quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Gerencialismo

A vida como extensão da empresa - parte I*

Thomaz Wood Jr.

O humor é um conceito geralmente aplicado aos indivíduos. Dizemos, de nossos pares, que são bem-humorados, que têm senso de humor ou que estão de mau humor. O conceito de humor também pode ser aplicado, correndo-se certo risco de fazer generalizações indevidas, a países. Se aceitarmos tal risco, então podemos afirmar que nosso instável país já experimentou vários humores. Pindorama já teve a alcunha de tristes trópicos, local de exílio e desterro, já foi a varonil nação do futuro, a terra ufanista do “ame-o ou deixe-o” e o eufórico e barulhento país do carnaval.

Nos anos 1980, nosso humor mal resistiu às más notícias do front econômico. Flertamos com a depressão (depois da recessão), tornamo-nos violentos e quase enterramos nossa combalida cordialidade. Na década seguinte, nosso humor sofreu com as turbulências das mudanças econômicas, perdemos nossas ilusões políticas e ficamos mais céticos. Agora, por obra da providência divina e do mercado de commodities, vivemos um interlúdio bem-aventurado, catalisado por boas- novas, milagrosamente enfileiradas e cuidadosamente exploradas. Aqui e acolá, tentam nos convencer de que nunca fomos tão felizes.


A nação pindoramense abraçou, desde meados da última década, um novo humor, um humor catalisado pela adoção da cartilha neoliberal na economia e pela ascensão do gerencialismo no mundo das empresas e do trabalho.


Como noutras plagas, o novo humor incentivou o individualismo, transformou reclusos executivos em celebridades e incentivou profissionais a se verem como marcas de sabão, a serem incessantemente promovidas e vendidas, pela melhor oferta, no mercado de trabalho. E não ficou por aí. O novo humor ultrapassou as fronteiras corporativas, ganhou as ruas, a vida social, o governo e as artes. Nada lhe escapou. Talvez ele não seja, ainda, o humor oficial, absoluto, como ao norte do Rio Grande, mas já é um humor de referência, cujos desígnios não são sequer discutidos, porque foram assimilados e tornados “naturais”.


Um antropólogo que decida passar alguns quartos de hora em um escritório executivo poderá observar in loco alguns traços curiosos do mundo corporativo. Quiçá possa até mesmo estabelecer hipóteses sobre o imaginário e o comportamento de seus habitantes. Pelas estantes e mesas, o visitante encontrará pitorescos livros de gestão e vistosas revistas de negócios. Provavelmente, se assombrará com o exotismo e a criatividade dos títulos e das manchetes. A literatura de negócios e de gestão mistura a estrutura das fábulas infantis, a liberdade criativa da ficção científica e o apelo pseudopsicológico da auto-ajuda. Os autores do ramo parecem ter especial apreço por hipérboles e metáforas. Não temem o ridículo. Alguns parecem agir sob inspiração messiânica, seguros de que serão compreendidos, e imitados, por seus rebanhos.


Qualquer gerente, ou candidato a gerente, sabe que a ascensão profissional está condicionada ao domínio de um intrincado vocabulário, um palavrório cheio de anglicismos, neologismos e siglas. Aos desavisados, as idéias parecem densas e significativas, porém os conceitos são irritantemente imprecisos, vagos. Parece ser este o segredo do encontro entre a destrambelhada oferta com a não menos destrambelhada demanda.


Alguns gestores contemporâneos apresentam comportamento maníaco-depressivo: seu humor oscila entre momentos marcados por temores e preocupações com a própria sobrevivência e momentos de euforia, marcados por sonhos de grandeza e pela elaboração de estratégias de ascensão. Muitos leitores adotam a literatura de negócios e gestão com fervor religioso. Tratam-na como guia espiritual para enfrentar chagas e oportunidades da vida corporativa.


Nem sempre foi assim. O espetáculo da vida corporativa já foi mais sóbrio, sem a apelação e a pirotecnia atuais. Há duas décadas, quem visitasse o escritório de um executivo, se depararia com um ambiente diferente do atual, com decoração mais comportada. No centro, uma mesa de madeira escura, as gavetas trancadas à chave. Ao lado, um arquivo metálico de pastas suspensas, de cor verde oliva, igualmente fechado. Junto à parede, uma estante impecavelmente arrumada, a exibir manuais técnicos e, vez por outra, biografias de Winston Churchill e do General Patton. No meio do papelório, a conferir pompa e circunstância ao ambiente, pastas, desenhos e cadernos de folhas quadriculadas, repleto de números e contas. Há duas décadas, o ocupante da alcova burocrática era um austero empresário, preocupado com problemas da linha de produção, com os controles de preço impostos pelo governo e com a inflação. Seu dia era ocupado com a leitura e análise de relatórios, a realização de cálculos.


A mudança ocorrida nas duas últimas décadas nos escritórios corporativos reflete mais do que tendências decorativas. O que ocorreu foi uma mudança de forma e conteúdo do trabalho gerencial. Faz parte do que os especialistas chamam hoje de gerencialismo, uma história ainda mais ampla e antiga, de mais de cem anos, cujos efeitos são sentidos no nosso dia-a-dia, porém nem sempre notados ou compreendidos.


O gerencialismo é usualmente entendido como um conjunto de teorias, métodos e práticas, as quais evoluem ao longo do tempo e destinam-se a garantir o melhor desempenho possível para as empresas. O gerencialismo é também visto como uma ideologia, prima-irmã do neoliberalismo, que tem na base a crença de que a aplicação de melhores ferramentas de gestão pode resolver problemas empresariais, sociais e econômicos. Seu surgimento ocorreu no início do século XX, com a criação das escolas de gestão. Nas primeiras escolas norte-americanas, o corpo de professores era formado por gente trazida diretamente das fábricas, para partilhar sua experiência prática com os pupilos. Embora parecesse um caminho natural, o expediente passou, com o tempo, a ser criticado. Até porque uma solução boa para uma empresa pode causar um desastre em outra.


A primeira tentativa de escapar dos limites do conhecimento estritamente prático e trazer ciência para a gestão se deu pela adoção dos princípios de “gerenciamento científico”, de Frederick Winslow Taylor (1856-1915), o mestre dos cronômetros e dos estudos de tempos e movimentos. Taylor foi um engenheiro obcecado por eficiência industrial, que legou ao mundo os famosos estudos de tempos e movimentos.


Também é de sua lavra o princípio da separação entre o trabalho de planejamento, realizado pelos gerentes, e o trabalho de execução, realizado pelos trabalhadores. Consta que ele próprio fracassou, em várias oportunidades, como consultor industrial. Entretanto, seus princípios e métodos perduraram, marcando gerações de administradores e fundamentando métodos de gestão nos mais variados setores de atividades. Semelhanças entre a cozinha das lanchonetes fast-food, os escritórios de empresas estatais, as linhas de montagem de automóveis e os call centers são bem mais do que coincidências.


Nas décadas posteriores, ocorreram novas tentativas para envernizar a tosca estrutura conceitual do gerencialismo e lhe conferir ar de ciência respeitável. O esforço surtiu efeito: a administração se tornou uma profissão reconhecida e popular, e o seu campo científico ganhou reputação e respeito entre outras comunidades. As escolas norte-americanas de gestão tornaram-se elas próprias grandes negócios e se espalharam pelo mundo. Comunidades de pesquisadores, inspiradas pelo modelo ianque, espalharam-se pelo planeta e geraram clones.


No entanto, não faltam crises e críticos, a denunciar a inutilidade das pesquisas científicas realizadas nas universidades e a incapacidade das escolas de preparar gestores capazes de atuar no mundo real. Outra praga que afeta o campo é o gosto dos executivos por modas gerenciais, incessantemente promovidas por consultores, jornalistas especializados e professores. Por sua vez, historiadores do gerencialismo criticam sua falsa neutralidade e o seu conservadorismo. Segundo tais críticos, além de constituir per se uma ideologia do capital, o gerencialismo teria consolidado princípios de hierarquia, planejamento e racionalidade próprios das organizações militares. Isso teria ocorrido após o fim da Segunda Guerra Mundial, com o retorno dos militares norte-americanos e sua incorporação à vida civil, havendo depois se propagado e consolidado ao longo de toda a Guerra Fria.

*Extraído de Carta Capital. Para ler o artigo completo clique em Gerencialismo.

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