quinta-feira, 26 de julho de 2012

Crise

Convulsão social na Espanha*

Luiz Roberto da Costa Jr**

Os excessos cometidos pelo mercado financeiro provocaram a crise de 2008 e, por isso, houve aumento da dívida pública para combater os problemas econômicos naquele período. O alto nível de endividamento atual decorre em muito do socorro dado ao mercado financeiro e não exclusivamente dos gastos do estado de bem-estar social. Milhares de pessoas saíram às ruas, em mais de oitenta cidades da Espanha, em protesto contra os duros ajustes econômicos impostos pelo mercado.

O mercado (que faz investimentos e aplicações) tem condições de buscar a realização de seus interesses no decorrer da atividade cotidiana dentro do sistema de produção capitalista. Quando decide investir ou não, empregar ou dispensar trabalhadores, adquirir títulos públicos do governo, exportar ou importar, há a alocação de recursos provenientes da sociedade. Por um lado, o mercado é uma instituição que coordena as decisões privadas. As decisões tomadas por investidores procuram maximizar os lucros e respondem à preferência dos consumidores com respeito a alocação dos recursos. O controle sobre investimento é a questão central da política econômica porque nenhuma outra decisão tomada privadamente produz um impacto público tão intenso. Por outro lado, a população que sofre o impacto da recessão na Europa com um aumento brutal do desemprego só pode reivindicar direitos por meio do sistema de representação, principalmente ONGs, associações, sindicatos e partidos políticos.

O estado de bem-estar social foi duramente atacado e isso afeta o contrato social (receber salários, pagar impostos, comprar bens e receber serviços públicos) que é a base da democracia parlamentar. A expectativa de que os lucros correntes seriam transformados em melhoras futuras nas condições materiais é a base do consentimento ativo dado pela sociedade democrática ao funcionamento do capitalismo. As bases materiais do consentimento ativo mantém a coesão social, assim como o funcionamento e a legitimidade do sistema democrático.

A democracia consiste na organização do poder político que determina a capacidade dos grupos concretizarem seus interesses. As chances são desiguais devido aos recursos econômicos, ideológicos e organizacionais, mas não são predeterminadas ou imutáveis. Todos têm de lutar continuamente e nenhum grupo tem condições de garantir seus interesses de modo definitivo, dado o conflito que há num ambiente democrático, mas todos têm de curvar-se perante seus resultados. Opor-se aos resultados seria defender interesses particularistas em oposição à vontade da maioria.

O movimento 15-M tem mobilizado a sociedade espanhola e consolidado propostas para a melhoria do país com ideias alternativas. O primeiro-ministro Mariano Rajoy, do Partido Popular, está a menos de um ano no poder e enfrenta um grande desgaste político e dificilmente terá condições de terminar a legislatura de quatro anos, sendo forçado a convocar eleições antecipadas devido ao agravamento da recessão econômica em 2013.

O Partido Socialista, de oposição ao governo, foi responsável pelo início das medidas de ajuste econômico em 2010. Dado o desgaste tanto do Partido Popular como do Partido Socialista, a Espanha pode estar diante do rompimento do bipartidismo na alternância de poder que acompanha o país desde 1982, mas para que isso ocorra, o movimento 15-M deve criar um planejamento político de incorporar-se ao processo eleitoral e democrático na Espanha.

*Extraído de Brasil 247
**Mestre em Ciência Política e autor do ensaio "A Luta de Classes na França e a Não Institucionalização da Segunda República"

quinta-feira, 19 de julho de 2012

Neoliberalismo e gestão empresarial

O Elo Perdido das Organizações

Wagner Siqueira*

O que nos demonstram os desajustamentos, depressões e até suicídios de empregados que marcam o funcionamento das grandes corporações nesta primeira década do século XXI? O que significam, mais ainda, as explicações e justificativas para tais fatos de seus dirigentes, que oscilam entre o cinismo e a compaixão, ou seja, apresentam sentimento aparente de piedade pelos sofrimentos dos empregados?

E, pior ainda, o que quer dizer a convocação urgente e atabalhoada de psicólogos e de médicos do trabalho para identificar causas e propor soluções de imediato face ao inusitado dessa situação anômica, que estraçalha os ambientes organizacionais e afeta criticamente o desempenho?

Certamente o desconhecimento, a ignorância e até mesmo a negação deliberada pelo mundo corporativo de hoje dos conhecimentos e dos avanços das ciências do comportamento humano no trabalho produzidos por décadas, a partir dos anos 1920/1930, com as pesquisas pioneiras na Fábrica de Hawthorne, da Western Electric, nos USA.
 
A globalização e a mundialização da economia produzida pela sociedade de mercado, em especial a partir dos anos 1980, com a intensificação dos paradigmas dominantes dos lucros e dos resultados nos balanços, jogaram às trevas tudo o que cientificamente já se conhecia do processo de condicionamento do comportamento humano no trabalho. E o mundo corporativo em vez de avançar nas práticas das melhores formas de estimular o desempenho de seus colaboradores, produziu desde então passos significativos de retrocesso.
 
O processo histórico não se faz só com progressos e avanços, mas também com retrocessos e regressões, em que, o mais das vezes, apaga, ignora e desconhece os ganhos obtidos no passado, que subsistem apenas como elos perdidos.
 
A ciência do comportamento humano no trabalho é o elo perdido do mundo corporativo na sociedade neoliberal de mercado, das teorias e das práticas atuais dos consultores e dos profissionais que se dedicam à gestão das organizações, das teses de pesquisa e dos artigos ultimamente desenvolvidos pelo universo acadêmico, do cotidiano das noticias e do interesse da imprensa em geral.
 
Erros primários produzidos pelas trevas da ignorância e do desconhecimento sobre motivação humana no trabalho amplificam a crise nas organizações, aumentam os casos de desespero e de suicídios. E escandalizam a opinião pública, que não os compreende, e, muito menos, os aceita.

Um dos pontos fulcrais identificados pela célebre Pesquisa de Hawthorne é a presença e a influência dos grupos espontâneos (informais) na constituição e no funcionamento da realidade organizacional. Os grupos espontâneos ou informais não são apenas onipresentes na realidade do mundo do trabalho. Cada um deles se ordena por uma hierarquia social, por mecanismos de controle e por formas muito próprias de solidariedade e de interação.

É o sentimento de pertencer e de integrar grupos sociais que fixa em seus componentes o sentido de comprometimento, de dedicação e de empenho no trabalho, a par de integração `a situação, muitas vezes adversas, em que o trabalho é realizado.

A empresa não pode ser considerada como um agregado asséptico, infenso, de pessoas que se interrelacionam: ao lado da estrutura formal subsiste fortemente uma organização informal invisível, não percebida à primeira vista, mas decisivamente influente.

Para se compreender, em toda extensão e profundidade, a atualidade das descobertas da Pesquisa de Hawthorne basta se delinear o quadro de mudanças organizacionais ocorridas no mundo do trabalho nos últimos trinta anos em que tais descobertas passaram a ser simplesmente ignoradas, ou simplesmente tratadas como velharias ultrapassadas.

Em nome da intensificação da concorrência e da competição, e na busca crescente do máximo de resultados e de lucros, a gerência neoliberal se dedica, cada vez mais, a construir organizações fundadas na individualização de objetivos e dos meios para alcançá-los, na atribuição também individualizada das responsabilidades e das pressões, nas avaliações de desempenho, na concessão dos prêmios e nas sanções.

Nunca se propalou tanto a importância do trabalho em equipe, mas também nunca se praticou mais ainda a individualização. Apesar do discurso contemporâneo de modernidade, o núcleo dominante de organização dos processos de trabalho não é a equipe, mas o indivíduo como pessoa e como profissional.

O mundo corporativo impõe a dedicação incondicional dos empregados à empresa. Têm-se aí como marcos expressivos o aumento crescente da sobrecarga de trabalho, a redução de tempo que cada um dispõe para a vida familiar, e a submissão integral às exigências constantes de mobilidade e de uso do tempo pessoal em favor da empresa.

As consequências de todo esse quadro de circunstâncias não são difíceis de identificar: o que antes se chamava de “relações humanas” efetivamente hoje já não mais existem, tendo sido substituídas pelo culto aos resultados, às metas de desempenho a serem alcançadas, e pela indiferença generalizada às questões que configuram em plenitude a realização humana no trabalho.

Cada um por si na luta de todos contra todos é o que garante o capital de competência, de reputação e de prestígio profissional que permite a conquista de posições na hierarquia organizacional.

É a primeira vez, em tamanha escala, que a competição e a cooperação antagônica dentro da organização se transformam em variáveis críticas de estruturação de processos de trabalho.

À atomização social reforça-se a ameaça, sempre presente, de demissão e o temor do desemprego para favorecer ainda mais a submissão de todos aos desígnios das direções e das gerências.

As organizações informais são, assim, varridas da realidade empresarial por um sistema esdrúxulo indiscriminado de competição individual, de todos e de cada um em busca da conquista de espaço pessoal e de um “lugar ao sol”.

Os argumentos econômicos não são suficientes para explicar a enorme ascendência da gerência neoliberal nas grandes corporações. Toda forma de organização do trabalho reproduz em si mesmo, a seu tempo e por sua vez, a aplicação de uma técnica instrumental de dominação social.

O próprio ensino da administração se baseia nos pressupostos de preservação de poder de uma sociedade inteiramente centrada no mercado. O conhecimento está a serviço do mercado, que se transformou em força modeladora da sociedade como um todo. O mercado põe e dispõe em todas as suas formas de expressão: na educação e na cultura, nos esportes e no lazer, na pesquisa e nas suas utilizações práticas, na política e na defesa do meio ambiente, e, muito mais, na vida empresarial.

A teoria das organizações se constitui, assim, numa ideologia que legitima, em nível empresarial, a sociedade de mercado, vale dizer, também suas iniquidades e disfunções.
Portanto, não se constitui em qualquer surpresa a desconsideração factual das estruturas sociais espontâneas, as chamadas organizações informais, quer sejam internas, vinculadas diretamente ao próprio mundo corporativo, quer sejam externas, vinculadas à vida do empregado na família e na comunidade.

Não havia qualquer necessidade de desconsiderar a influência da organização informal para a realização dos paradigmas neoliberais prevalecentes no mundo corporativo dos tempos presentes. É evidente que a violência social sempre existiu no mundo das organizações e no universo da sociedade.
 
O novo é a deliberada e intencional ação empresarial no sentido de destruir a organização informal no ambiente organizacional sob o pressuposto de sua disfuncionalidade.
A estrutura social nos integra em relações humanas soi-disant de “normalidade”, ao passo que sua ausência nos faz mergulhar no caos da contradição e da anomia.

O que a realidade do mundo corporativo nos mostra hoje com tanto sofrimento é que a desconsideração da influência da organização informal conduz a muita insatisfação no trabalho, ao desajustamento e à depressão. E até aos suicídios!

Precisamos tratar das almas e dos corpos das organizações, de suas estruturas e de seu funcionamento, de suas organizações formais e informais.

Deixemos de procurar as causas da insatisfação individual e coletiva lá onde elas não estão por insistirmos em desconhecer lá onde elas efetivamente estão: nas relações sociais de trabalho.

Deixemos de considerar como normal, habitual, como parte das regras do jogo, e como via necessária a destruição da estrutura social que preside a existência humana no trabalho.

O homem como um animal social é quase uma lei pétrea da natureza humana. A relação social faz parte de seu DNA, integra o seu código genético.

*Administrador, presidente do Conselho Regional de Administração do Rio de Janeiro, www.wagnersiqueira.com.br, http://wagnersiqueira.blogspot.com

quinta-feira, 12 de julho de 2012

Gestão empresarial

Excelência para quem?

Daniel Roedel*

O gestor de empresas faz a intermediação entre o capital e o trabalho visando alcançar os objetivos estabelecidos pela direção. É assim que estudamos nos cursos de Administração. Se os resultados requeridos pelo capital se intensificam, as práticas administrativas devem aumentar a eficiência e a eficácia para atender às exigências dos investidores e manter a empresa competitiva.

Nas décadas recentes essas práticas visando à competitividade têm destacado a redução de custos com o trabalho e a criação de empresas “enxutas”, alimentadas por cadeias de fornecedores que, apoiadas pelas tecnologias de informação, se articulam e organizam conforme a demanda do mercado. Demissões em massa, terceirizações, redução de benefícios, reconfiguração do trabalhador em empreendedor (inclusive pessoa jurídica), são algumas das receitas adotadas. A denominação oficial é de que se trata de uma flexibilização para obter e sustentar vantagens competitivas em mercados globais, mas a evidência é de que ocorre uma precarização do trabalho, inclusive ao longo da cadeia.

Vale ressaltar que esse modo de gestão é também incorporado na administração pública e em empresas que têm o Estado como principal acionista. Neste caso a prática é reforçada pelos argumentos de que o Estado é um péssimo gestor e que os recursos públicos são cada vez mais escassos e as demandas mais elevadas, o que requer a adoção de princípios de gestão da iniciativa privada para o aumento da eficiência.

Como decorrência, a prática de subsídios e de renúncia fiscal para empresas se acentua visando atrair empreendimentos privados, cada vez mais focados na maximização dos ganhos financeiros imediatos. Há alguns anos recursos públicos destinados ao financiamento das privatizações de empresas foram utilizados para demitir trabalhadores. Tudo isso em nome desse modelo de eficiência. O resultado é uma cada vez maior desregulamentação e transferência de recursos públicos à iniciativa privada, o que fragiliza a proposição e implementação de políticas públicas.

Não se trata aqui de desqualificar a flexibilidade, a terceirização, a eficiência ou o empreendedorismo, mas sim de se questionar a intencionalidade com que são “vendidos”, incorporados e naturalizados na gestão. Esse propalado receituário de “excelência” gerencial tem contribuído para uma diminuição do peso da renda do trabalho na composição do PIB, embora a criação de empregos nos últimos anos tenha possibilitado a retomada de um percentual de participação próximo ao do ano de 1995. No entanto, deve-se verificar também a qualidade dos empregos que têm sido criados. E, numa época de desemprego estrutural, de desmobilização sindical e de subserviência governamental aos ditames do mercado, essa prática agrava diretamente os problemas sociais.

Enquanto isso, a mídia exibe cotidianamente empresas, empresários e gestores considerados exemplos e referências a serem seguidas. Seus “casos de sucesso” (cases na linguagem empresarial) são ensinados, debatidos e até mesmo admirados nos cursos de Administração. Para amenizar possíveis questionamentos com relação aos métodos adotados são destacadas iniciativas socioambientais, nas quais se realizam projetos sociais em comunidades carentes e campanhas ditas ambientalmente corretas. É o velho paradoxo de se adotar uma creche como projeto social enquanto se utiliza mão de obra infantil ao longo do processo produtivo, ou de se anunciar como empresa sustentável e economizar (eficiência praticada) em requisitos de segurança que geram desastres ambientais.

Ser eficiente e eficaz nessas condições e com essas práticas gerenciais não é nenhum mérito! O desafio e o mérito na gestão estão na eficiência e na eficácia construídos e alcançados valorizando-se e reconhecendo os diversos componentes do processo produtivo. E o trabalhador é um protagonista estratégico! Continuar praticando e apresentando exemplos de excelência sem questionar os meios utilizados para alcançá-la é corroborar uma infeliz realidade que constrange a dignidade humana, reproduzindo o velho chavão de que os fins justificam os meios. E numa época de Rio +20 em que se busca entender a sustentabilidade não somente como sinônimo de preocupação ambiental, mas também como um compromisso com a justiça social, que deve ser alcançada de modo articulado com os resultados econômicos, a sustentabilidade competitiva pode ser afetada no médio prazo.

*Diretor da Plurimus, Administrador e doutorando em Políticas Públicas e Formação Humana

Rio +20

Economia verde e mercantilização do Meio Ambiente*
Paulo Kliass**

A História da humanidade está marcada por um processo contínuo e crescente de desenvolvimento das forças produtivas e de avanço do ser humano sobre o espaço natural. E isso se deu desde os primeiros registros de organização social, ainda sob a forma de coletores ou caçadores até o quadro atual de atividades que colocam em risco a sobrevivência do planeta e da própria espécie.

Dessa foram se sucedendo os saltos propiciados pela evolução das sucessivas formações sociais e pelo desenvolvimento técnico-científico. Fixação territorial das comunidades e início das atividades de agricultura e pastoreio, marcando o início dessa exploração e conquista do homem sobre a natureza. Domínio de técnicas para geração de energia a partir de recursos naturais (fogo). Consolidação de grupos sociais vivendo em espaços urbanos, afastados dos processos associados à produção de alimentos. Descobertas de novas formas de geração de energia (hidráulica), inovações para aumento da produtividade agrícola e início do processo de transformação produtiva sob a forma artesanal. Utilização em escala crescente dos bens da natureza para consolidar as bases estruturais da sociedade, como os minerais e a madeira para construir ferramentas, bens de uso, meios de transporte, residências, palácios, monumentos, estradas e outros. 

O salto industrial e o aprofundamento da degradação 

Uma mudança de qualidade nesse processo foi a inovação tecnológica que veio a propiciar a evolução da manufatura e o advento da produção em escala industrial. O desenvolvimento científico revolucionou setores fundamentais como saúde e transportes, possibilitando a redução da mortalidade, o aumento populacional e o deslocamento de bens e pessoas nas regiões e entre continentes. As descobertas relativas às fontes de energia de combustível fóssil (carvão e petróleo) impulsionaram a conquista do homem sobre a natureza, exatamente no momento em que o modo capitalista de produção se afirmava como hegemônico em escala internacional. Produção e consumo em massa se assentavam sobre o modelo colonialista em expansão, onde os países europeus imprimiam a marca da super exploração dos recursos humanos e naturais dos demais continentes.

Com exceção das populações tradicionais que conviviam em harmonia com a natureza e isoladas do ímpeto do chamado “progresso”, o avanço do modelo capitalista de espoliação do espaço natural não encontrava barreiras. Por outro lado, as próprias experiências socialistas do século XX não buscaram alternativas que não estivessem baseadas no extrativismo e no produtivismo exacerbados. Tudo se passava como se o processo civilizatório fosse sinônimo de avanço irracional da sociedade humana sobre o espaço natural.

Os resultados mais recentes desse processo milenar estão mais do que conhecidos. O fato, porém, é que apenas ao longo das últimas décadas os riscos de sobrevivência do planeta começaram a se tornar mais evidentes e aceitos. Poluição generalizada e devastadora, aquecimento global, elevação do nível dos oceanos, desastres nucleares, efeitos perversos do uso indiscriminado de agrotóxicos e fertilizantes, incapacidade de dar conta de resíduos e lixo, consequências negativas e desconhecidas a respeito do uso de transgênicos, aprofundamento da falta de água: eis apenas alguns dos dramas que a sociedade deveria enfrentar seriamente nos tempos atuais. Esses fenômenos causados pela ação direta do homem aliam-se à dinâmica própria de alteração dos ecossistemas e as consequências tornam-se ainda mais imprevisíveis. 

Desenvolvimento sustentável “versus” economia verde 

Porém, parece claro que a questão ambiental não é uma questão isolada. Ela não pode estar dissociada da questão econômica e da questão social. A degradação da Terra ocorre justamente pelos interesses envolvidos no atual modelo de exploração econômica, onde a busca do lucro a curto prazo e a exploração da força de trabalho são partes integrantes do mesmo processo. As características da desigualdade e da concentração, tão típicas do capitalismo, se fazem presentes no que se refere à distribuição dos recursos naturais. A Conferência da ONU sobre o Meio Ambiente de 1992 consagrou o conceito de “modelo sustentável”. E essa ideia força vinha sempre associada com a necessidade de enfocar o tema da sustentabilidade em seus 3 eixos interdependentes: a) ambiental; b) econômico; c) social.

Não é intenção deste artigo sugerir um balanço dos resultados obtidos com a Rio + 20. Mas, de toda forma, parece consensual a avaliação de que muito pouco foi realizado pelos governos, pelos organismos multilaterais e pelas grandes corporações multinacionais a respeito do tema ao longo dessas duas décadas. Como foram vinte anos dominados pelo discurso neoliberal e pela crença na supremacia absoluta nas forças do mercado para buscar as soluções ditas “mais eficientes”, muito pouco foi efetivado em termos de regulação, fiscalização e controle das atividades comprometedoras do equilíbrio do planeta – seja em escala global, nacional ou local.

Como a Conferência oficial deste ano ainda se pautou pela inércia da influência política e ideológica dos anos de chumbo do liberalismo irracional, as questões do mercado e da iniciativa privada terminaram por ganhar mais espaço nos debates e na até mesmo na Declaração Final. Aliás, essa foi uma das reclamações apresentadas pelas organizações envolvidas com a realização da Cúpula dos Povos, evento paralelo ao oficial da diplomacia e dos governos, organizado por um sem número de entidades envolvidas com o tema pelo mundo afora.

Uma das novidades do documento final da Rio + 20, “O futuro que queremos”, é a presença do conceito de “economia verde”. Apesar de pouco esclarecedor e merecedor de uma multiplicidade de definições, o fato é que ele abre espaço para as tentativas de consolidar a mercantilização do meio ambiente – fenômeno já em marcha há décadas. No entanto, antes de avançar por aqui, é importante deixar registrado que, ao longo das 59 páginas do texto da ONU, a expressão “economia verde” sempre aparece acompanhada da expressão “no contexto do desenvolvimento sustentável e da erradicação da pobreza”. Ou seja, há quem avalie que o termo ainda não se expressaria como um caminho exclusivamente de mercado para a crise ambiental. 

Os instrumentos da mercantilização 

Porém, a Declaração Final não é muito mais do que isso: apenas uma declaração de intenções. A realidade das dinâmicas econômica, política e social operam em uma velocidade bem superior à das negociações diplomáticas. E, aliás, isso é até natural e compreensível. Portanto, aproveitando-se dessa distância, o conceito de “economia verde” já está há um bom tempo sendo utilizado pelos governos, implementado pelas grandes empresas e divulgado pelos meios de comunicação como a grande panacéia para todos os males que o capitalismo tem provocado sobre o ecossistema. Só que a problemática é bem mais complicada do que aparenta.

Assim, em sua tendência a universalizar as relações mercantis, o atual sistema econômico passou a incorporar a dimensão do “meio ambiente” também como instrumento de acumulação e dinamização do mercado. Os primeiros esboços concentraram-se na área de emissão de gases do efeito estufa (GEE). A partir das determinações previstas no Protocolo de Kyoto, lançado em 1997, começaram a surgir os “créditos de carbono”, que vieram a se constituir em instrumentos de negociação no próprio mercado financeiro. Com isso, as empresas que conseguissem reduzir seu volume de emissão de GEE teriam direito a emitir esses títulos de crédito de carbono, que passaram a ser precificados e negociados no mercado. De acordo com os padrões estabelecidos atualmente, um crédito de carbono equivale à redução de 1 tonelada de dióxido de carbono (CO2).

O objetivo implícito é que ele seria um mecanismo de estimular a substituição de processos produtivos “sujos” por novos processos “limpos”. O termo genérico desse tipo de ação ficou conhecido como “mecanismo de desenvolvimento limpo” (MDL) e contaria com algum tipo de regulação e fiscalização por parte da ONU, de maneira a evitar que os títulos de crédito de carbono pudessem ser objeto de fraude e descontrole. O crescimento do volume de títulos emitidos e a generalização de sua negociação criaram um verdadeiro mercado, com todo tipo de produto financeiro associado. O crédito de carbono tem uma cotação nas Bolsas de Mercadorias, tendências de alta, expectativas de queda, operações de mercado futuro e por aí vai. Como todos os títulos similares, está bastante sujeito a muita especulação.

Mais recentemente, outros instrumentos financeiros passaram a ser incorporados à prática dos grandes grupos multinacionais, mas ainda não são objeto de regulação e controle institucional. Trata-se do procedimento de “redução de emissão por desmatamento e degradação evitados” (REED), por meio do qual as corporações e seus empreendimentos de larga escala buscam obter ganhos econômicos a partir de iniciativas que possam diminuir o ritmo de destruição ambiental, como a redução de áreas de floresta ou comprometimento de áreas envolvidas com extração mineral. E aqui novamente o mercado financeiro pode atuar como facilitador dos negócios e da alavancagem de projetos, pois tudo se consolida em emissões de títulos que passam a ter um valor e são negociados nos mercados mobiliários por todos os cantos do planeta. E como quase tudo no mercado opera com base na especulação, o que dizer de operações sem nenhum lastro no setor real da economia? 

Busca de alternativas à solução de mercado 

Além disso, vale ressaltar que outros elementos da natureza já estão submetidos ao regime de mercantilização ou correm o risco de virem a passar pelo mesmo processo. É o caso da terra e do solo para atividades agropecuárias, extrativas e as demais no espaço urbano. A água, em sua condição de bem essencial para a vida, começa a dar os sinais de escassez preocupante em escala global e não apenas nas regiões historicamente afetadas pela seca. Os mares e oceanos pelo potencial energético, de alimentação e de pesquisa, além da questão estratégica de ser utilizado como meio de transporte. Os ares e a atmosfera por sua característica fundamental do oxigênio, além de outras como água, ventos e chuvas.

Portanto, a incorporação do conceito de economia verde no documento final da Rio+ 20 reflete o estágio atual da correlação de forças a nível internacional. Há setores fortemente interessados em que a dimensão do meio ambiente continue nessa trajetória crescente de mercantilização, com abertura de novos espaços de negócios em nome da salvação do planeta. Porém, é preciso que se denuncie a incapacidade das forças de mercado em darem conta dessa árdua tarefa, inclusive porque sua preocupação maior é com o lucro imediato e não com a viabilidade no longo prazo.

A solução passa por buscas de uma abordagem integradora da sustentabilidade, incorporando suas dimensões econômica, social e ambiental. Afinal, não se pode exigir de países do interior do continente africano o mesmo “sacrifício” que se propõem a efetuar as populações dos países escandinavos. Uns ainda sobrevivem em péssimas condições, passam fome, apresentam elevadas taxas de mortalidade, não têm acesso às mínimas facilidades do padrão de vida do mundo dito desenvolvido. Outros se permitem até mesmo falar em estagnação econômica, pois atingiram um padrão social típico do Estado do bem estar.

O nível gritante de desigualdade socioeconômica exige que os diferentes sejam tratados de forma diferenciada. Assim, a trilha para se alcançar uma humanidade mais justa e homogênea em termos de qualidade de vida não deve repetir a mesma trajetória equivocada, em particular a do padrão dos últimos 50 anos. No entanto, transformar o meio ambiente em mercadoria e operar apenas por meio de referência de preços artificialmente construídos tampouco se apresenta como solução para os graves problemas de nosso tempo. 

*Extraído de Carta Maior
**Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10

quinta-feira, 5 de julho de 2012

Gestão e sustentabilidade

Sustentabilidade de fachada*
Rafael Alcadipani**

Altos funcionários de diversos países do mundo, empresários e homens de negócios de todas as estirpes e representando os variados setores da economia, acadêmicos respeitados mundialmente, ativistas sociais e mais outras tantas pessoas 'importantes' estão reunidas no Rio de Janeiro para a Conferência Mundial Rio+20. A preocupação com o meio ambiente demorou para entrar na agenda de governos e empresas e, por isso, eventos como os que acontecem agora na Guanabara são de fundamental importância.

Estudiosos das organizações há certo tempo constataram que o mundo corporativo, assim
como as pessoas, seguem modas e modismos. Há mais ou menos oito anos empresas começaram a se preocupar em ser sustentáveis e socialmente responsáveis. A palavra de ordem virou sustentabilidade. A figura da empresa que degrada o meio ambiente pega mundo mal no mundo de hoje. Empresas também falam que começaram a se preocupar com a vida das pessoas ao seu redor, criando projetos de "responsabilidade social".

Nada contra tais iniciativas, que são, na verdade, muito bem vindas, afinal todos nós devemos lutar por um mundo melhor. Agora, quando uma empresa de cigarros investe em educação para 'fazer pessoas melhores', quando uma empresa petroleira investe para melhorar o meio ambiente e assim por diante fica um cheiro meio esquisito no ar. Há uma incoerência entre a sua atividade cotidiana e a sua dita responsabilidade social. 

Vamos aos exemplos. A Profa. Liliana Segnini escreveu na década de oitenta um livro magistral chamado "Bradesco a Liturgia do Poder" (São Paulo, Educ, 1986). No texto, a Profa. mostra como o banco construía um sistema de controle e dominação para disciplinar o corpo e a mente de seus funcionários. Um dos componentes deste sistema era a instalação de escolas de primeiro grau em áreas extremamente pobres do Brasil para que as crianças, desde pequenas, fosse adestradas dentro da 'filosofia Bradesco' e um dia se transformassem em funcionários do banco. Tirava-se o beneficio da pobreza para criar desde pequeno um controle da mente, ideal para ter funcionários que não questionam e amam a empresa.

Ola Bergström e Andreas Diedrich, da Universidade de Gotemburgo, publicaram um artigo acadêmico recente no periódico Organization Studies mostrando como uma empresa sueca de alta tecnologia recebeu prêmios por ser 'socialmente responsável' no mesmo ano em que demitiu 10.000 funcionários. Isso porque muitos dos selos e prêmios de responsabilidade social e sustentabilidade são baseados na análise de relatórios que geralmente são maquiados para vender as iniciativas da empresa como sendo melhores do que realmente são. São quase uma obra de ficção. Além disso, os professores suecos mostram como a empresa, por ser grande e ter muito poder, conseguiu influenciar para conseguir o tal prêmio, apresar de ter feito um dos maiores cortes de funcionários da sua história.

A moda da sustentabilidade e da responsabilidade social criou toda uma indústria de consultores e consultorias especializadas, cursos, palestrantes que ajudam as organizações a criar uma imagem de serem sustentáveis e responsáveis socialmente sem que eles
mudem aspectos centrais de seu negócio que é social e ambientalmente irresponsável. Bobby Banerjee, professor e pesquisador da Universidade do Sul da Austrália, possui estudos interessantíssimos em que ele mostra como a moda da sustentabilidade está centralmente fundamentada em uma lógica da racionalidade econômica, não em uma lógica ecológica.

Trocando em miúdos, isso significa que o meio ambiente virou um produto de mercado e de consumo, como qualquer outro. A consequência disso é que as empresas passam a ganhar a licença para explorar o Meio-Ambiente ao seu bel prazer enquanto ficam com uma áurea de serem ecologicamente responsáveis. A preservação do meio ambiente e o respeito ao ser humano somente podem acontecer com uma mudança das relações econômicas e sociais entre as pessoas. Não há como explorar petróleo e minério e ser ecologicamente responsável ao mesmo tempo.

Não é possível querer lucros estratosféricos e respeitar a humanidade dos funcionários. Não é possível adestrar pessoas ou demiti-las ao milhares e se dizer socialmente responsável. No limite, não é possível buscar a constante maximização de resultados e ser ecologicamente e socialmente decente. Uma coisa vai excluir a outra. Dizem que o falecido Prof. Maurício Tragtengberg costumava comentar que empresas existem e servem para gerar lucro, assim como um leão é carnívoro. A rigor, não há nada de surpreendente ou de novo nisso. Porém, há algo de estranho no ar quando o leão anda pela selva dizendo que é vegetariano.

*Extraído de Brasil 247
**Professor adjunto da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas