Políticas sociais e transformação da sociedade[1] - II/V*
Ladislau Dowbor
A articulação do social e do
produtivo
As
simplificações são sempre atraentes, sobretudo numa fase de transformações
complexas e aceleradas da sociedade. Basta dizer que estamos evoluindo para a
era dos serviços? O conceito, por sua própria generalidade, tende hoje mais a
confundir do que ajudar. É fácil dizer que nos Estados Unidos a agricultura
ocupa 2,5% da mão de obra. Tal avaliação é possível porque reduzimos a
atividade agrícola à lavra da terra. O agricultor americano hoje se apoia em
serviços de análise de solos, em serviços de inseminação artificial, em
serviços de calagem, serviços de silagem, serviços meteorológicos e outros.
Deixou de haver agricultura, ou a agricultura passou a funcionar de outra forma,
com maior densidade tecnológica?
Da
mesma forma poderíamos dizer que a secretária ou o engenheiro que trabalham na
fábrica não estão na indústria, estão na área de “serviços”. Que sentido teria
isto? Na realidade trata-se em grande parte de uma transformação do conteúdo
das atividades produtivas, e não do desaparecimento destas atividades em
proveito de uma nebulosa área de “serviços”.
Não é
mais um “setor” que está surgindo, um “terciário”. De certa forma, é o conjunto
das atividades humanas que está sendo transformado, ao incorporar mais
tecnologias, mais conhecimentos e mais aportes difusos da economia da
informação. Adquirem maior conteúdo de
pesquisa, de design, de concepção, de planejamento e de organização tanto as
atividades produtivas, como as atividades ligadas às infraestruturas
econômicas, à intermediação comercial e financeira, e às políticas sociais. É a
dimensão de conhecimento do
conjunto das nossas atividades de reprodução social que está se avolumando. A
sociedade realmente existente continua com necessidades básicas como casas
decentes, saneamento, sapatos, arroz e feijão – que devem ser objeto das atividades
produtivas de sempre, ainda que de forma crescentemente
diferenciada.
As
atividades produtivas, sem dúvida, continuam essenciais, mas não contêm em si
mesmas as condições do seu sucesso. Para que milhões de unidades empresariais
da agricultura, da indústria, da construção, sejam produtivas, temos de
assegurar, além da própria organização do tecido produtivo e do progresso da
gestão empresarial, sólidas infraestruturas de transporte, energia,
telecomunicações, bem como água e saneamento, as chamadas “redes” de
infraestruturas, sem as quais as empresas enfrentam custos externos
insustentáveis e se tornam pouco competitivas.
Será
demais lembrar que conseguimos encalacrar as cidades com transporte individual,
o mais caro, desleixando o transporte coletivo que é dominante em qualquer país
desenvolvido? Será inocente em termos de racionalidade da sociedade em seu
conjunto o fato de termos optado por transporte rodoviário de carga, em vez do
transporte ferroviário e por água? Quanto nos custa em gastos de saúde e
desconforto o fato de uma ampla maioria de domicílios do país não terem acesso
a um saneamento adequado?
O
setor produtivo precisa por tanto de infraestruturas adequadas para que a
economia no seu conjunto funcione. Mas precisa também se um bom sistema de
financiamento e de comercialização, para que os processos de trocas possam
fluir de forma ágil: estes serviços de intermediação, no nosso caso, se
tornaram um fim em si mesmo, drenando o essencial da riqueza, constituindo-se
mais propriamente em atravessadores do que intermediários, esterilizando a
poupança do país.
Finalmente,
nem a área produtiva, nem as redes de infraestruturas, e nem os serviços de
intermediação funcionarão de maneira adequada se não houver investimento no ser
humano, na sua formação, na sua saúde, na sua cultura, no seu lazer, na sua
informação. Em outros termos, a dimensão social do desenvolvimento deixa de ser
um “complemento”, uma dimensão humanitária de certa forma externa aos processos
econômicos centrais, para se tornar um componente essencial do conjunto da
reprodução social.
Não
há nada de novo, naturalmente, em se afirmar que para o funcionamento adequado
da área empresarial produtiva, são necessárias amplas redes de infraestruturas,
serviços eficientes de intermediação, e um forte desenvolvimento da área
social. O que há de diferente, é a nova importância relativa da dimensão social
do nosso desenvolvimento. A saúde, para ser viável, tem de ser preventiva,
permear todo o tecido social, e atingir toda a população. A educação no Brasil
envolve hoje, entre alunos e professores, cerca de cinquenta milhões de
pessoas. A cultura tornou-se uma dos setores mais importantes no conjunto das
atividades econômicas e sociais. Segurança, lazer e turismo estão se avolumando
por toda parte.
A herança teórica, das simplificações neoliberais, é de que quem
produz bens e serviços, portanto o setor produtivo privado, gera riqueza. Ao
pagar impostos sobre o produto gerado, viabiliza as políticas sociais, que
representariam um custo. Deveríamos portanto, nesta visão, maximizar os
interesses dos produtores, o setor privado, e moderar as dimensões do Estado, o gastador.
A realidade é diferente. Quando uma empresa contrata um jovem
engenheiro de 25 anos, recebe uma pessoa formada, o que representa um ativo
formidável, que custou anos de cuidados, de formação, de acesso à cultura
geral, de sacrifícios familiares, de uso de infraestruturas públicas as mais
diversas, de aproveitamento do nível tecnológico geral desenvolvido na
sociedade. As políticas sociais não constituem custos, são investimentos nas
pessoas. E com a atual evolução para uma sociedade cada vez mais intensiva em
conhecimento, investir nas pessoas é o que mais rende. O capital humano
acumulado tende a se tornar no maior acervo de um país. A compreensão de que os
processos produtivos de bens e serviços e as políticas sociais em geral são
como a mão e a luva no conjunto da dinâmica do desenvolvimento, um financiando
o outro, sendo todos ao mesmo tempo custo e produto, aponta para uma visão
equilibrada e renovada das dinâmicas econômicas.
Amartya Sen resume bem o argumento: “Esta abordagem contraria – e na
verdade abala – a crença tão dominante em muitos círculos políticos de que o
“desenvolvimento humano” (como frequentemente é chamado o processo de expansão
da educação, dos serviços de saúde e de outras condições da vida humana) é
realmente um tipo de luxo que apenas os países mais ricos podem se dar. Talvez
o impacto mais importante do tipo de êxito alcançado pelas economias do Leste
Asiático, a começar do Japão, seja ter solapado totalmente este preconceito
tácito. Essas economias buscaram comparativamente mais cedo a expansão em massa
da educação e, mais tarde, também dos serviços de saúde, e o fizeram, em muitos
casos, antes de romper os grilhões da
pobreza generalizada. E colheram o que semearam”.[2]
Um estudo do IPEA comprova esta visão, ao analisar a “causalidade
econômica” gerada pelas políticas sociais. Assim o aumento de 1% do PIB em
investimentos na educação, gera um impacto de 1,85% como multiplicador do PIB,
e de 1,67% na renda das famílias. O Programa Bolsa Familia gera um
multiplicador do PIB de 1,44%, e um multiplicador de 2,25% de renda das
famílias. O pagamento de juros sobre a dívida pública, em contrapartida, gera
um impacto negativo, de 0,71% para o PIB.[3]
A
dimensão e a importância das políticas sociais mudaram qualitativamente,
exigindo novos equilíbrios nas prioridades da sociedade. E o equilíbrio das
várias áreas do desenvolvimento passou a depender de articulações sociais mais
complexas, que nos obrigam a deixar de lado as simplificações estatistas ou
liberais.
[1] Versão
atualizada do artigo originalmente publicado na coletânea Costos
Sociales da las Reformas Neoliberales en América Latina, (org) Anita
Kon, Catalina Banko, Dorothea Melcher, Maria Cristina Cacciamali, publicado por
PUC-SP, FAPESP, USP e UCV. 2000.
[2] Sen,
Amartya – Desenvolvimento como liberdade,
Cia. das Letras, São Paulo 1999. p. 58.
[3] IPEA, Comunicado N. 75, Gastos com a Política Social: alavanca para o crescimento com
distribuição de renda, Ipea, 3 de fevereiro de 2011, 16 p., disponível em http://bit.ly/e9rBGg . Ver em particular a
tabela na p. 11
*Extraído de Dowbor
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