quinta-feira, 6 de junho de 2013

Gestão social

Políticas sociais e transformação da sociedade[1] - II/V*
Ladislau Dowbor
A articulação do social e do produtivo
As simplificações são sempre atraentes, sobretudo numa fase de transformações complexas e aceleradas da sociedade. Basta dizer que estamos evoluindo para a era dos serviços? O conceito, por sua própria generalidade, tende hoje mais a confundir do que ajudar. É fácil dizer que nos Estados Unidos a agricultura ocupa 2,5% da mão de obra. Tal avaliação é possível porque reduzimos a atividade agrícola à lavra da terra. O agricultor americano hoje se apoia em serviços de análise de solos, em serviços de inseminação artificial, em serviços de calagem, serviços de silagem, serviços meteorológicos e outros. Deixou de haver agricultura, ou a agricultura passou a funcionar de outra forma, com maior densidade tecnológica?
Da mesma forma poderíamos dizer que a secretária ou o engenheiro que trabalham na fábrica não estão na indústria, estão na área de “serviços”. Que sentido teria isto? Na realidade trata-se em grande parte de uma transformação do conteúdo das atividades produtivas, e não do desaparecimento destas atividades em proveito de uma nebulosa área de “serviços”.
Não é mais um “setor” que está surgindo, um “terciário”. De certa forma, é o conjunto das atividades humanas que está sendo transformado, ao incorporar mais tecnologias, mais conhecimentos e mais aportes difusos da economia da informação.  Adquirem maior conteúdo de pesquisa, de design, de concepção, de planejamento e de organização tanto as atividades produtivas, como as atividades ligadas às infraestruturas econômicas, à intermediação comercial e financeira, e às políticas sociais. É a dimensão de conhecimento do conjunto das nossas atividades de reprodução social que está se avolumando. A sociedade realmente existente continua com necessidades básicas como casas decentes, saneamento, sapatos, arroz e feijão – que devem ser objeto das atividades produtivas de sempre, ainda que de forma crescentemente diferenciada.
As atividades produtivas, sem dúvida, continuam essenciais, mas não contêm em si mesmas as condições do seu sucesso. Para que milhões de unidades empresariais da agricultura, da indústria, da construção, sejam produtivas, temos de assegurar, além da própria organização do tecido produtivo e do progresso da gestão empresarial, sólidas infraestruturas de transporte, energia, telecomunicações, bem como água e saneamento, as chamadas “redes” de infraestruturas, sem as quais as empresas enfrentam custos externos insustentáveis e se tornam pouco competitivas.
Será demais lembrar que conseguimos encalacrar as cidades com transporte individual, o mais caro, desleixando o transporte coletivo que é dominante em qualquer país desenvolvido? Será inocente em termos de racionalidade da sociedade em seu conjunto o fato de termos optado por transporte rodoviário de carga, em vez do transporte ferroviário e por água? Quanto nos custa em gastos de saúde e desconforto o fato de uma ampla maioria de domicílios do país não terem acesso a um saneamento adequado?
O setor produtivo precisa por tanto de infraestruturas adequadas para que a economia no seu conjunto funcione. Mas precisa também se um bom sistema de financiamento e de comercialização, para que os processos de trocas possam fluir de forma ágil: estes serviços de intermediação, no nosso caso, se tornaram um fim em si mesmo, drenando o essencial da riqueza, constituindo-se mais propriamente em atravessadores do que intermediários, esterilizando a poupança do país.
Finalmente, nem a área produtiva, nem as redes de infraestruturas, e nem os serviços de intermediação funcionarão de maneira adequada se não houver investimento no ser humano, na sua formação, na sua saúde, na sua cultura, no seu lazer, na sua informação. Em outros termos, a dimensão social do desenvolvimento deixa de ser um “complemento”, uma dimensão humanitária de certa forma externa aos processos econômicos centrais, para se tornar um componente essencial do conjunto da reprodução social.
Não há nada de novo, naturalmente, em se afirmar que para o funcionamento adequado da área empresarial produtiva, são necessárias amplas redes de infraestruturas, serviços eficientes de intermediação, e um forte desenvolvimento da área social. O que há de diferente, é a nova importância relativa da dimensão social do nosso desenvolvimento. A saúde, para ser viável, tem de ser preventiva, permear todo o tecido social, e atingir toda a população. A educação no Brasil envolve hoje, entre alunos e professores, cerca de cinquenta milhões de pessoas. A cultura tornou-se uma dos setores mais importantes no conjunto das atividades econômicas e sociais. Segurança, lazer e turismo estão se avolumando por toda parte.
A herança teórica, das simplificações neoliberais, é de que quem produz bens e serviços, portanto o setor produtivo privado, gera riqueza. Ao pagar impostos sobre o produto gerado, viabiliza as políticas sociais, que representariam um custo. Deveríamos portanto, nesta visão, maximizar os interesses dos produtores, o setor privado, e moderar  as dimensões do Estado, o gastador.
A realidade é diferente. Quando uma empresa contrata um jovem engenheiro de 25 anos, recebe uma pessoa formada, o que representa um ativo formidável, que custou anos de cuidados, de formação, de acesso à cultura geral, de sacrifícios familiares, de uso de infraestruturas públicas as mais diversas, de aproveitamento do nível tecnológico geral desenvolvido na sociedade. As políticas sociais não constituem custos, são investimentos nas pessoas. E com a atual evolução para uma sociedade cada vez mais intensiva em conhecimento, investir nas pessoas é o que mais rende. O capital humano acumulado tende a se tornar no maior acervo de um país. A compreensão de que os processos produtivos de bens e serviços e as políticas sociais em geral são como a mão e a luva no conjunto da dinâmica do desenvolvimento, um financiando o outro, sendo todos ao mesmo tempo custo e produto, aponta para uma visão equilibrada e renovada das dinâmicas econômicas.
Amartya Sen resume bem o argumento: “Esta abordagem contraria – e na verdade abala – a crença tão dominante em muitos círculos políticos de que o “desenvolvimento humano” (como frequentemente é chamado o processo de expansão da educação, dos serviços de saúde e de outras condições da vida humana) é realmente um tipo de luxo que apenas os países mais ricos podem se dar. Talvez o impacto mais importante do tipo de êxito alcançado pelas economias do Leste Asiático, a começar do Japão, seja ter solapado totalmente este preconceito tácito. Essas economias buscaram comparativamente mais cedo a expansão em massa da educação e, mais tarde, também dos serviços de saúde, e o fizeram, em muitos casos, antes de romper os grilhões da pobreza generalizada. E colheram o que semearam”.[2]
Um estudo do IPEA comprova esta visão, ao analisar a “causalidade econômica” gerada pelas políticas sociais. Assim o aumento de 1% do PIB em investimentos na educação, gera um impacto de 1,85% como multiplicador do PIB, e de 1,67% na renda das famílias. O Programa Bolsa Familia gera um multiplicador do PIB de 1,44%, e um multiplicador de 2,25% de renda das famílias. O pagamento de juros sobre a dívida pública, em contrapartida, gera um impacto negativo, de 0,71% para o PIB.[3]
A dimensão e a importância das políticas sociais mudaram qualitativamente, exigindo novos equilíbrios nas prioridades da sociedade. E o equilíbrio das várias áreas do desenvolvimento passou a depender de articulações sociais mais complexas, que nos obrigam a deixar de lado as simplificações estatistas ou liberais.
 Referências


[1] Versão atualizada do artigo originalmente publicado na coletânea Costos Sociales da las Reformas Neoliberales en América Latina, (org) Anita Kon, Catalina Banko, Dorothea Melcher, Maria Cristina Cacciamali, publicado por PUC-SP, FAPESP, USP e UCV. 2000.

[2] Sen, Amartya – Desenvolvimento como liberdade, Cia. das Letras, São Paulo 1999. p. 58.

[3] IPEA, Comunicado N. 75, Gastos com a Política Social: alavanca para o crescimento com distribuição de renda, Ipea, 3 de fevereiro de 2011, 16 p., disponível em http://bit.ly/e9rBGg . Ver em particular a tabela na p. 11

*Extraído de Dowbor

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