quinta-feira, 13 de junho de 2013

Gestão social

Políticas sociais e transformação da sociedade[1] - III/V*
Ladislau Dowbor
O social: meio ou fim?
O principal setor econômico dos Estados Unidos é hoje a saúde, com 18,1 do PIB. Agigantou-se também a chamada entertainment industry, a indústria do entretenimento, que pertence essencialmente à área cultural. A educação também assumiu, se somarmos a educação formal, a formação nas empresas, a explosão dos cursos de atualização tecnológica (da informática à inseminação artificial) e outros, dimensões que a tornaram um gigante tanto em termos de recursos envolvidos como de emprego. A formação de adultos atinge hoje nos Estados Unidos uma massa que não imaginaríamos há uma década ainda: “Os números são estonteantes. Enquanto apenas 23 milhões de pessoas de americanos tomavam parte de programas de educação de adultos em 1984, de acordo com o National Center for Educational Statistics, o número tinha chegado a 76 milhões em 1995, e segundo certos prognósticos poderia ultrapassar 100 milhões em 2004″.
A saúde como política social já não é mais um complemento onde pessoas com preocupações sociais vêm colocar um esparadrapo nas feridas das vítimas do progresso, como a cultura já não é o verniz chique de uma pessoa com dinheiro. A área social, hoje,  é o negócio.
A transformação é profunda. No decorrer de meio século, passamos de uma visão filantrópica, de generosidade assistencial, de caridade, de um tipo de bálsamo tranquilizador para as consciências capitalistas, para a compreensão de que a área social se tornou essencial para as próprias atividades econômicas. Esta mudança profunda de enfoque foi positiva. As áreas empresariais, com suporte de numerosos estudos do Banco Mundial, passaram a entender que não se trata de simples cosmética social, mas das condições indispensáveis para a própria produtividade empresarial. É a visão que leva, em numerosos países, a que as próprias empresas deem forte sustento político ao ensino público universal, a sistemas de saúde abrangentes e eficientes e assim por diante.
Uma coisa é reconhecer que a área social é indispensável para o bom andamento das atividades produtivas. Outra coisa é colocar esta área a serviço das empresas. Neste sentido, estamos assistindo a uma segunda mudança importante, que podemos constatar por exemplo nos Relatórios sobre o Desenvolvimento Humano das Nações Unidas: Pensando bem, uma vida com saúde, educação, cultura, lazer, informação, é exatamente o que queremos da vida. Em outros termos, o enfoque correto não é que devemos melhorar a educação porque as empresas irão funcionar melhor: a educação, o lazer, a saúde, a segurança constituem os objetivos últimos da sociedade, e não um mero instrumento de desenvolvimento empresarial. A atividade econômica é um meio, o bem-estar social é o fim.
A mudança de enfoque contribuiu para nos dar um choque de realismo. Enquanto colocávamos as atividades produtivas no centro, na visão do Banco Mundial centrada no produto interno bruto, podíamos nos vangloriar de sermos a oitava economia mundial. Quando olhamos o Brasil pelo prisma da qualidade de vida, nos critérios definidos nos Indicadores de Desenvolvimento Humano das Nações Unidas, o nosso lugar no ranking planetário é 79º.
De certa forma, aparecem claramente duas ideias chave: primeiro, a área social tornou-se central para o desenvolvimento, em qualquer parte do planeta. Segundo, os resultados nesta área constituem o principal critério de avaliação da política de desenvolvimento em geral. Em termos de Brasil, constatamos que deste ponto de vista atingiu-se um desequilíbrio dramático entre as dimensões produtivas e a dimensão social. E o sucesso econômico brasileiro dos últimos anos resulta sem dúvida da visão mais equilibrada das dimensões sociais no conjunto do processo de desenvolvimento.
Não se trata portanto, na presente reconstrução do país, de atrair mais uma fábrica de carros, com tecnologias mais avançadas, e com os poucos empregos que estas novas tecnologias geram. Trata-se de pensar e organizar o equilíbrio social e ambiental. Este sim abre o espaço real para o desenvolvimento. Trata-se de inverter a equação.
O social: um setor ou uma dimensão?
Colocar o desenvolvimento social e a qualidade de vida como objetivo, como finalidade mais ampla da sociedade, tem repercussões profundas, na medida em que o social deixa de ser apenas um setor de atividades, para se tornar uma dimensão de todas as nossas atividades, englobando inclusive a dimensão da sustentabilidade em geral.
Quando um grande produtor de soja nos afirma que é capaz de suprir as nossas necessidades agrícolas em geral, visualiza dezenas de milhares de hectares de plantações numa ponta, e consumidores felizes na outra. Em outra visão, esta opção representa êxodo rural, famílias sem emprego penduradas nas periferias urbanas, gigantescos custos humanos, e enormes custos financeiros em termos de segurança, saúde e outros, além de um fluxo de renda insuficiente para consumir o produto.
Existe outra opção, que é por exemplo a da criação de cinturões verdes em torno das regiões urbanas. Quem já viajou pela Europa, lembrará dos milhares de pequenas unidades agrícolas em torno das cidades, assegurando abastecimento em produtos hortícolas, promovendo o lazer divertido e produtivo de fim de semana, contribuindo para absorver a mão de obra, abrindo oportunidades de terceira-idade e assim por diante.
Pode-se elencar centenas de opções deste tipo, entre a produtividade da grande empresa e o bem-estar social. Não há dúvida que, na ponta do lápis, mil hectares de tomate permitirão uma produção a custo unitário mais baixo. É a lógica micro-econômica. No entanto, se somarmos os custos do êxodo rural, do desemprego, da criminalidade, da poluição química, dos desequilíbrios políticos gerados pela presença de um polo de poder corporativo na economia e na política locais, não há dúvida que a sociedade como um todo terá uma produtividade menor. Em outros termos, a melhor produtividade sistêmica não é a que resulta da simples maximização e soma das produtividades micro-econômicas, mas de articulações mais inteligentes dos potenciais no território[1].
Não se trata de finezas teóricas. Milhares de empresas poluem os rios. Os empresários e os seus economistas explicam que jogar os resíduos no rio é mais barato, que os ambientalistas são uns exagerados, que a produtividade e competitividade é mais importante, pois assegura mais empregos, e em última instância mais bem-estar via salários. No entanto, o dinheiro economizado pelas empresas, ao não se equiparem para a proteção do meio ambiente, resulta em rios poluídos. Estes por sua vez geram doenças e enormes gastos em saúde curativa, além de perda de lazer e prejuízo de outras atividades como pesca ou turismo. Pagando com os nossos impostos, as prefeituras terão de proceder à recuperação da água poluída, com custos dezenas de vezes superiores ao que teria sido o custo da prevenção. O resultado prático é uma sociedade que perde dinheiro, além de perder qualidade de vida.
Visitando um supermercado em Toronto, encontrei uma sala repleta de livros. Explicaram-me que se tratava de uma seção da biblioteca municipal, que funciona dentro do supermercado. A lógica é simples: quando uma pessoa vai fazer compras, aproveita para pegar um livro para a semana, devolvendo o da semana anterior. Em termos micro-econômicos, de faturamento, não há dúvida que o supermercado preferiria ter uma seção de cremes de beleza. Mas em termos de qualidade de vida e de cidadania, ter essa facilidade de acesso aos livros, poder folheá-los com as crianças, gerando interesse pela cultura, aumenta indiscutivelmente a produtividade social.
A essência do enfoque é que não se trata de optar pelo supermercado ou pelo livro, pelo interesse econômico ou pelo social: trata-se de articulá-los. E em numerosos países, a articulação destes interesses já foi incorporada nas práticas correntes de gestão da sociedade, na chamada governança.
Ao apresentar no Brasil a discussão escandinava sobre a reforma do Estado, Ove Pedersen explica: “É minha asserção que os países escandinavos estão crescentemente assumindo o caráter de uma economia negociada (negotiated economy). Uma parte essencial, e inclusive crescente, da alocação de recursos produtivos, bem como a (re)distribuição do produto é determinada nem no mercado, nem através de tomadas de decisão autônomas das autoridades públicas. Em vez disto, o processo de tomada de decisão é conduzido através de negociações institucionalizadas entre os agentes interessados relevantes, que chegam a decisões vinculantes tipicamente sobre a base de imperativos discursivos, políticos ou morais, mais do que sobre a base de ameaças e incentivos econômicos”
Em outros termos, busca-se inteligentemente, entre os diversos agentes econômicos e sociais interessados, as soluções negociadas que permitirão maximizar os resultados nos planos social, econômico e ambiental. Quem olha a Suécia, país pequeno, congelado sete meses por ano, com todas as dificuldades econômicas que isto implica, deve-se perguntar a razão da simultânea prosperidade econômica e qualidade de vida. A razão reside, em grande parte, no fato de se zelar não só pelo capital da empresa, mas crescentemente pelo capital social do país.
No Canadá, as pessoas se acostumaram a lavar, para dar um exemplo, a latinha de massa de tomate que utilizaram, e a depositá-la em recipiente adequado. É o chamado lixo limpo, conceito que já está penetrando em várias cidades brasileiras. Se multiplicarmos, para dar um exemplo, cinco pequenas ações ambientais deste tipo por dia, pelos 30 milhões que conta a população do Canadá, teremos 150 milhões de ações ambientais por dia.
Em São Paulo, o programa de reciclagem foi cancelado na época de Paulo Maluf, pois não é economicamente viável. O raciocínio é correto do ponto de vista microeconômico: custa mais a reciclagem doméstica do que o valor de venda do produto reciclado. No Canadá, no entanto, uma vez generalizada a atitude, ou a cultura, do não desperdício, constatou-se que o lixo orgânico que sobra é muito pouco. A prefeitura de Toronto forneceu latas de lixo padronizadas e herméticas, para o este tipo de lixo. Como é pouco e está vedado, não provocando mau cheiro, foi possível passar a recolha do lixo de todo dia para uma vez por semana. Isto significa evidentemente uma redução dramática dos custos de limpeza da cidade. A mudança cultural, e a correspondente mudança da forma de organização das atividades provocam assim uma grande melhoria da produtividade social.
É fácil dizer que se trata de sociedades ricas, onde há cultura e espaço para atividades do gênero. Mas podemos inverter o raciocínio. A sociedade do Canadá é muito menos rica do que a dos Estados Unidos, e no entanto a qualidade de vida é muito superior. Vendo por outro ângulo, podemos nos perguntar se Canadá consegue promover este tipo de iniciativas porque é rico, ou se tornou rico por optar pelos caminhos socialmente mais produtivos? É muito impressionante ver a que ponto a cultura do bom senso econômico e social, e que poderíamos chamar de capital social, gera economias e racionalidades em cadeia: as escolas abrem à noite e aos fins de semana as suas instalações esportivas para a vizinhança, o que aumenta a infraestrutura de lazer disponível, com vários impactos conhecidos em termos de saúde, convívio social, prevenção de marginalidade e assim por diante. A disponibilidade de lazer social reduz por exemplo o absurdo de famílias ricas construírem piscinas individuais, que passam mais de 90% do tempo sem uso, com grande custo e produtividade quase nula.
Não é o caso de multiplicar exemplos de uma tendência que já se tornou evidente no plano internacional. O que isto implica, em termos de melhoria da gestão, é que o avanço social não significa apenas destinar por lei uma maior parcela de recursos para a educação. Significa também incorporar nas decisões empresariais, ministeriais, comunitárias ou individuais, as diversas dimensões e os diversos impactos que cada ação pode ter em termos de qualidade de vida. Além de uma área, — com os seus setores evidentes como saúde, educação, habitação, lazer, cultura, informação, esporte, — o social constitui por tanto também uma dimensão de todas as outras atividades, uma forma de fazer indústria, uma forma de pensar desenvolvimento urbano, uma forma de tratar os rios, uma forma de organizar o comércio.


continua...

Referências


[1] Ver a nossa nota técnica Produtividade Sistêmica do Território, 2009, 4p. http://dowbor.org/2009/11/produtividade-sistemica-do-territorio-nov.html/


*Extraído de Dowbor

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