quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Mídia

Consumidores, uni-vos!*
Ivana Bentes

Há um truque banal no recém-lançado "manifesto" dos publicitários. Ao apresentar a propaganda como base da liberdade de expressão, ele despreza público e sociedade. Mas ignora os movimentos pela radicalização da democracia — que exigem, inclusive, um novo padrão de propaganda.
A retórica e estratégia são conhecidas: qualquer tentativa do Estado de regular a mídia; qualquer movimento social que ameace os lucros exorbitantes da publicidade e a liberdade de empresa são considerados "censura" e "ataque a liberdade de expressão".

Em nova embalagem, a velha retórica. De forma grosseira, as emissoras de TV já tinham veiculado anúncio dizendo que o governo queria "tirar o direito do telespectador de escolher seus programas", diante da proposta em votação no Congresso de uma cota para conteúdo brasileiro nas TVs a cabo.
Como se os pacotes com enlatados e programas comprados pelas emissoras tivessem algum grau de "escolha" e participação do espectador, obrigado ainda a levar no pacotão que compra uma porcentagem de lixo cultural adicional.
O manifesto tenta nos convencer do contrário. Não, não somos nós — a audiência o espectador, o público e a sociedade — que sustentamos o mercado e a mídia e sim "a publicidade" em si. São eles, os mediadores, os publicitários, diz o manifesto, os verdadeiros protagonistas dessa história.

Transformados em arautos da democracia e da "livre expressão", os publicitários defendem no seu manifesto que "é a publicidade que viabiliza, do ponto de vista financeiro, a liberdade de imprensa e a difusão de cultura e entretenimento para toda a população. É a publicidade que torna possível a existência de milhares de jornais, revistas, emissoras de rádio e televisão, assim como de outras expressões da mídia." (!!!)

Ou seja: para os publicitários, estamos num cenário em que os mediadores são os protagonistas todo-poderosos da sociedade! Para eles, é a publicidade o esteio da democracia (e não o contrário: a radicalização da democracia que vai democratizar inclusive a publicidade corporativa). Que vende quase qualquer coisa, que cria necessidades, fidelidades, hábitos e valores, estilos mais ou menos predadores... É essa publicidade que quer se "auto-regulamentar"?

Os publicitários escamoteiam que é o espectador, a audiência, o público, a sociedade que produz valor simbólico e real. Conteúdos, opiniões, produtos, mídia — inclusive de graça e de forma colaborativa, hoje, com as novas formas de produção e difusão da cultura livre pós-internet. Produtos que, aliás, podem ser acessados diretamente, sem a mediação da publicidade tradicional.

O manifesto dos publicitários não discute o que poderia ser uma publicidade democrática ou com objetivos "públicos" e não simplesmente predadora ou visando o lucro imediato. Sequer cogita a emergência de uma série de movimentos e ativistas, que batalham no campo do consumo. Exigindo rótulos explicativos e indicativos dos venenos que ingerimos e que a publicidade vende sob um lindo design e letras miúdas.
Movimentos que exigem saber a origem da mão-de-obra de certos produtos, a forma de produção, a origem natural ou modificada, transgênica ou não, com ou sem agrotóxicos, etc.
Ao tentarem neutralizar a força do consumidor e se colocarem na "origem" da liberdade de expressão e como fonte primordial de sustentação da mídia democrática, os publicitários fazem uma peça de marketing ruim e corporativa, distorcida.

Esquecem, que o telespectador e a audiência, o público, o "prossumidor" (o consumidor que se tornou produtor e publicista) está mobilizado e é a nova forca de transformação no capitalismo midiático e imaterial.
O estágio atual é de politização do consumo! Não precisamos de manifesto de publicitários defendendo sua corporação e propondo "adequar" os cursos de Comunicação a suas exigências, adestrando os jovens a um complexo industrial/publicitário em crise. Precisamos de uma nova publicidade, de democratização, colaborativa e feita pelo próprio consumidor.
O que falta são mais movimentos de consumidores, de telespectadores que pudessem exigir, opinar, protestar e pressionar os fabricantes de produtos e os publicitários. Algo que o anonimato e a impessoalidade da audiência não estimulam.

Para os publicitários, sem a publicidade não existe "liberdade de expressão"!
Para os publicitários, para não "desaquecer" o mercado não se pode intervir nem restringir certos anúncios, como o de "bebidas alcoólicas, remédios, alimentos, refrigerantes, automóveis, produtos para crianças, entre outras". Seria o equivalente a dizer que para não "desaquecer" o mercado de drogas não se pode intervir no sistema de venda, de tráfico de armas e de corrupção existente. Pois esse é um mercado aquecidíssimo e que movimenta zilhões, sem publicidade!
Os publicitários querem criar uma confusão entre as liberdades individuais, o "risco escolhido" (consumir, viver e morrer, ter prazer fumando cigarro, ingerindo gordura trans, bebendo ou usando drogas leves e pesadas, por vontade própria), a "liberdade de expressão" (que tem a ver com a possibilidade da pluralidade e da autonomia). Capturam a defesa legítima dessas liberdades com a sua defesa de "liberdade comercial", mesmo que essa liberdade das empresas afronte a saúde pública e a construção do comum.

O manifesto dos publicitários que ganhou ampla repercussão na própria TV, em horário nobre, teve dois garotos-propaganda de peso. Um Civita e um Marinho, donos de corporações de mídia e TV, com seus ternos cinzas, voz monocórdia e rosto descansado, adentraram a nossa casa, pela concessão pública que lhes demos, para fazer a sua própria publicidade e anunciar essa estranha contrafação.
*Extraído de Le Monde Diplomatique Brasil. Para ler o artigo completo clique em Diplomatique

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