quinta-feira, 13 de junho de 2013

Gestão social

Políticas sociais e transformação da sociedade[1] - III/V*
Ladislau Dowbor
O social: meio ou fim?
O principal setor econômico dos Estados Unidos é hoje a saúde, com 18,1 do PIB. Agigantou-se também a chamada entertainment industry, a indústria do entretenimento, que pertence essencialmente à área cultural. A educação também assumiu, se somarmos a educação formal, a formação nas empresas, a explosão dos cursos de atualização tecnológica (da informática à inseminação artificial) e outros, dimensões que a tornaram um gigante tanto em termos de recursos envolvidos como de emprego. A formação de adultos atinge hoje nos Estados Unidos uma massa que não imaginaríamos há uma década ainda: “Os números são estonteantes. Enquanto apenas 23 milhões de pessoas de americanos tomavam parte de programas de educação de adultos em 1984, de acordo com o National Center for Educational Statistics, o número tinha chegado a 76 milhões em 1995, e segundo certos prognósticos poderia ultrapassar 100 milhões em 2004″.
A saúde como política social já não é mais um complemento onde pessoas com preocupações sociais vêm colocar um esparadrapo nas feridas das vítimas do progresso, como a cultura já não é o verniz chique de uma pessoa com dinheiro. A área social, hoje,  é o negócio.
A transformação é profunda. No decorrer de meio século, passamos de uma visão filantrópica, de generosidade assistencial, de caridade, de um tipo de bálsamo tranquilizador para as consciências capitalistas, para a compreensão de que a área social se tornou essencial para as próprias atividades econômicas. Esta mudança profunda de enfoque foi positiva. As áreas empresariais, com suporte de numerosos estudos do Banco Mundial, passaram a entender que não se trata de simples cosmética social, mas das condições indispensáveis para a própria produtividade empresarial. É a visão que leva, em numerosos países, a que as próprias empresas deem forte sustento político ao ensino público universal, a sistemas de saúde abrangentes e eficientes e assim por diante.
Uma coisa é reconhecer que a área social é indispensável para o bom andamento das atividades produtivas. Outra coisa é colocar esta área a serviço das empresas. Neste sentido, estamos assistindo a uma segunda mudança importante, que podemos constatar por exemplo nos Relatórios sobre o Desenvolvimento Humano das Nações Unidas: Pensando bem, uma vida com saúde, educação, cultura, lazer, informação, é exatamente o que queremos da vida. Em outros termos, o enfoque correto não é que devemos melhorar a educação porque as empresas irão funcionar melhor: a educação, o lazer, a saúde, a segurança constituem os objetivos últimos da sociedade, e não um mero instrumento de desenvolvimento empresarial. A atividade econômica é um meio, o bem-estar social é o fim.
A mudança de enfoque contribuiu para nos dar um choque de realismo. Enquanto colocávamos as atividades produtivas no centro, na visão do Banco Mundial centrada no produto interno bruto, podíamos nos vangloriar de sermos a oitava economia mundial. Quando olhamos o Brasil pelo prisma da qualidade de vida, nos critérios definidos nos Indicadores de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas, o nosso lugar no ranking planetário é 79º.
De certa forma, aparecem claramente duas ideias chave: primeiro, a área social tornou-se central para o desenvolvimento, em qualquer parte do planeta. Segundo, os resultados nesta área constituem o principal critério de avaliação da política de desenvolvimento em geral. Em termos de Brasil, constatamos que deste ponto de vista atingiu-se um desequilíbrio dramático entre as dimensões produtivas e a dimensão social. E o sucesso econômico brasileiro dos últimos anos resulta sem dúvida da visão mais equilibrada das dimensões sociais no conjunto do processo de desenvolvimento.
Não se trata portanto, na presente reconstrução do país, de atrair mais uma fábrica de carros, com tecnologias mais avançadas, e com os poucos empregos que estas novas tecnologias geram. Trata-se de pensar e organizar o equilíbrio social e ambiental. Este sim abre o espaço real para o desenvolvimento. Trata-se de inverter a equação.
O social: um setor ou uma dimensão?
Colocar o desenvolvimento social e a qualidade de vida como objetivo, como finalidade mais ampla da sociedade, tem repercussões profundas, na medida em que o social deixa de ser apenas um setor de atividades, para se tornar uma dimensão de todas as nossas atividades, englobando inclusive a dimensão da sustentabilidade em geral.
Quando um grande produtor de soja nos afirma que é capaz de suprir as nossas necessidades agrícolas em geral, visualiza dezenas de milhares de hectares de plantações numa ponta, e consumidores felizes na outra. Em outra visão, esta opção representa êxodo rural, famílias sem emprego penduradas nas periferias urbanas, gigantescos custos humanos, e enormes custos financeiros em termos de segurança, saúde e outros, além de um fluxo de renda insuficiente para consumir o produto.
Existe outra opção, que é por exemplo a da criação de cinturões verdes em torno das regiões urbanas. Quem já viajou pela Europa, lembrará dos milhares de pequenas unidades agrícolas em torno das cidades, assegurando abastecimento em produtos hortícolas, promovendo o lazer divertido e produtivo de fim de semana, contribuindo para absorver a mão de obra, abrindo oportunidades de terceira-idade e assim por diante.
Pode-se elencar centenas de opções deste tipo, entre a produtividade da grande empresa e o bem-estar social. Não há dúvida que, na ponta do lápis, mil hectares de tomate permitirão uma produção a custo unitário mais baixo. É a lógica micro-econômica. No entanto, se somarmos os custos do êxodo rural, do desemprego, da criminalidade, da poluição química, dos desequilíbrios políticos gerados pela presença de um polo de poder corporativo na economia e na política locais, não há dúvida que a sociedade como um todo terá uma produtividade menor. Em outros termos, a melhor produtividade sistêmica não é a que resulta da simples maximização e soma das produtividades micro-econômicas, mas de articulações mais inteligentes dos potenciais no território[1].
Não se trata de finezas teóricas. Milhares de empresas poluem os rios. Os empresários e os seus economistas explicam que jogar os resíduos no rio é mais barato, que os ambientalistas são uns exagerados, que a produtividade e competitividade é mais importante, pois assegura mais empregos, e em última instância mais bem-estar via salários. No entanto, o dinheiro economizado pelas empresas, ao não se equiparem para a proteção do meio ambiente, resulta em rios poluídos. Estes por sua vez geram doenças e enormes gastos em saúde curativa, além de perda de lazer e prejuízo de outras atividades como pesca ou turismo. Pagando com os nossos impostos, as prefeituras terão de proceder à recuperação da água poluída, com custos dezenas de vezes superiores ao que teria sido o custo da prevenção. O resultado prático é uma sociedade que perde dinheiro, além de perder qualidade de vida.
Visitando um supermercado em Toronto, encontrei uma sala repleta de livros. Explicaram-me que se tratava de uma seção da biblioteca municipal, que funciona dentro do supermercado. A lógica é simples: quando uma pessoa vai fazer compras, aproveita para pegar um livro para a semana, devolvendo o da semana anterior. Em termos micro-econômicos, de faturamento, não há dúvida que o supermercado preferiria ter uma seção de cremes de beleza. Mas em termos de qualidade de vida e de cidadania, ter essa facilidade de acesso aos livros, poder folheá-los com as crianças, gerando interesse pela cultura, aumenta indiscutivelmente a produtividade social.
A essência do enfoque é que não se trata de optar pelo supermercado ou pelo livro, pelo interesse econômico ou pelo social: trata-se de articulá-los. E em numerosos países, a articulação destes interesses já foi incorporada nas práticas correntes de gestão da sociedade, na chamada governança.
Ao apresentar no Brasil a discussão escandinava sobre a reforma do Estado, Ove Pedersen explica: “É minha asserção que os países escandinavos estão crescentemente assumindo o caráter de uma economia negociada (negotiated economy). Uma parte essencial, e inclusive crescente, da alocação de recursos produtivos, bem como a (re)distribuição do produto é determinada nem no mercado, nem através de tomadas de decisão autônomas das autoridades públicas. Em vez disto, o processo de tomada de decisão é conduzido através de negociações institucionalizadas entre os agentes interessados relevantes, que chegam a decisões vinculantes tipicamente sobre a base de imperativos discursivos, políticos ou morais, mais do que sobre a base de ameaças e incentivos econômicos”
Em outros termos, busca-se inteligentemente, entre os diversos agentes econômicos e sociais interessados, as soluções negociadas que permitirão maximizar os resultados nos planos social, econômico e ambiental. Quem olha a Suécia, país pequeno, congelado sete meses por ano, com todas as dificuldades econômicas que isto implica, deve-se perguntar a razão da simultânea prosperidade econômica e qualidade de vida. A razão reside, em grande parte, no fato de se zelar não só pelo capital da empresa, mas crescentemente pelo capital social do país.
No Canadá, as pessoas se acostumaram a lavar, para dar um exemplo, a latinha de massa de tomate que utilizaram, e a depositá-la em recipiente adequado. É o chamado lixo limpo, conceito que já está penetrando em várias cidades brasileiras. Se multiplicarmos, para dar um exemplo, cinco pequenas ações ambientais deste tipo por dia, pelos 30 milhões que conta a população do Canadá, teremos 150 milhões de ações ambientais por dia.
Em São Paulo, o programa de reciclagem foi cancelado na época de Paulo Maluf, pois não é economicamente viável. O raciocínio é correto do ponto de vista microeconômico: custa mais a reciclagem doméstica do que o valor de venda do produto reciclado. No Canadá, no entanto, uma vez generalizada a atitude, ou a cultura, do não desperdício, constatou-se que o lixo orgânico que sobra é muito pouco. A prefeitura de Toronto forneceu latas de lixo padronizadas e herméticas, para o este tipo de lixo. Como é pouco e está vedado, não provocando mau cheiro, foi possível passar a recolha do lixo de todo dia para uma vez por semana. Isto significa evidentemente uma redução dramática dos custos de limpeza da cidade. A mudança cultural, e a correspondente mudança da forma de organização das atividades provocam assim uma grande melhoria da produtividade social.
É fácil dizer que se trata de sociedades ricas, onde há cultura e espaço para atividades do gênero. Mas podemos inverter o raciocínio. A sociedade do Canadá é muito menos rica do que a dos Estados Unidos, e no entanto a qualidade de vida é muito superior. Vendo por outro ângulo, podemos nos perguntar se Canadá consegue promover este tipo de iniciativas porque é rico, ou se tornou rico por optar pelos caminhos socialmente mais produtivos? É muito impressionante ver a que ponto a cultura do bom senso econômico e social, e que poderíamos chamar de capital social, gera economias e racionalidades em cadeia: as escolas abrem à noite e aos fins de semana as suas instalações esportivas para a vizinhança, o que aumenta a infraestrutura de lazer disponível, com vários impactos conhecidos em termos de saúde, convívio social, prevenção de marginalidade e assim por diante. A disponibilidade de lazer social reduz por exemplo o absurdo de famílias ricas construírem piscinas individuais, que passam mais de 90% do tempo sem uso, com grande custo e produtividade quase nula.
Não é o caso de multiplicar exemplos de uma tendência que já se tornou evidente no plano internacional. O que isto implica, em termos de melhoria da gestão, é que o avanço social não significa apenas destinar por lei uma maior parcela de recursos para a educação. Significa também incorporar nas decisões empresariais, ministeriais, comunitárias ou individuais, as diversas dimensões e os diversos impactos que cada ação pode ter em termos de qualidade de vida. Além de uma área, — com os seus setores evidentes como saúde, educação, habitação, lazer, cultura, informação, esporte, — o social constitui por tanto também uma dimensão de todas as outras atividades, uma forma de fazer indústria, uma forma de pensar desenvolvimento urbano, uma forma de tratar os rios, uma forma de organizar o comércio.


continua...

Referências


[1] Ver a nossa nota técnica Produtividade Sistêmica do Território, 2009, 4p. http://dowbor.org/2009/11/produtividade-sistemica-do-territorio-nov.html/


*Extraído de Dowbor

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Gestão social

Políticas sociais e transformação da sociedade[1] - II/V*
Ladislau Dowbor
A articulação do social e do produtivo
As simplificações são sempre atraentes, sobretudo numa fase de transformações complexas e aceleradas da sociedade. Basta dizer que estamos evoluindo para a era dos serviços? O conceito, por sua própria generalidade, tende hoje mais a confundir do que ajudar. É fácil dizer que nos Estados Unidos a agricultura ocupa 2,5% da mão de obra. Tal avaliação é possível porque reduzimos a atividade agrícola à lavra da terra. O agricultor americano hoje se apoia em serviços de análise de solos, em serviços de inseminação artificial, em serviços de calagem, serviços de silagem, serviços meteorológicos e outros. Deixou de haver agricultura, ou a agricultura passou a funcionar de outra forma, com maior densidade tecnológica?
Da mesma forma poderíamos dizer que a secretária ou o engenheiro que trabalham na fábrica não estão na indústria, estão na área de “serviços”. Que sentido teria isto? Na realidade trata-se em grande parte de uma transformação do conteúdo das atividades produtivas, e não do desaparecimento destas atividades em proveito de uma nebulosa área de “serviços”.
Não é mais um “setor” que está surgindo, um “terciário”. De certa forma, é o conjunto das atividades humanas que está sendo transformado, ao incorporar mais tecnologias, mais conhecimentos e mais aportes difusos da economia da informação.  Adquirem maior conteúdo de pesquisa, de design, de concepção, de planejamento e de organização tanto as atividades produtivas, como as atividades ligadas às infraestruturas econômicas, à intermediação comercial e financeira, e às políticas sociais. É a dimensão de conhecimento do conjunto das nossas atividades de reprodução social que está se avolumando. A sociedade realmente existente continua com necessidades básicas como casas decentes, saneamento, sapatos, arroz e feijão – que devem ser objeto das atividades produtivas de sempre, ainda que de forma crescentemente diferenciada.
As atividades produtivas, sem dúvida, continuam essenciais, mas não contêm em si mesmas as condições do seu sucesso. Para que milhões de unidades empresariais da agricultura, da indústria, da construção, sejam produtivas, temos de assegurar, além da própria organização do tecido produtivo e do progresso da gestão empresarial, sólidas infraestruturas de transporte, energia, telecomunicações, bem como água e saneamento, as chamadas “redes” de infraestruturas, sem as quais as empresas enfrentam custos externos insustentáveis e se tornam pouco competitivas.
Será demais lembrar que conseguimos encalacrar as cidades com transporte individual, o mais caro, desleixando o transporte coletivo que é dominante em qualquer país desenvolvido? Será inocente em termos de racionalidade da sociedade em seu conjunto o fato de termos optado por transporte rodoviário de carga, em vez do transporte ferroviário e por água? Quanto nos custa em gastos de saúde e desconforto o fato de uma ampla maioria de domicílios do país não terem acesso a um saneamento adequado?
O setor produtivo precisa por tanto de infraestruturas adequadas para que a economia no seu conjunto funcione. Mas precisa também se um bom sistema de financiamento e de comercialização, para que os processos de trocas possam fluir de forma ágil: estes serviços de intermediação, no nosso caso, se tornaram um fim em si mesmo, drenando o essencial da riqueza, constituindo-se mais propriamente em atravessadores do que intermediários, esterilizando a poupança do país.
Finalmente, nem a área produtiva, nem as redes de infraestruturas, e nem os serviços de intermediação funcionarão de maneira adequada se não houver investimento no ser humano, na sua formação, na sua saúde, na sua cultura, no seu lazer, na sua informação. Em outros termos, a dimensão social do desenvolvimento deixa de ser um “complemento”, uma dimensão humanitária de certa forma externa aos processos econômicos centrais, para se tornar um componente essencial do conjunto da reprodução social.
Não há nada de novo, naturalmente, em se afirmar que para o funcionamento adequado da área empresarial produtiva, são necessárias amplas redes de infraestruturas, serviços eficientes de intermediação, e um forte desenvolvimento da área social. O que há de diferente, é a nova importância relativa da dimensão social do nosso desenvolvimento. A saúde, para ser viável, tem de ser preventiva, permear todo o tecido social, e atingir toda a população. A educação no Brasil envolve hoje, entre alunos e professores, cerca de cinquenta milhões de pessoas. A cultura tornou-se uma dos setores mais importantes no conjunto das atividades econômicas e sociais. Segurança, lazer e turismo estão se avolumando por toda parte.
A herança teórica, das simplificações neoliberais, é de que quem produz bens e serviços, portanto o setor produtivo privado, gera riqueza. Ao pagar impostos sobre o produto gerado, viabiliza as políticas sociais, que representariam um custo. Deveríamos portanto, nesta visão, maximizar os interesses dos produtores, o setor privado, e moderar  as dimensões do Estado, o gastador.
A realidade é diferente. Quando uma empresa contrata um jovem engenheiro de 25 anos, recebe uma pessoa formada, o que representa um ativo formidável, que custou anos de cuidados, de formação, de acesso à cultura geral, de sacrifícios familiares, de uso de infraestruturas públicas as mais diversas, de aproveitamento do nível tecnológico geral desenvolvido na sociedade. As políticas sociais não constituem custos, são investimentos nas pessoas. E com a atual evolução para uma sociedade cada vez mais intensiva em conhecimento, investir nas pessoas é o que mais rende. O capital humano acumulado tende a se tornar no maior acervo de um país. A compreensão de que os processos produtivos de bens e serviços e as políticas sociais em geral são como a mão e a luva no conjunto da dinâmica do desenvolvimento, um financiando o outro, sendo todos ao mesmo tempo custo e produto, aponta para uma visão equilibrada e renovada das dinâmicas econômicas.
Amartya Sen resume bem o argumento: “Esta abordagem contraria – e na verdade abala – a crença tão dominante em muitos círculos políticos de que o “desenvolvimento humano” (como frequentemente é chamado o processo de expansão da educação, dos serviços de saúde e de outras condições da vida humana) é realmente um tipo de luxo que apenas os países mais ricos podem se dar. Talvez o impacto mais importante do tipo de êxito alcançado pelas economias do Leste Asiático, a começar do Japão, seja ter solapado totalmente este preconceito tácito. Essas economias buscaram comparativamente mais cedo a expansão em massa da educação e, mais tarde, também dos serviços de saúde, e o fizeram, em muitos casos, antes de romper os grilhões da pobreza generalizada. E colheram o que semearam”.[2]
Um estudo do IPEA comprova esta visão, ao analisar a “causalidade econômica” gerada pelas políticas sociais. Assim o aumento de 1% do PIB em investimentos na educação, gera um impacto de 1,85% como multiplicador do PIB, e de 1,67% na renda das famílias. O Programa Bolsa Familia gera um multiplicador do PIB de 1,44%, e um multiplicador de 2,25% de renda das famílias. O pagamento de juros sobre a dívida pública, em contrapartida, gera um impacto negativo, de 0,71% para o PIB.[3]
A dimensão e a importância das políticas sociais mudaram qualitativamente, exigindo novos equilíbrios nas prioridades da sociedade. E o equilíbrio das várias áreas do desenvolvimento passou a depender de articulações sociais mais complexas, que nos obrigam a deixar de lado as simplificações estatistas ou liberais.
 Referências


[1] Versão atualizada do artigo originalmente publicado na coletânea Costos Sociales da las Reformas Neoliberales en América Latina, (org) Anita Kon, Catalina Banko, Dorothea Melcher, Maria Cristina Cacciamali, publicado por PUC-SP, FAPESP, USP e UCV. 2000.

[2] Sen, Amartya – Desenvolvimento como liberdade, Cia. das Letras, São Paulo 1999. p. 58.

[3] IPEA, Comunicado N. 75, Gastos com a Política Social: alavanca para o crescimento com distribuição de renda, Ipea, 3 de fevereiro de 2011, 16 p., disponível em http://bit.ly/e9rBGg . Ver em particular a tabela na p. 11

*Extraído de Dowbor

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Gestão social

Políticas sociais e transformação da sociedade[1] - I/V*
Ladislau Dowbor
Entre o cinismo pragmático e o idealismo ingênuo, já é tempo de se construírem as pontes.
Poderíamos deixar as coisas evoluir, e aguardar que a estabilidade macroeconômica nos traga “naturalmente”, por assim dizer, mais empresas, mais investimentos, logo empregos e salários, e com isto pagaríamos o “resto”, o social. Encontramos nesta posição muita gente simplesmente inconsciente e ignorante da dimensão do drama que se avoluma, e que vira as costas para a explosão da criminalidade, o aumento do desemprego, a desorientação dramática da juventude, a fome, a corrupção política e empresarial, os desafios ambientais, a perda generalizada de valores.
Mas encontramos também nesta zona de indiferença pessoas profundamente imbuídas de simplificações ideológicas, que defendem absurdos crescentes como fazendo parte de uma lógica inevitável e nos levam na realidade a um extremismo que assusta: são os que explicam que a miséria é triste mas inevitável, e que ajudar os dois terços de excluídos da nossa sociedade constitui “paternalismo”, que a explosão de violência que está tornando as nossas vidas cada dia mais impossível se deve aos “maus elementos”. Seria preciso construir mais cadeias, reduzir a idade de responsabilidade criminal, construir mais viadutos para os carros, mais piscinões para segurar a água de chuva, mais hospitais para enfrentar a doença e assim por diante. Patéticos construtores de muletas sociais, que se recusam a ver a evidência: o sistema é estruturalmente falho.
O problema vai mais longe. Na boa análise de Anthony Giddens, a visão conservadora do mundo está ruindo, pois a dimensão de valores que de certa forma justificava a injustiça social e o lucro desenfreado — a pátria, a família, a propriedade, o esforço individual, a moral no sentido mais tradicional — está sendo corroída justamente pelo mecanismo — o mercado — que devia viabilizá-la. É o liberalismo na sua versão moderna, com poderosas pirâmides multinacionais de poder, e a crescente desigualdade, que está diluindo a nação, enchendo as ruas e as televisões de vulgaridade comercial, substituindo a moral pelo “faça tudo por dinheiro”, desarticulando a família, generalizando a criminalidade e a corrupção, criando um clima de vale tudo desagregador. A âncora dos valores conservadores, o mercado, se voltou contra o seu criador, e na sua dimensão global e totalitária devora o que aparece pelo caminho. É patética a declaração de Raymond Barre, um dos expoentes do liberalismo europeu: “Não podemos mais deixar a economia nas mãos de um bando de irresponsáveis de trinta anos que só pensam em dinheiro”. Não se tratava justamente disto, de que do egoísmo de cada um surgiria a felicidade geral? Da respeitável ainda que frequentemente hipócrita ideologia conservadora, restou o que os americanos exprimem de maneira tão sintética: “fast money, fast women, fast food…”.
Não se trata aqui de denuncias superficiais. É o próprio edifício filosófico que deu origem ao liberalismo, com o utilitarismo de Bentham, de Stuart Mill e outros, tão profundamente enraizados ainda nas cabeças dos norte-americanos e dos seus seguidores pelo mundo, que está ruindo.
As mega-empresas que surgem neste fim de século ultrapassaram amplamente a dimensão de unidades micro-econômicas de produção, e passaram a se arvorar em construtoras do sistema macrosocial, e o resultado é calamitoso. A empresa constitui um excelente organizador de produção, e o mercado como um dos reguladores da economia deve ser incorporado no nosso universo de valores. Mas a sociedade de mercado é desastrosa. Não se trata de destruir a empresa, mas de repensar o universo no qual ela se insere.
O relatório da Unctad de 1997 já trazia uma análise precisa do que geraria a crise de 2008: em três décadas, a concentração de renda aumentou dramaticamente no planeta, desequilibrando profundamente a relação entre lucros e salários. No entanto, estes lucros mais elevados não estão levando a maiores investimentos: cada vez mais, são desviados para atividades de intermediação especulativa, particularmente na área das finanças. O resultado prático é que temos mais injustiça econômica, e cada vez mais estagnação: a taxa de crescimento da economia do planeta baixou de uma média geral de 4% nos anos 1970, para 3% nos anos 1980, e 2% nos anos 1990, com um pouco de avanço nos anos 2000, e depressão a partir da crise de 2008.
Esta articulação perversa é muito importante. Apesar de todos criticarmos as injustiças econômicas, ficava na nossa cabeça, formando um tipo de limbo semiconsciente, a visão de que afinal o luxo dos ricos bem ou mal se transformava em investimentos, logo em empresas, empregos e salários, que em última instância significariam mais bem estar. De certa forma, a desigualdade e os dramas sociais seriam um mal necessário de um processo no conjunto positivo e em última instância (e a longo prazo) gerador de prosperidade. É este tipo de “pacto” que está hoje desfeito. Na análise da Unctad, “é esta associação de aumento de lucros com investimento estagnado, desemprego crescente e salários em queda que constitui a verdadeira causa de preocupação”. Estranho foi ter de esperar 2012 para o Economist se dar conta das transformações, e publicar o relatório True Progressivism, confirmando este mecanismo[2].
Os atingidos não são apenas os pobres, mas todo o sistema produtivo. Entre as vantagens de ser especulador ou produtor, a dúvida já não existe. É interessante encontrar no Financial Times este comentário de Martin Wolf: “o que está em jogo, é a legitimidade da economia capitalista mundial”.
O que está se tornando evidente, já não numa visão de crítica sistemática anticapitalista, mas de bom senso econômico e social, é que um sistema que sabe produzir, mas não sabe distribuir, simplesmente não é suficiente. Sobretudo se, ainda por cima, joga milhões no desemprego, dilapida o meio-ambiente e remunera mais os especuladores do que os produtores. Relatórios sobre o Desenvolvimento Humano, das Nações Unidas, qualificam de obscenas as fortunas de pouco mais de quatrocentas pessoas no mundo, que dispõem de mais riqueza pessoal do que a metade mais pobre da humanidade. Esta concentração de renda é considerada tão vergonhosa como a escravidão e o colonialismo, sem lugar numa sociedade civilizada.
O debate sobre as culpas e sobre quem tinha razão continuará sem dúvida a alimentar as nossas discussões, pois a atração do passado é poderosa. Mas a realidade é que a própria realidade mudou. A construção de alternativas envolve um leque de alianças sociais evidentemente mais amplo do que o conceito de classes redentoras, burguesa para uns, proletária para outros, que dominou o século XX. Estamos trabalhando com o conceito de economia mista e de  parcerias para o desenvolvimento, reunindo formalmente governos, empresas e organizações da sociedade civil, na busca de novas articulações.
Terceira via? Já há candidatos para se apropriar dos eventuais benefícios políticos da ideia, tentando capitalizar o que ainda mal existe. Mas não é isto que nos deve impedir de ver uma realidade cada vez mais patente: o mundo que estamos construindo não está contido nos estreitos limites teóricos que o século XIX definiu, e que utilizamos de maneira tão simplificadora para o século XX: o estatismo socialista e o liberalismo capitalista.



Referências

[1]Versão atualizada do artigo originalmente publicado na coletânea Costos Sociales da las Reformas Neoliberales en América Latina, (org) Anita Kon, Catalina Banko, Dorothea Melcher, Maria Cristina Cacciamali, publicado por PUC-SP, FAPESP, USP e UCV. 2000.

[2] The Economist, True Progressivism, Special Report, 13 October 2012

*Extraído de Dowbor

Ainda a Rio+20 e o mercado

Economia verde e financeirização da natureza*

Paulo Kliass**

Às vésperas de completarmos um ano da organização da tão badalada “Rio + 20”, realizada em meados de junho de 2012, muito pouco temos a comemorar no campo das mudanças efetivas no modelo que determina, de forma hegemônica, as relações econômicas no mundo globalizado.

O clima de grandes expectativas criadas em torno do evento, que deveria propiciar um balanço de 2 décadas após a realização da Conferência da ONU de 1992, foi por demais otimista. Estava claro que tal animação não correspondia à realidade da crise econômica internacional e da quase impossibilidade de que os países mais importantes do mundo avançassem alguns milímetros na direção de um sistema menos comprometedor do futuro da Humanidade.

“Rio + 20” e a economia verde

A polêmica toda se deu em torno da avaliação de supostos avanços ou recuos que poderiam estar contidos nos termos da declaração final do encontro. O famoso documento “O futuro que queremos” sintetizava os limites da costura possível entre as proposições das delegações oficiais e das representações das associações e entidades da sociedade civil organizada. Ora, como toda peça resultante de evento de natureza multilateral, o documento procurava expressar algum grau de consenso, a ser obtido entre as representações diplomáticas participantes, a respeito dos temas em questão. Assim, o fato de incorporar o conceito de “economia verde” foi muito criticado por correntes vinculadas ao movimento ambientalista, ao passo que o fato do termo sempre estar acompanhado da expressão “no contexto do desenvolvimento sustentável e da erradicação da pobreza” era saudado por outros grupos como sinalização de um avanço importante.

O fato concreto é que a Rio + 20 deu-se num contexto de dominação política, social e econômica dos valores associados a um modelo que privilegia a exploração descontrolada e desregulada dos recursos naturais e da força de trabalho, na perspectiva da geração e da apropriação privada dos lucros de tais empreendimentos. Some-se a esse quadro a crença de que a solução do ainda tão idolatrado “mercado” seja sempre o mecanismo mais “eficiente” para a busca das soluções de equilíbrio entre os diversos fatores e atores envolvidos no complexo jogo de interesses do mundo globalizado. 

Toda e qualquer avaliação mais realista e dotada de bom senso deveria levar em consideração os limites de tal conjuntura. Infelizmente, havia - como ainda continua a haver - pouco espaço para avanços expressivos no campo dos consensos diplomáticos. Afinal, nem mesmo os Estados Unidos aceitaram assinar o já antigo Protocolo de Kyoto (já referendado por mais de 170 países), a respeito de um compromisso para redução da emissão de gases comprometedores do efeito estufa. De outra parte, é necessário recordar que a maioria dos países se volta atualmente para a China, na esperança de que o ritmo de crescimento do gigante asiático seja o elemento de salvação para a recuperação da economia internacional.

As diferentes interpretações da economia verde

O termo “economia verde” vem sendo utilizado há mais tempo em vários circuitos: ambientalista, empresarial, governamental, organismos multilaterais, meios de comunicação, entre outros. Como toda novidade que ainda não foi devidamente digerida e serve para cobrir um nível de ansiedade social a respeito de tema que não apresenta soluções fáceis a curto prazo, ele ocupa o vácuo e preenche a carência. Assim a expressão é muitas vezes apresentada com uma verdadeira panacéia para todos os malefícios que o capitalismo tem proporcionado para o meio ambiente em escala planetária. No entanto, os problemas associados ao processo de degradação ambiental são muito mais complexos do que aparentam numa abordagem superficial. Não basta apenas adjetivar a dinâmica econômica de “verde” para que tudo se resolva, como num passe de mágica.

Exatamente por isso ainda existem diversas acepções do conceito circulando pelos circuitos que tratam do tema. De um lado, permanecem algumas interpretações ainda bem intencionadas no campo dos que estão sinceramente preocupados com a deterioração do sistema ambiental. De outro lado, porém, estão aquelas proposições que estão mais preocupadas em oferecer uma alternativa estratégica de sobrevivência para as grandes corporações multinacionais. Assim, a economia verde se amplia no largo espectro que vai desde os ambientalistas mais ingênuos até aqueles que defendem os interesses do grande capital em seu permanente processo de acumulação e reprodução.

Mecanismos de financiamento: do Protocolo de Kyoto aos dias de hoje

A realidade do sistema capitalista apresenta uma característica essencial: sua tendência a universalizar o conjunto dos processos sociais e transformá-los em relações mercantis. Com isso, o sistema econômico nos tempos mais modernos passou a incorporar a dimensão do “meio-ambiente” também como mecanismo de acumulação e de dinamização do mercado. As primeiras tentativas concentraram-se no espaço da emissão de gases do efeito estufa (GEE). Tendo por base as alternativas previstas no Protocolo de Kyoto, começaram a aparecer os “créditos de carbono”, que se converteram aos poucos em mecanismo de transação no interior do mercado financeiro. De acordo com as normas previstas, as empresas que diminuíssem sua quantidade de emissão de GEE teriam direito a lançar tais títulos de crédito de carbono. Estas novas modalidades de papéis passaram a ter seus preços cotados e negociados no mercado. Segundo os padrões atuais, um crédito de carbono seria equivalente à redução da emissão de 1 tonelada de dióxido de carbono (CO2). Portanto, em tese, a cotação de crédito de carbono deveria ser correspondente ao custo monetário do investimento necessário para obter tal redução de gases poluentes.

A intenção subjacente é que estaria em marcha um mecanismo para estimular, inclusive em termos de ganhos econômicos, a substituição de processos de produção considerados “sujos” por novos sistemas produtivos “limpos”. Esse tipo de ação passou a ficar conhecido como “mecanismo de desenvolvimento limpo” (MDL) e deveria contar com apoio da ONU para fins de regulação e fiscalização, com o objetivo de evitar que os títulos de crédito de carbono pudessem ser fonte de ações fraudulentas e sem nenhum tipo descontrole. O aumento da quantidade de títulos emitidos e a ampliação da escala de sua negociação terminaram por consolidar um verdadeiro mercado, com uma série de produtos financeiros associados. Os créditos de carbono passaram a ser cotados nas Bolsas de Mercadorias, com preços no mercado diário, no mercado futuro e demais características do mercado financeiro em geral. Em conseqüência, a exemplo do que ocorre com outros títulos similares, eles estão também bastante sujeitos a muita especulação.

A partir dessa experiência inicial, novos títulos de natureza financeira foram sendo incorporados pelas empresas multinacionais, mas ainda não contam com mecanismos de controle ou regulamentação. Trata-se dos papéis de “redução de emissão por desmatamento e degradação evitados” (REED), por meio do qual os conglomerados e seus empreendimentos de larga escala buscam obter retornos financeiros a partir de iniciativas que podem reduzir o ritmo de destruição ambiental. É o caso da diminuição de áreas de floresta ou de regiões com atividades de extração mineral. Os mercados financeiros podem facilitar a realização dos negócios e a obtenção de recursos para os projetos, pois todo o processo ocorre por meio de emissões de títulos que têm um valor definido e que são transacionados nos balcões de negócios em todas as principais praças do mundo. No entanto, o problema é que esses papéis – em tese, associados a atividades de “economia verde” - são operados também com base na especulação, a exemplo dos demais títulos financeiros. Ou seja, trata-se um nicho voltado para o meio-ambiente, mas sem quase nenhum lastro no setor real da economia. 

Os riscos da financeirização sem regulação

Em termos mais gerais, o processo de financeirização pode ser compreendido como uma etapa de aprofundamento do processo de mercantilização. Assim, em uma primeira fase, observa-se a transformação generalizada dos recursos naturais, bens, serviços e relações sociais em mercadorias. Tudo passa a ser sintetizado e tratado sob a forma de preços e quantidades, tudo passa a ser analisado segundo a ótica da oferta e da demanda. A mercantilização em larga escala abre novas oportunidades à produção nos moldes capitalistas, ampliando os espaços para os mecanismos de acumulação de capital. 

Em um momento posterior, não apenas a transformação em mercadorias se consolida pelo conjunto de setores e áreas da economia e da sociedade, mas também os instrumentos financeiros associados a elas se espraiam pelos mercados. Um dos aspectos que fascina e intriga no processo de financeirização é sua dupla face. De um lado, a capacidade de criar as condições de geração de recursos para as atividades onde esteja envolvido. 

De outro lado, a sua capacidade de se tornar autônomo em relação ao próprio objeto que foi a razão de seu surgimento. E assim, ele ganha vida independente nos circuitos e searas dos mercados financeiros primários, secundários, terciários e por aí vai. Nos mercados especulativos espalhados pelo mundo, por exemplo, as cotações dos papéis de carbono caíram mais de 90% entre as vésperas da crise de 2008 e os dias de hoje. Ou seja, um movimento no circuito financeiro que tem muito pouco a ver com a realidade concreta dos setores da economia verde.

A resistência dos interesses do financismo em aceitar critérios mais sérios de regulamentação, fiscalização e controle das operações dos mercados de títulos converte-se em um grande obstáculo. As catástrofes observadas a partir da crise financeira não foram suficiente para tanto. Uma das causas foi, sem dúvida, o exagerado grau de financeirização e o descontrole sobre os mercados especulativos. Assim, a insistência na ilusória “liberdade de ação das forças dos mercados” termina por comprometer qualquer busca mais responsável para criação de mecanismos de financiamento de uma economia verde, que seja sustentável em termos econômicos, sociais e ambientais. 

Transformar a atmosfera, o oxigênio, o gás carbônico, os rios, os oceanos, as florestas, os subsolos, enfim a natureza, em mercadorias já é movimento bastante problemático. Permanecer aceitando que os rumos de empreendimentos nesse tipo de atividade sejam determinados apenas pelo ritmo da especulação na esfera puramente financeira é colocar uma verdadeira pá de cal na já exígua credibilidade do conceito de economia verde.

*Extraído de Carta Maior
**Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10