quinta-feira, 20 de novembro de 2008

Gerencialismo

A vida como extensão da empresa - final*

Thomaz Wood Jr.**

A partir dos anos 1980, o gerencialismo sofreu forte impulso, decorrente da adoção das chamadas políticas neoliberais. O movimento, como se sabe, teve início no Reino Unido e nos Estados Unidos. Pontificando sob um país decadente, a primeira-ministra Margaret Thatcher apostou seu mandato na recuperação de valores vitorianos de trabalho duro, motivação, ambição criativa e independência, adaptando-os ao momento. Do outro lado do Atlântico, Ronald Reagan cruzou o desfiladeiro que partia da depressiva Era Carter, buscando a salvação no individualismo e no empreendedorismo.

O novo humor alimentou e foi alimentado pela adoção de políticas neoliberais. Cada um em seu nível de atuação, eles se casaram, se complementaram e iniciaram uma feliz vida a dois. O gerencialismo estava para as empresas e para os indivíduos assim como o neoliberalismo estava para as instituições e para os países. Reformado pelo humor emergente, o gerencialismo passou a ser visto como a melhor resposta aos desafios da globalização, senão a única resposta para evitar o declínio econômico de empresas, de regiões e de países. Seus valores, modelos e técnicas migraram rapidamente do Reino Unido e dos Estados Unidos para outros países desenvolvidos e, então, para a Europa do Leste, Ásia e América Latina.

Empresas e governos abraçaram rapidamente o novo credo. Cinco princípios compuseram um ideário que rapidamente se consolidou: primeiro, a crença inabalável na liberdade de mercado (o retorno da “mão invisível”). Segundo, a visão dos indivíduos como empreendedores de si mesmos (you Inc., copiado no Brasil como Você S.A., que se tornou título de revista de auto-ajuda). Terceiro, o culto da excelência como meio para o desenvolvimento individual e coletivo. Quarto, a crença de que as tecnologias gerenciais são válidas em todas as latitudes, longitudes e altitudes. E quinto, que estas mesmas tecnologias gerenciais, por suas qualidades (e também por seus poderes mágicos) são capazes de garantir os melhores resultados para as empresas.

Com o tempo, o novo humor ganhou status de credo, e este organizou uma igreja em torno de si. A sustentá-la, três vistosos pilares: as empresas de consultoria, as escolas de negócios e a mídia de negócios. Cada um destes pilares contribuiu, à sua maneira, para o aperfeiçoamento do novo credo. Abençoados na união, os componentes desta sagrada trindade cresceram e se multiplicaram.

Pindorama absorveu o novo credo com algum atraso, porém abraçou-o com vigor de noviço. Como em outros países, aqui também o grande impulso veio das reformas econômicas neoliberais. Desde o início do século XX, a condução da economia local foi marcada pela falta de apreço à ortodoxia. No entanto, no fim dos anos 1980 e início dos 1990, o Brasil passou a liberalizar a economia e a seguir as cartilhas recomendadas pelos organismos internacionais. As mudanças decorrentes – os programas de privatização, o movimento de fusões e aquisições, o aumento da competição entre empresas e a terceirização – geraram, como em outros países, forte demanda de serviços de consultoria e educação, e contribuíram para criar um terreno fertilíssimo para o avanço do novo credo.

Consultores, educadores e editores responderam prontamente à nova demanda. As maiores empresas mundiais de consultoria aqui se instalaram ou, se já instaladas, aumentaram seus quadros e ampliaram suas atividades. Durante toda a década de 1990, a indústria do conselho instigou corações e mentes a abraçar as novas ondas gerenciais que iam surgindo no horizonte. As escolas de negócios também cresceram vertiginosamente. Um de seus mais vistosos produtos, o MBA, foi associado a propriedades mágicas, como um passaporte capaz de levar seu titular para posições de destaque no topo da pirâmide corporativa. A mídia de negócios não ficou atrás. Ela cresceu e prosperou, traduzindo, adaptando e criando incansavelmente novos títulos.

A mídia de negócios é, aliás, o melhor ponto de observação do novo humor e do novo credo. O leitor que se dispuser a um breve mergulho nas revistas e nos livros de gestão notará facilmente a homogeneidade de conteúdo e estilo. Como uma companhia teatral de peça única e carreira ininterrupta, a mídia especializada replica edição após edição, livro após livro, seus conteúdos. Aqui e ali, pequenas adaptações e mudanças, apenas para garantir o sabor de novidade a um modelo que é considerado um grande sucesso.

No teatro corporativo retratado na mídia, o palco é sempre o mundo globalizado, habitado por empresas transnacionais e profissionais cosmopolitas. Os personagens são freqüentemente gerentes heróis que, por seus feitos extraordinários, transformam-se em celebridades. Suas realizações são validadas por experts acima de qualquer suspeita, gurus da consultoria ou professores de grandes escolas de negócios. As sagas são narradas à moda das fábulas infantis, temperadas com grandes desafios e impressionantes vitórias. Não há espaço para ambigüidades e meios-tons: certo e errado, bom e ruim, superior e inferior. Paradoxos e contradições não existem e o pragmatismo resolve todos os dilemas: “Vivemos em um mercado livre e vitorioso, de destino irreversível, no qual as empresas buscam constante renovação para se manterem competitivas, e seus funcionários devem pensar e agir como empreendedores autônomos e responsáveis”.

Como em toda igreja, também no templo do gerencialismo uma prática de cultos se estabeleceu. Em lugar de padres e sacerdotes, subiram ao púlpito gurus e curandeiros. Em lugar de elegias e preces, passaram a ser compilados e disseminados pungentes testemunhos de sucesso empresarial. Em lugar de histórias de redenção individuais, foram identificadas histórias de redenção empresarial. Pouco pão e muito circo. Para manter o público em contínuo êxtase, foram adicionados gurus locais aos já renomados, porém algumas vezes envelhecidos, gurus estrangeiros. Para adornar os templos, foram providenciados ícones, ídolos recém-canonizados, por façanhas reais ou fabricadas, à frente de grandes corporações.

Embora o novo credo seja único, monolítico, seus cultos são sempre renovados. Os sacerdotes do gerencialismo estão sempre próximos de seus fiéis. Eles, na verdade, confundem-se com seu rebanho. Consultores aperfeiçoam permanentemente seus modelos e ferramentas durante os projetos realizados nas empresas. Jornalistas mantêm amplas redes de contatos, das quais extraem as “últimas novidades”, editando-as e dourando-as para seu público. Professores, em cursos executivos, ensinam tanto quanto aprendem com seus estudantes.

Sólida, a nova igreja avançou firme e forte na troca de milênios. Ela passou quase incólume pelo estouro da bolha da internet e, em Pindorama, superou com tranqüilidade o avanço da estrela vermelha. Acreditou na onisciência, na inevitabilidade das eternas forças do mercado. Não se abalou. Apostou na neutralidade, reformou aqui e acolá seu discurso e seguiu imperturbável seu curso. Alguns gurus perderam sua aura, mas foram prontamente substituídos. Algumas modas feneceram, sob o peso de seu fracasso, mas outras rapidamente surgiram.

O novo humor e o novo credo ultrapassaram as fronteiras da economia e dos negócios. Avançaram pelos órgãos de governo, pela educação, pela saúde e pelas artes. Sua presença é discreta, porém visível. Empreendedorismo, sucesso e carreira são hoje temas recorrentes nos jornais, nas revistas semanais e até nas publicações femininas. As revistas de celebridades e as revistas de negócios tornaram-se primas próximas, a partilhar valores e estilos, e, eventualmente, editores e jornalistas.

Jovens vestibulandos hoje tomam decisões de escolha de carreira com base na avaliação futura do mercado e em conceitos de retorno sobre o investimento. Profissionais recém-formados sentem-se cada vez mais atraídos por ganhos rápidos no mercado financeiro. Em todas as faixas etárias, cresce o fascínio por criar negócios, tornar-se executivo ou empresário. A paixão pela carreira (rápida) substituiu a paixão pelo trabalho (sério). A conversa de negócios segue invadindo a vida social, as rodas de amigos, as relações.

Talvez tenhamos de aceitar a chateação como efeito colateral associado ao progresso econômico. Ou, quem sabe, tenhamos apenas de esperar pacientemente até que seu ciclo se complete e um novo humor lhe tome o lugar. E desejar que seja menos aborrecido do que o atual.

*Extraído de Carta Capital. Para ler o artigo completo clique em Gerencialismo.

**Professor da FGV-Eaesp. É autor dos livros Gurus, Curandeiros e Modismos Gerenciais (Atlas) e Organizações Espetaculares (Editora FGV).

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