quinta-feira, 30 de maio de 2013

Gestão social

Políticas sociais e transformação da sociedade[1] - I/V*
Ladislau Dowbor
Entre o cinismo pragmático e o idealismo ingênuo, já é tempo de se construírem as pontes.
Poderíamos deixar as coisas evoluir, e aguardar que a estabilidade macroeconômica nos traga “naturalmente”, por assim dizer, mais empresas, mais investimentos, logo empregos e salários, e com isto pagaríamos o “resto”, o social. Encontramos nesta posição muita gente simplesmente inconsciente e ignorante da dimensão do drama que se avoluma, e que vira as costas para a explosão da criminalidade, o aumento do desemprego, a desorientação dramática da juventude, a fome, a corrupção política e empresarial, os desafios ambientais, a perda generalizada de valores.
Mas encontramos também nesta zona de indiferença pessoas profundamente imbuídas de simplificações ideológicas, que defendem absurdos crescentes como fazendo parte de uma lógica inevitável e nos levam na realidade a um extremismo que assusta: são os que explicam que a miséria é triste mas inevitável, e que ajudar os dois terços de excluídos da nossa sociedade constitui “paternalismo”, que a explosão de violência que está tornando as nossas vidas cada dia mais impossível se deve aos “maus elementos”. Seria preciso construir mais cadeias, reduzir a idade de responsabilidade criminal, construir mais viadutos para os carros, mais piscinões para segurar a água de chuva, mais hospitais para enfrentar a doença e assim por diante. Patéticos construtores de muletas sociais, que se recusam a ver a evidência: o sistema é estruturalmente falho.
O problema vai mais longe. Na boa análise de Anthony Giddens, a visão conservadora do mundo está ruindo, pois a dimensão de valores que de certa forma justificava a injustiça social e o lucro desenfreado — a pátria, a família, a propriedade, o esforço individual, a moral no sentido mais tradicional — está sendo corroída justamente pelo mecanismo — o mercado — que devia viabilizá-la. É o liberalismo na sua versão moderna, com poderosas pirâmides multinacionais de poder, e a crescente desigualdade, que está diluindo a nação, enchendo as ruas e as televisões de vulgaridade comercial, substituindo a moral pelo “faça tudo por dinheiro”, desarticulando a família, generalizando a criminalidade e a corrupção, criando um clima de vale tudo desagregador. A âncora dos valores conservadores, o mercado, se voltou contra o seu criador, e na sua dimensão global e totalitária devora o que aparece pelo caminho. É patética a declaração de Raymond Barre, um dos expoentes do liberalismo europeu: “Não podemos mais deixar a economia nas mãos de um bando de irresponsáveis de trinta anos que só pensam em dinheiro”. Não se tratava justamente disto, de que do egoísmo de cada um surgiria a felicidade geral? Da respeitável ainda que frequentemente hipócrita ideologia conservadora, restou o que os americanos exprimem de maneira tão sintética: “fast money, fast women, fast food…”.
Não se trata aqui de denuncias superficiais. É o próprio edifício filosófico que deu origem ao liberalismo, com o utilitarismo de Bentham, de Stuart Mill e outros, tão profundamente enraizados ainda nas cabeças dos norte-americanos e dos seus seguidores pelo mundo, que está ruindo.
As mega-empresas que surgem neste fim de século ultrapassaram amplamente a dimensão de unidades micro-econômicas de produção, e passaram a se arvorar em construtoras do sistema macrosocial, e o resultado é calamitoso. A empresa constitui um excelente organizador de produção, e o mercado como um dos reguladores da economia deve ser incorporado no nosso universo de valores. Mas a sociedade de mercado é desastrosa. Não se trata de destruir a empresa, mas de repensar o universo no qual ela se insere.
O relatório da Unctad de 1997 já trazia uma análise precisa do que geraria a crise de 2008: em três décadas, a concentração de renda aumentou dramaticamente no planeta, desequilibrando profundamente a relação entre lucros e salários. No entanto, estes lucros mais elevados não estão levando a maiores investimentos: cada vez mais, são desviados para atividades de intermediação especulativa, particularmente na área das finanças. O resultado prático é que temos mais injustiça econômica, e cada vez mais estagnação: a taxa de crescimento da economia do planeta baixou de uma média geral de 4% nos anos 1970, para 3% nos anos 1980, e 2% nos anos 1990, com um pouco de avanço nos anos 2000, e depressão a partir da crise de 2008.
Esta articulação perversa é muito importante. Apesar de todos criticarmos as injustiças econômicas, ficava na nossa cabeça, formando um tipo de limbo semiconsciente, a visão de que afinal o luxo dos ricos bem ou mal se transformava em investimentos, logo em empresas, empregos e salários, que em última instância significariam mais bem estar. De certa forma, a desigualdade e os dramas sociais seriam um mal necessário de um processo no conjunto positivo e em última instância (e a longo prazo) gerador de prosperidade. É este tipo de “pacto” que está hoje desfeito. Na análise da Unctad, “é esta associação de aumento de lucros com investimento estagnado, desemprego crescente e salários em queda que constitui a verdadeira causa de preocupação”. Estranho foi ter de esperar 2012 para o Economist se dar conta das transformações, e publicar o relatório True Progressivism, confirmando este mecanismo[2].
Os atingidos não são apenas os pobres, mas todo o sistema produtivo. Entre as vantagens de ser especulador ou produtor, a dúvida já não existe. É interessante encontrar no Financial Times este comentário de Martin Wolf: “o que está em jogo, é a legitimidade da economia capitalista mundial”.
O que está se tornando evidente, já não numa visão de crítica sistemática anticapitalista, mas de bom senso econômico e social, é que um sistema que sabe produzir, mas não sabe distribuir, simplesmente não é suficiente. Sobretudo se, ainda por cima, joga milhões no desemprego, dilapida o meio-ambiente e remunera mais os especuladores do que os produtores. Relatórios sobre o Desenvolvimento Humano, das Nações Unidas, qualificam de obscenas as fortunas de pouco mais de quatrocentas pessoas no mundo, que dispõem de mais riqueza pessoal do que a metade mais pobre da humanidade. Esta concentração de renda é considerada tão vergonhosa como a escravidão e o colonialismo, sem lugar numa sociedade civilizada.
O debate sobre as culpas e sobre quem tinha razão continuará sem dúvida a alimentar as nossas discussões, pois a atração do passado é poderosa. Mas a realidade é que a própria realidade mudou. A construção de alternativas envolve um leque de alianças sociais evidentemente mais amplo do que o conceito de classes redentoras, burguesa para uns, proletária para outros, que dominou o século XX. Estamos trabalhando com o conceito de economia mista e de  parcerias para o desenvolvimento, reunindo formalmente governos, empresas e organizações da sociedade civil, na busca de novas articulações.
Terceira via? Já há candidatos para se apropriar dos eventuais benefícios políticos da ideia, tentando capitalizar o que ainda mal existe. Mas não é isto que nos deve impedir de ver uma realidade cada vez mais patente: o mundo que estamos construindo não está contido nos estreitos limites teóricos que o século XIX definiu, e que utilizamos de maneira tão simplificadora para o século XX: o estatismo socialista e o liberalismo capitalista.



Referências

[1]Versão atualizada do artigo originalmente publicado na coletânea Costos Sociales da las Reformas Neoliberales en América Latina, (org) Anita Kon, Catalina Banko, Dorothea Melcher, Maria Cristina Cacciamali, publicado por PUC-SP, FAPESP, USP e UCV. 2000.

[2] The Economist, True Progressivism, Special Report, 13 October 2012

*Extraído de Dowbor

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