da universalidade. Há aqueles que querem o sistema métrico (os matemáticos) e aqueles que remetem ao local. O próprio processo de constituição de padrões comuns é inseparável da conversão desses padrões comuns em capital monopolizado por aqueles que possuem o monopólio da luta pelo monopólio do universal. Todo esse processo – constituição de um campo, autonomização do campo em relação a outras necessidades; constituição de uma necessidade específica em relação à necessidade econômica e doméstica; constituição de uma reprodução específica de tipo burocrática, específica em relação à reprodução doméstica, familiar; constituição de uma necessidade específica em relação à necessidade religiosa – é inseparável do processo de concentração e constituição de uma nova forma de recursos que passam a fazer parte do universal, ou de um grau de universalização superior aos que existiam antes. Passou-se do pequeno mercado local ao mercado nacional, seja no aspecto econômico ou simbólico. A gênese do Estado é, em suma, inseparável da constituição do monopólio do universal, e o exemplo por excelência desse processo é a cultura.

Todos os meus trabalhos anteriores podem ser resumidos da seguinte forma: essa cultura é legítima porque se apresenta como universal, oferecida a todos porque, em nome dessa universalidade, podemos eliminar sem medo aqueles que não estão nela inseridos. Essa cultura, que aparentemente une, mas em realidade divide, é um dos grandes instrumentos de dominação porque pressupõe monopólio, monopólio terrível porque não podemos acusá-la de privada (pois é universal). A cultura científica leva esse paradoxo ao extremo. As condições da constituição desse universal, de sua acumulação, são inseparáveis da condição de existência de uma casta, de uma nobreza estatal, de “monopolizadores” do universal. A partir dessa análise, fala-se em universalizar as condições de acesso ao universal. Está por definir-se, contudo, como levar adiante esse projeto: é necessário desapropriar os “monopolizadores”? Não é exatamente por esse lado que se deve buscar a resposta.

Termino com uma parábola para ilustrar o que disse sobre método e conteúdo. Há trinta anos, em uma noite de Natal, fui a um pequeno vilarejo nos confins de Béarn para assistir a um pequeno baile camponês[3]. Alguns dançavam, outros não; algumas pessoas, mais velhas que outras, com estilo camponês, não dançavam, conversavam entre elas e se entretinham para justificar o fato de estar ali sem participar do baile, para justificar a presença insólita. Deveriam ser casados, porque quando se é casado, não se dança mais. O baile é um desses lugares de intercâmbio matrimonial: é o mercado dos bens simbólicos matrimoniais. Havia um alto índice de homens solteiros: 50% dos que tinham entre 25 e 35 anos.

Tentei encontrar um sistema explicativo para esse fenômeno: é que antes havia um mercado local protegido, não unificado. Quando o chamado Estado se constitui, ocorre a unificação do mercado econômico ao qual o Estado contribui com sua política e a unificação do mercado de trocas simbólicas, ou seja, o mercado das posturas, das maneiras, das vestimentas, da pessoa, da identidade, da apresentação. Essas pessoas tinham um mercado protegido, local, sobre o qual tinham controle, o que permitia certa endogamia organizada pelas famílias. Os produtos do modo de reprodução camponês tinham lugar nesse mercado: eram vendáveis e tinham equivalentes, pares.

Na lógica do modelo que evoquei, o que aconteceu no baile é resultado da unificação do mercado de trocas simbólicas: o paraquedismo da pequena cidade vizinha que ganhava espaço no cenário regional era um produto desqualificante, pois aumentava a concorrência com o camponês. Dito de outra forma, a unificação do mercado, que pode ser apresentada como um progresso, de todos os modos para as pessoas que imigram – as mulheres e todos os dominados –, pode ter um efeito libertador. A escola transmite uma postura corporal diferente, outras formas de se vestir, de se comportar etc.; e o estudante tem um valor matrimonial nesse novo mercado unificado, enquanto o camponês é visto como desclassificado. A ambiguidade do processo de universalização está concentrada ali. Do ponto de vista das camponesas do vilarejo – que se casam com um “futuro” –, o matrimônio pode ser a porta de acesso ao universal.

Mas esse grau de universalização superior é inseparável do efeito de dominação. Recentemente, publiquei um artigo, espécie de releitura de minha análise sobre o celibato em Béarn na época, cujo título, algo jocoso, é “Reprodução proibida”[4]. Demonstro que a unificação do mercado tem por efeito a interdição da reprodução biológica e social de toda uma categoria de pessoas. Na mesma época, trabalhei sobre um material encontrado por acaso: o registro das deliberações comunitárias de um pequeno vilarejo de duzentos habitantes durante a Revolução Francesa. Nessa região, os homens votavam por unanimidade. Mas chegaram decretos impondo o voto por maioria simples. Eles deliberaram, houve resistência e o vilarejo se dividiu em um campo e outro campo. Pouco a pouco, a maioria se impôs: ela teve por trás o universal.

Houve grandes discussões ao redor desse problema suscitado por Tocqueville em relação à continuidade/descontinuidade da Revolução. Mas a questão permanece um verdadeiro problema histórico: qual é a força específica do universal? Os processos políticos desses camponeses de tradições milenares e coerentes foram abalados pela força do universal, como se eles tivessem de se inclinar a uma lógica mais forte: a da cidade, com seus discursos explícitos, metódicos e não práticos. Os camponeses tornaram-se, então, provincianos, locais. As deliberações passam a outras instâncias e aparecem fórmulas como “O prefeito decidiu que...”, “O conselho municipal se reuniu e...”. A universalização tem como efeito reverso a desapropriação e a monopolização. A gênese do Estado é a gênese do lugar da gestão do universal e ao mesmo tempo do monopólio do universal e de um conjunto de agentes que participa do monopólio de uma coisa que, por definição, é da ordem do universal.

Referências
[1] Essa relação entre o capital e a capital foi posteriormente desenvolvida por Pierre Bourdieu em “Effets de lieu” [Efeitos de lugar], La misère du monde [A miséria do mundo], Seuil, Paris, 1993, p.159-167.
[2] Sobre a língua legítima e o processo correlativo da desapropriação, ver a primeira parte de Pierre Bourdieu, Langage et pouvoir symbolique [Linguagem e poder simbólico], Seuil, Paris, 2001, p.59-131.
[3] Ver a descrição dessa “cena inicial” no início de Pierre Bourdieu, Le bal des célibataires. Crise de la société paysanne en Béarn [O baile dos solteiros.Crise da sociedade camponesa em Béarn], Seuil, Paris, 2002, p.7-14.
[4] Pierre Bourdieu, “Reproduction interdite. La dimension symbolique de la domination économique” [Reprodução proibida. A dimensão simbólica da dominação econômica], Études Rurales, n.113-114, 1989, p.15-36, retomada em Le bal des célibataires, op.cit., p.211-247.

**Sociólogo francês, falecido em 2002.