quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Conhecimento e desenvolvimento

A economia da criatividade*


Ladislau Dowbor



Um produto hoje se torna viável e útil muito mais pelo conhecimento incorporado (pesquisa, design, comunicação etc., os chamados intangíveis) que pela matéria-prima e trabalho físico. Trata-se de um deslocamento-chave relativamente à economia dos bens materiais que predominaram no século passado.

O fator-chave de produção no século passado era a máquina. Hoje, é o conhecimento. Podemos chamar este, enquanto fator de produção, de capital cognitivo. O embate que hoje se trava no Brasil em torno da propriedade intelectual, ainda que se apresente sob a roupa simpática da necessidade de assegurar a remuneração do jovem que publica um livro ou do pobre músico privado do seu ganha-pão pela pirataria, envolve na realidade o controle do capital cognitivo. Nas palavras de Ignacy Sachs, no século passado a luta era por quem controlava as máquinas, os chamados meios de produção. Hoje, é por quem controla o acesso ao conhecimento. Estamos entrando a passos largos na sociedade do conhecimento, na economia criativa.

Como sempre, quando se trata de poderosos interesses, há uma profusão de enunciados empolados sobre ética, mas muito pouca compreensão, ou vontade de compreender, o que está em jogo. Este artigo busca trazer um pouco de explicitação dos mecanismos.

Podemos partir da construção teórica muito transparente que nos apresenta Clay Shirky, no seu Cognitive surplus(Excedente cognitivo). Primeiro, vem o próprio conceito de excedente cognitivo. Cada um de nós tem grande quantidade de conhecimentos acumulados, que nos vem tanto de estudos como de experiência prática. Compartilhamos apenas uma pequena parte desse conhecimento acumulado, e utilizamos menos ainda o nosso potencial. Somando o capital cognitivo acumulado em bilhões de pessoas no mundo, temos aí uma fonte impressionante de riqueza parada ou subutilizada.

Uma dimensão do uso desse capital cognitivo é a que utilizamos para a nossa sobrevivência, no emprego, nas pequenas negociações do cotidiano. Mas, de longe, a maior parte fica simplesmente armazenada na nossa cabeça, às vezes partilhada com filhos e amigos, na esperança que não repitam as nossas bobagens. E quando nos vem uma grande ideia, nem sempre a aproveitamos, pois não temos o meio de disponibilizá-la. Fica na nossa cabeça, com fortes possibilidades de mofo, a não ser que pertençamos ao ambiente de criação especializado que corresponde, ou surja um espaço colaborativo aberto em que possamos dar-lhe vazão. Em termos técnicos, é em grande parte um capital parado, ou travado por conceitos estreitos de interesses comerciais fixados na lógica da era dos bens materiais, destes que se trancam em casa ou na garagem.

O conhecimento é diferente. Um produto hoje se torna viável e útil muito mais pelo conhecimento incorporado (pesquisa, design, comunicação etc., os chamados intangíveis) que pela matéria-prima e trabalho físico. O computador que utilizamos poderá ter 5% de valor pela dimensão física do produto, e 95% pelo conhecimento incorporado. Trata-se de um deslocamento-chave relativamente à economia dos bens materiais que predominaram no século passado. A ideia que tenho não obedece às mesmas regras.

Conhecimento muda as relações comerciais

As regras são diferentes porque o conhecimento, como principal fator de produção de bens e serviços na economia moderna, muda as relações comerciais. Se peço um quilo de arroz emprestado a meu vizinho, devolverei o mesmo pacote de arroz, ou o valor equivalente — do contrário, ele terá prejuízo. Mas se ele me dá uma ideia sobre como preparar um bom prato com esse arroz, eu ganhei uma boa ideia e ele não perdeu nenhuma. Ele fica feliz por ensinar, eu por aprender. Por isso, aliás, é que todos nós oferecemos receitas, não o produto. O conhecimento é um fator de produção que, contrariamente ao arroz, aço, petróleo ou madeira, não reduz quando se consome. Pelo contrário, como cada ideia tende a gerar outras ideias por via de associações inovadoras, o estoque de ideias se multiplica. E como a ideia está se tornando o principal fator de geração de riqueza, todos enriquecem. A não ser, naturalmente, que alguém diga “esta ideia é minha”, e a tranque em barreiras virtuais.

A mudança é profunda. Tudo que estudamos em Economia está centrado na sua missão principal, que é a alocação racional de recursos escassos: alocação de bens que, se forem utilizados num produto, não estarão disponíveis para outros. No caso da ideia, do conhecimento, deixam de ser escassos por duas razões: primeiro, porque pela própria natureza não são bens rivais, quem comunica uma ideia não deixa de tê-la. Segundo, porque a ideia, sendo imaterial, software da economia por assim dizer, pode ser transmitida em volumes virtualmente infinitos nas redes de internet que hoje conectam o planeta: 2 bilhões de pessoas hoje, e durante esta década provavelmente todos os habitantes, todas as escolas, todas as empresas, repartições públicas, hospitais ou postos de saúde. É a era da conectividade. Como o conhecimento deixa de ser escasso, em vez de buscar novas regras, empresas tentam torná-lo escasso, para que possam cobrar pelo acesso. Em vez de multiplicar riqueza, o sistema passa a restringi-la.

A mudança atinge também outro ponto básico da teoria econômica: o das motivações. Durante longo tempo, o nosso raciocínio econômico se viu paralisado pela magistral simplificação de que as motivações no comportamento econômico se reduzem à maximização racional de vantagens. Realmente, se é para apertar 3 mil parafusos por dia, a possível motivação não está no que fazemos, mas no quanto isso nos rende. A economia criativa desperta uma grande motivação subestimada: o prazer de realizar uma coisa útil, o gosto de contribuir, a excitação de uma coisa nova. Junte-se o prazer de construir algo de forma colaborativa com outras pessoas, a satisfação do trabalho competente, e temos a mistura necessária para uma profunda transformação nas regras do jogo. Nas palavras de Shirky: “Assumir que as pessoas são egoístas pode se tornar uma profecia que se autoconfirma, criando sistemas que asseguram muita liberdade individual para agir, mas não muito valor público ou gestão de recursos coletivos para o bem público” [1].

Podemos ir além: hoje, colaborar não é apenas uma oportunidade, é uma necessidade. Para a sobrevivência de todos, o acesso às tecnologias que reduzem o impacto climático, por exemplo, não só não deve ser travado por patentes, como fomentado. Generalizar o conhecimento, ampliar a base planetária de pessoas conscientes, torna-se cada vez mais vital. Afinal, estamos gastando rios de recursos em educação para depois travar o acesso ao conhecimento?

De onde vem o sucesso da Wikipédia, a maior e mais eficiente enciclopédia que a humanidade já produziu? Vem simplesmente do prazer das pessoas contribuírem para o conhecimento geral. O imenso estoque planetário de conhecimentos acumulados na cabeça das pessoas, com a sua impressionante diversidade, pode simplesmente ser transformado em instrumentos úteis para todos. E na era da economia do conhecimento, quando este se torna o principal fator de produção de riquezas, colocar em rede tal capital cognitivo melhora a condição humana. Viver melhor não constitui uma remuneração, ainda que não monetária? Quase esquecemos o quanto o WWW e a conectividade planetária resultante estão dinamizando a produtividade de todos nós e melhorando a nossa qualidade de vida. Quem administra a internet é uma instituição sem fins lucrativos. As ondas eletromagnéticas são um bem público.

Qual é a governança do sistema que resulta? Juntando-se os aportes de livros como Cognitive surplusde Clay Shirky; Wikinomicsde Don Tapscott e Anthony Williams; Grátis: O futuro dos preços, ou ainda A cauda longa de Chris Anderson;Apropriação indébita de Gar Alperovitz e Lew Daly;O futuro das ideias ou Remix de Lawrence Lessig;A era do acesso de Jeremy Rifkin, e outros, constatamos que estão se desenhando os mecanismos e a teoria desse novo universo, a economia do conhecimento.

*Extraído de Outras Palavras

quinta-feira, 24 de agosto de 2017

Neruda

Siempre


Pablo Neruda


Aunque los pasos toquen mil años este sitio,
no borrarán la sangre de los que aquí cayeron.

Y no se extinguirá la hora en que caísteis,
aunque miles de voces crucen este silencio.
La lluvia empapará las piedras de la plaza,
pero no apagará vuestros nombres de fuego.

Mil noches caerán con sus alas oscuras,
sin destruir el día que esperan estos muertos.

El día que esperamos a lo largo del mundo
tantos hombres, el día final del sufrimiento.

Un día de justicia conquistada en la lucha,
y vosotros, hermanos caídos, en silencio,
estaréis con nosotros en ese vasto día
de la lucha final, en ese día inmenso.

quinta-feira, 27 de abril de 2017

Reforma da Previdência

Previdência Social e Dívida Pública: a falácia das falências


Daniel Roedel


O núcleo do Rio de Janeiro da Auditoria Cidadã da Dívida Pública e o coletivo À Esquerda da Praça promovem no dia 4 de maio, à partir das 18 horas, na praça São Salvador no Rio de Janeiro, importante debate em praça pública sobre dois temas cruciais para o desenvolvimento e o bem estar do país: a reforma da Previdência Social e o Sistema da Dívida Pública.

A proposta é desmistificar a propalada falência da previdência e relacioná-la à dívida pública, que anualmente transfere recursos do país para o rentismo internacional. Um dos argumentos da dívida é outra falácia: a falência do Estado, que gera a necessidade de se pagar elevados juros de empréstimos duvidosos e privatizar empresas fundamentais para o desenvolvimento do país.

O debate é mais uma possibilidade para se mobilizar para o enfrentamento da agenda neoliberal que ainda pauta a gestão pública e o discurso da grande mídia no país.





--x--

quinta-feira, 2 de março de 2017

Dívida pública

A Classe Média ainda pretende chegar ao paraíso?


Helena Reis*


Os arautos anunciavam as boas novas que a globalização em curso iria trazer na virada do novo século. O ledo engano custou a ser destruído. Só aos poucos começamos a ter noção que o planeta estava em rota de colisão com problemas pipocando em toda a parte, enquanto os países da periferia perdiam gradativamente seu lugar no ranking internacional entrando num buraco sem fundo. 

Uma das sangrias que nos deixa anêmicos e sem fôlego responde pelo nome de Dívida Pública. É através deste mecanismo que metade do nosso orçamento se esvai como fumaça, de forma mais volátil que o mercado de capitais. E o perverso é que quanto mais se paga, mais se deve e então contraímos novas dívidas para pagar as anteriores. 

Apesar do esforço hercúleo, a situação só tende a piorar, pois vamos ficando encurralados e sem ter por onde escapar. Sem capital não investimos no setor produtivo e com a agravante de explorarmos exaustivamente nossos produtos primários sejam minérios ou produtos agrícolas denominados “commodities” , cujos preços perdem o valor no mercado internacional a cada dia. Somado a isso, criamos uma Lei chamada KANDIR, que isenta de impostos os produtos primários ou aqueles produtos que não apresentam valor agregado. Exportamos montanhas de ferro somadas a muitos minérios nobres e a receita dos Estados é irrisória. Em 2015 nossos investimentos foram de R$ 9,6 bilhões em 11 meses, enquanto a Dívida Pública chegou a R$ 730 bilhões. Então, acumulamos perdas em várias pontas. Não há como concorrer com a produção dita “imaterial “ que privilegia os desenvolvidos. O imaterial só desabrocha em estruturas e infraestruturas materiais - sejam laboratórios, redes universitárias, centros de pesquisa. E neste sentido o Brasil, além de não investir em pesquisa e tecnologia para se tornar um país de 1º mundo, ainda promove o desmonte de sua precária estrutura acadêmica tecno–científica. Assim tudo que importamos nos custa o olho da cara, mas o que vendemos é cada vez mais a preço de banana. 

Quem olha de fora para o nosso gigantismo territorial pensa que dessa Terra, que tudo dá , ainda é possível extrair muito mais e ficam arquitetando novas formas de ganho. E o que já era ruim pode ficar ainda pior. De repente assistimos a nova investida do poder econômico através da imposição ao Congresso de um conjunto de leis capaz de retirar os parcos ganhos do trabalhador brasileiro que eles julgam deveras aquinhoado e privilegiado desde a criação da CLT na época de Getúlio Vargas e tudo isso sobre a rubrica de ajuste da economia para nova era de crescimento. Mas, esse pacote de medidas não só atinge os trabalhadores, que são os menos aquinhoados, mas corta fundo na carne, as conquistas do funcionalismo público constituído de pessoas oriundas da classe média. 

A classe média ou a pequena burguesia como também é chamada, não reconhece com clareza quem são seus inimigos ou contra quem teria de lutar. Historicamente se aliançou com as camadas mais altas do estrato social, talvez considerando ser possível uma futura ascensão nesta pirâmide. Essa classe, tendo assimilado toda a formulação da alta burguesia hoje em aliança com o capital financeiro internacional, tornou-se o elemento que não só avaliza suas ações como serve de mola amortizadora no confronto entre o capital representado pelos empresários e o trabalho executado pelo operário. 

Do que a classe média tem medo? De perder algumas regalias que conquistou ao longo da história tais como emprego, casa própria, plano de saúde e escolas para os filhos sempre prontos e receptivos a receber formação acadêmica necessária à continuidade do modelo a que estão acostumados e ao qual se agarram ferrenhamente com unhas e dentes. Algumas ambições norteiam a classe média e o seu sonho de ascensão social: Uma delas é essa de investir numa esmerada educação dos filhos com uma trajetória que prevê a conquista de uma vaga em Universidade pública seguida de um mestrado e um doutorado e, se possível com extensão em outras Universidades internacionais de preferência americana, inglesa ou francesa. Ao se preparar adequadamente o jovem imagina estar apto não só a conquistar bons postos no mercado de trabalho como também a se classificar em concursos públicos onde poderá galgar postos não só bem remunerados mas com estabilidade que só o Estado garante. 

Podemos então observar um fluxo permanente de profissionais já formados, que abandonam seus empregos em empresas para se aventurar em concursos públicos em busca inequívoca de segurança. E porquê a debandada da empresa privada? Eis uma boa pergunta e uma grave resposta. Se o que norteia a empresa privada é a eficiência e lucratividade, ela tem como regra manter certa instabilidade na permanência dos seus quadros e diante disso troca sem pestanejar a experiência, até de um executivo de alto nível que se torna com o passar dos anos mais caro e exigente, pelos jovens que ingressam pela 1ª vez no mercado de trabalho dispostos a aceitar desafios, a correr riscos, a galgar posições e aceitar uma faixa salarial mesmo que seja aquém das suas pretensões. A replicação do mesmo processo vai ocorrer inexoravelmente e o jovem não pode se esquecer que suas chances, com o avanço da idade, irão sendo dilapidadas cada vez mais. Os sessenta anos de idade de ontem, representam os quarenta de hoje , agudizando o processo. Quanto aos concursos, com o aumento do número de candidatos e a diminuição respectiva do número de vagas, a aparente saudável iniciativa acaba virando uma roleta de pôquer onde não se sabe quem vai ganhar. Muitos, depois de investirem dinheiro e tempo durante dois ou três anos, abandonam o sonho do emprego seguro e se reorientam novamente para o mercado de trabalho só que, dessa vez, solapados pela insegurança e decepção. 

Várias medidas em pauta no Congresso Nacional, se votadas, vão fazer um grande estrago nos sonhos da classe média e seus pontos de fuga . Elas são conhecidas pelas iniciais seguida do respectivo número que de tanto repetir acabamos guardando é o PLP 257 e a PEC 241/2016 e a 31/2016, além de um bastardo anterior a 143/2015 

Mas o que têm essas Leis em tramitação no Congresso capaz de tirar o sono e a tranquilidade das pessoas conscientes mas também de manter na indiferença milhões de brasileiros absolutamente alheios ao que está sendo urdido embaixo das suas barbas? 

Será que esta minoria tem razão ou sofre da paranoia do medo sem razão? 

A primeira questão é saber que a divulgação da modificação de um conjunto de artigos, pouco explicitados , não é do interesse da imprensa e portanto já se elimina de imediato qualquer ideia de complô ou de mudança nas regras do jogo com consequências funestas para o conjunto da população. Sendo assim, como organizar os cidadãos a não aceitarem passivamente a conspiração em curso? 

A segunda questão é que tal como acontecia em Roma onde o povo era engambelado com a distribuição de pão e circo , hoje nós estamos exultantes por um macro acontecimento internacional chamado Olimpíadas e daí porque nos preocuparíamos em gerenciar nosso Congresso tão competente e digno representante dos direitos do povo brasileiro. Claro que não , delegamos e pronto , lavamos as mãos. A PLP 257 é um acordo “ super bem intencionado” do Governo Federal para “salvar os ESTADOS” de uma dívida, que na verdade já foi paga inúmeras vezes e só não zerou porque os juros oficiais calculados pelo IBGE, o IPCA, foi substituído arbitrariamente pelo GPDI, um índice oficioso, calculado pela Fundação Getúlio Vargas e que exorbita do direito de ferrar com os nossos próprios irmãos. 

Vai daí que quando a situação chegou a um ponto crítico o pagamento foi alongado, mas as chamadas condicionantes se apossaram dos Estados moribundos sem condição de defesa . E, junto com os Estados, os servidores vão sofrer represálias de toda a ordem. Se eu citasse artigo por artigo tenho certeza que ninguém entenderia o dolo ou a mutreta. A linguagem principalmente a escrita desenvolveu formas retóricas para ocultar sacanagem aos mais desavisados e até aos mais descolados. Estão em curso formas devastadores de mudança que prejudicarão gregos e troianos. 

Vamos dar dois exemplos de artigos referentes à PEC 287, da Reforma da Previdência: 

4. Considera Aposentadorias e Pensões como “Despesas de Pessoal” 

Se não interpretarmos, quem vai entender isso numa primeira leitura feita sem má fé? Primeiro precisamos saber que as Aposentadorias e Pensões são frutos de uma poupança feita lá atrás, quando o sujeito começou seu primeiro dia de trabalho e teve de descontar mês a mês até o último dia da sua vida profissional, sem refresco. Esse dinheiro foi aplicado, rendeu juros e de forma alguma pode entrar na rubrica de despesas de Pessoal. Entenderam a manha? Mas além, em outro item ficamos sabendo que vão mexer na já perversa Lei da Responsabilidade Fiscal e desta feita com o objetivo de limitar o reajuste do salário mínimo com prejuízo no caso tanto para os ativos como para os aposentados. E mais, também em curso a privatização da previdência dos servidores públicos e na esteira a restrição do tamanho do serviço público que vai encolher drasticamente. 

5. Possibilita Regime Especial de Contingenciamento 

O contingenciamento é um modus operandi tupiniquim que retira verbas já orçadas e reservadas para desviá-las sem nenhum pudor para uma prioridade chamada pagamento da Dívida Pública. Não podemos nos esquecer que a Lei da Responsabilidade Fiscal, que coloca o administrador numa camisa de força com gastos restritos mesmo para setores fundamentais ou até emergenciais, libera qualquer fluxo de caixa quando o assunto é pagar Dívida. Honramos nossos compromissos com os banqueiros internacionais, mesmo que o circo pegue fogo e o povo passe fome. 

Quanto à PEC -241/2016 o grande golpe é propor o congelamento dos gastos sociais por até 20 anos e não importa se o país melhorar suas finanças, aumentar seu PIB ou ganhar alguma Copa do Mundo. Aqui no país do carnaval, do futebol, a Lei agora é da chibata. Sem dinheiro, sem trabalho, sem saúde, sem escolas, os presídios vão se multiplicar, as crianças vão perambular cada vez mais pelas ruas e o tráfico vai prosperar. 

E o saco de maldades que compete com o Bacen com mais requinte ainda, resolveu através da genialidade do Senador José Serra inventar um PLS de nº 204 visando legalizar a emissão de “debêntures” por entes federados . Quem irá ganhar dinheiro vendendo papéis da dívida ativa dos municípios? Duvido que sejam as cidades e que o dinheiro seja aplicado para o bem público. E para finalizar ainda falta contar que a tal da DRU (Desvinculação da Receita da União) de 20% do orçamento da União agora vai ser aumentada para 30% e como cala boca para os outros entes federados será também prerrogativa dos Estados (DRE) e dos Municípios (DRM). 

Voltando a falar da Classe Média, que imediatamente terá de reformular o seu sonho de conseguir um emprego público, uma vez que os concursos serão praticamente extintos e quando houver necessidade de pessoal a terceirização resolverá o problema. E por falar em terceirização essa foi a forma inteligente que o neoliberalismo encontrou para burlar as Leis trabalhistas e instituir novo modelo de exploração do trabalho. Terceirizado não tem estabilidade, autonomia de voo , férias , 13º salário, espírito de corpo, identidade, nada enfim. Além disso são indesejados pelo trabalhador que se sente ameaçado com a sua presença. Os terceirizados estão virando párias profissionais, sem apreço pelo próprio trabalho e por si mesmo . 

Quanto aos aposentados atuais, cujos salários nos próximos 20 anos irão sofrer drásticas perdas, espera-se que completem suas necessidades com empréstimos consignados em folha quando então perderão de vez qualquer possibilidade de vida digna. 

Niterói, 1º de agosto de 2016

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*Membro do Núcleo Rio de Janeiro da Auditoria Cidadã da Dívida Pública; autora do livro Crônicas de uma espoliação crônica via dívida pública e outros males.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

Desenvolvimento ou dependência?

Ilegalidades e ilegitimidades da Dívida Pública Brasileira*


Daniel Roedel**


O processo acelerado da acumulação do capital, proporcionado pela globalização neoliberal, tem intensificado as crises e diminuído os períodos em que elas ocorrem, tornando também globais seus impactos. No entanto, mesmo com as crises intensas e acirradas, o capitalismo continua dominando o pensamento e orientando a ação política. Na atual fase de hegemonia do pensamento neoliberal, em que se manifestam concepções que valorizam a liberdade individual, o livre-mercado e o livre-comércio, impõem-se reformas aos Estados, por meio da desregulamentação e da adoção dos princípios oriundos da gestão privada.

A dependência em relação a este modelo é reforçada pelas dívidas públicas dos países, fato que repercute na composição dos orçamentos públicos, que reservam elevados recursos para o pagamento de dívidas e serviços. Para garantir a efetiva alocação de recursos é assumida uma disciplina fiscal e uma austeridade na gestão pública para aumentar a receita e se obter superavits primários.

O Brasil tem sido um exemplo dessa conduta. A cada ano o orçamento federal reserva aproximadamente 50% para o pagamento de juros e serviços da dívida pública, ou seja, recursos diretamente comprometidos com o grande capital. Além disso, ocorre também um avanço desses capitais rumo aos percentuais restantes do orçamento público, uma vez que serviços públicos como educação, saúde e segurança são assediados por privatizações por meio de financiamento direto ou pela terceirização para as Organizações Sociais (OS).

O exemplo brasileiro se coaduna e reforça o argumento de Altvater (2010) acerca do papel desempenhado pela Troika[1] na gestão da crise Europeia de 2008, na qual a austeridade recomendada remeteu a uma ditadura financeira e colocou em segundo plano, para os governos, os compromissos sociais essenciais para a superação da crise. A prioridade dos orçamentos foi o cumprimento dos compromissos de dívida assumidos com os credores internacionais, que tiveram o apoio de instituições multilaterais.

Se tais políticas de austeridade vêm impondo restrições à ação social de governos em favor do capital, antes de representarem uma pressão para o resgate do que entendem por débitos, cumprem o papel de renovar, a cada “acordo” de negociação, a relação de dependência dos países devedores com os credores privados. É, portanto, uma situação em que a dívida se destina a “regular o comportamento do devedor” (ZIZEK, 2015, p. 145-146).

Esse papel do Estado é favorecido pelo argumento ideológico que o caracteriza como ineficiente, péssimo gestor e incapaz de prover adequadamente os serviços públicos. Sob essa ótica, sua reconfiguração passa pelo enxugamento da estrutura, privatização de empresas, incorporação de princípios de gestão adotados pela iniciativa privada, e até mesmo pelo financiamento dos capitais para assumirem serviços públicos. Desse modo, a gestão do Estado se integra à criação e circulação do capital e aos fluxos monetários, ao mesmo tempo em que, orientado pelos princípios da gestão privada, suas iniciativas buscam os mesmos resultados de monetários, mercantis e privatistas (HARVEY, 2011, p. 47-48).

Porém, o argumento da ineficiência do Estado desconsidera o relevante papel que este desempenhou no processo de industrialização de países desenvolvidos, inclusive por meio de financiamentos, e do planejamento e organização, que historicamente corrigiram os rumos desorientados dos mercados livres (HARVEY, p. 63).

A crise recente dos mercados foi mais uma evidência desse financiamento público à iniciativa privada. É a sociedade quem paga os custos decorrentes de mercados desregulamentados e de livre especulação financeira, características do modelo de acumulação capitalista que contou ainda com uma tecnologia que possibilita a realização de operações em instituições localizadas em diversas partes do mundo, principalmente em paraísos fiscais (FATTORELLI, 2013, p. 15-16).

A subordinação dos governos e de instituições multilaterais em favor do setor financeiro se evidencia mais ainda no critério adotado para a liberação de recursos para a superação da crise, que garante aos bancos a cobrança de juros elevados e obriga os países tomadores a seguirem receituários de ajuste econômico que acentuam os problemas sociais decorrentes do próprio salvamento de bancos e outras instituições financeiras. Trata-se, portanto, de um sistema de endividamento público que transfere recursos públicos para o sistema financeiro e perpetua o endividamento público tanto interno quanto externo (FATTORELLI, 2013b, p. 50).

No Brasil, no tratamento dado à crise de 2008, podem ser destacados alguns aspectos que reforçam esse papel, quando “algumas grandes empresas e instituições financeiras, que já apostavam no mercado de derivativos, contaram com forte ajuda estatal, mais especificamente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social – BNDES” (FATTORELLI, 2013, p. 28).

Do mesmo modo do que foi praticado em países da Europa, recursos financeiros, originalmente destinados para áreas sociais, tem sido contingenciados em favor do cumprimento de metas de superavit primário, causando arrocho fiscal e programas de austeridade para os governos em favor do pagamento de juros ao sistema financeiro (Idem, p. 2013, p. 34), subordinando fortemente os interesses públicos à agenda dos mercados.

Assim, esse domínio dos interesses dos mercados globais provoca alterações nas estruturas de poder nacionais, deslocando-as para estruturas transnacionais e, embora ainda de modo irregular, plurinacionais (FURTADO, 1999, p. 13). Isto fortalece o poder transnacional representado por empresas, que na busca da minimização de custos e do aumento da remuneração do capital atuam em âmbito planetário.

O enfraquecimento das estruturas de poder nacionais e sua subsunção aos mercados financeiros globais enfraquece também a condição de se criar políticas sociais, essenciais principalmente em períodos de agudização das crises dos mercados, tais como nos anos recentes. Assim, as políticas sociais são transferidas para a ação filantrópica de indivíduos e instituições sociais ou para a ação de responsabilidade social empresarial.

Evidenciam-se, portanto, as limitações dos mecanismos colocados pela ordem dominante como organizadores e mediadores dessas crises, no enfrentamento e na superação das externalidades negativas que gera.

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*Texto apresentado na conclusão do curso sobre a dívida pública realizado pela ACD.
**Editor de Plurimus Ideias

Nota

1 - Comissão Europeia, Banco Central Europeu (BCE) e Fundo Monetário Internacional (FMI).

Referências

ALTVATER, Elmar. O fim do capitalismo como o conhecemos: uma crítica radical do capitalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

FATTORELLI, Maria Lúcia. Auditoria cidadã da Dívida dos Estados. Brasília: Inove Editora, 2013.

_________. Auditoria cidadã da dívida pública: experiências e métodos. Brasília: Inove Editora, 2013b.

FURTADO, Celso. O longo amanhecer: reflexões sobre a formação do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.

HARVEY, David. O enigma do capital: e as crises do capitalismo. São Paulo, SP: Boitempo, 2011.

ZIZEK, Slavoj e HORVAT, Srecko. O que quer a Europa? Lisboa: Relógio D’Água Editores, 2015.

quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

Tempos difíceis

Quanto mais selvagem a sociedade, pior trata crianças,

velhos e prisioneiros*


(Entrevista concedida ao jornalista Eduardo Moretti pelo prof. Luis Gonzaga Belluzzo, Unicamp)

A política econômica do governo Temer não parece um arremedo de neoliberalismo, algo mais antigo, ou uma colcha de retalhos, com medidas de supressão de direitos, PEC do Fim do Mundo etc? Como define essa política?

É difícil lidar com nomes, com siglas. Acho que é uma política, mais do que conservadora, retrógrada. Ela tenta fazer um ajuste que não tem nenhum fundamento no funcionamento real da economia, movido por ideias muito conservadoras e precárias. É um desrespeito com os neoliberais mais atilados chamar essa política de neoliberal (risos).

Há uma crise muito profunda da teoria econômica, que está sendo avaliada e contestada por muita gente fora do Brasil. Aqui esse debate ainda não ganhou corpo, porque os economistas brasileiros ainda estão muito resistentes a abrir mão do aparato teórico que adquiriram fora do Brasil, e que não tem mais validade ou vale muito pouco e até os economistas mais atilados deles já estão começando a reconsiderar algumas questões. Quando a economia estava desacelerando, adotar aquele programa de ajustamento (com Dilma) é simplesmente inacreditável. Inacreditável que pudesse passar pela cabeça de alguém uma ideia que só se pode justificar por concepções equivocadas e mesmo ridículas.

O Moro está encharcado de convicções, foi ensinado assim, estudou nos EUA. Percebe-se que não tem cultura mais ampla. Isso faz falta entre operadores de direito e de economia. A gente sempre precisa achar que a gente sabe menos do que acha que sabe

No atual processo, estamos vendo acontecer com a Petrobras o que nem a ditadura – que tinha setores nacionalistas – e nem Fernando Henrique conseguiram…

Isso nasce de uma situação peculiar, que foi a investigação da Lava Jato. Porém, se você examinar os episódios de crimes financeiros nos Estados Unidos, por exemplo, eles procuraram preservar as empresas. Aqui, conseguimos fazer uma coisa muito grave: prejudicar uma cadeia produtiva muito importante, talvez a mais importante num momento de recuperação. Tem algumas coisas que só podem ser explicadas pela indigência mental dessa gente.

Ou estão certas as teorias da conspiração segundo as quais isso tudo foi orquestrado a partir de interesses externos?

Acho que o Sérgio Moro, por exemplo, nem sabe o que está fazendo. Isso é o pior nessa sociedade em que nós vivemos. Tanto ele (Moro) quanto os que deflagraram o ajuste não têm consciência exata do que estão fazendo. Há estudos agora sobre o caráter da informação, da língua, da linguística, dos falsos conceitos, o que tem a ver com a mídia brasileira, escancaradamente de quinta categoria.

O Moro é o que nos anos 1920 ainda se chamava idiot savant, uma expressão psiquiátrica, para falar do sábio idiota, aquele que só conhece a área dele e não consegue fazer uma relação entre a área dele e as demais. Então não acho que o Moro seja um conspirador. Ele está encharcado dessas convicções, foi ensinado assim, estudou lá, percebe-se claramente que não tem uma cultura mais ampla. Aliás, isso faz falta entre operadores de direito e de economia. A gente sempre precisa achar que a gente sabe menos do que acha que sabe.

O Brasil passa por uma conjuntura em que não se sabe se o governo vai cair, se vai haver parlamentarismo ou o que vai acontecer. É possível prever um cenário?

O cenário é muito obscuro, muito difícil de fazer previsão. Acho que a recuperação da economia vai demorar muito, mas esse sistema político que está aí é um obstáculo, não oferece nenhuma possibilidade de solução. Eles se comprometeram muito. Essa “PEC do Fim do Mundo” é uma insensatez. Qualquer pessoa com inteligência acima de dois neurônios se dá conta de que isso é um desastre. É uma coisa de hospício.

No entanto, passou…

Passou. Pois é. A gente tem que buscar a explicação numa região mais profunda da sociedade brasileira. Você está vendo o que está acontecendo com os presídios. Uma vez li no Norberto Bobbio que você pode avaliar o grau de civilidade de uma sociedade pela forma com que trata as crianças, os velhos e os prisioneiros. Quanto mais selvagem e mais bárbara a sociedade, pior o tratamento que dá a essas categorias de pessoas, que são as que estão à mercê do Estado, e deveriam estar sob a proteção do Estado. Você viu manifestações de deputados, secretários de Estado, dizendo que não tinha nenhum santo (nos presídios). Não se trata de santo ou não santo, trata-se de um sujeito que está investido da condição humana.

Há o atraso secular do Brasil, atraso social, moral e ideológico que vem lá do escravismo, e depois vem da desigualdade, e de todas as mazelas das quais esse país não se livrou. Isso tudo está cristalizado hoje em duas coisas: no mercado financeiro e na mídia de massas. Isso é que conforma o imaginário, a compreensão de muitos brasileiros entregues a isso sem nenhum poder de reação e nenhuma possibilidade de se informar alternativamente.

Depois de tanta luta pela redemocratização, o impeachment, como ocorreu, provocou em muitas pessoas um sentimento de total descrença no Brasil, os que acham que o país não tem mais jeito. Qual sua posição, está entre esses?

Não, porque se eu tivesse essa visão eu teria me retirado de alguma forma. Acho que a gente pode juntar forças democráticas e acho que uma parte da esquerda tem que entender que a democracia é importante. A gente está aprendendo que é importante, que as instituições são importantes. A gente está voltando às origens do pensamento de esquerda que era liberal democrático. O liberalismo político faz parte da construção dessa forma de ver o mundo, de organizar as instituições, junto com o controle da economia pelo Estado, sem que você se deixe iludir pela ideia de que o mercado se autorregule.

Não estou falando nada de novo, mas simplesmente voltando ao que disseram e praticaram os grandes estadistas do pós-guerra, como (Konrad) Adenauer (Charles) De Gaulle, (Alcide) De Gasperi, gente que se deu conta de que a democracia só pode florescer enquanto houver segurança econômica do cidadão, senão você desencadeia um processo perverso, como o que a gente está vendo aqui. O que é assustador aqui é nosso atraso cultural, intelectual, sobretudo nas camadas dos que se consideram acima dos mais fracos e mais pobres. Seria bom que o Brasil tivesse uma elite, mas não tem. O Brasil tem ricos, mas não tem elite.

As camadas superiores não querem saber do Brasil. É como se estivéssemos voltando à época do pau-brasil, isso aqui virou um campo de caça. Como se viessem fazer uma coisa extrativista: tirar e ir morar em Miami. Não têm solidariedade com o outro. E isso é fundamental, foi o que cimentou a construção do Estado do bem estar, que hoje está começando a se dissolver também na Europa. Isso é que é terrível. O capitalismo não consegue mais se proteger dele mesmo.

Mas, pelo menos no Brasil, a pouca civilidade que tinha está indo pelo ralo…

Sim, aqui a coisa é mais grave, mas na Europa a situação da Grécia, por exemplo, é terrível. Aumentou o número de suicídios violentamente. O que a gente quer? A gente quer dar uma contribuição para a sociedade e ao mesmo tempo ter direito de viver melhor. O que está colocado aí na frente pelo avanço tecnológico etc. é que você vai poder trabalhar menos horas. Precisamos nos livrar dessas relações postas nas empresas com os trabalhadores e a população, para que as pessoas possam trabalhar menos, curtir mais a vida. 

E o Palmeiras? Voltou a ser grande em 2016?

O Palmeiras sempre foi grande.