Políticas sociais e transformação da sociedade[1] - III/V*
Ladislau Dowbor
O social: meio ou fim?
O principal
setor econômico dos Estados Unidos é hoje a saúde, com 18,1 do PIB. Agigantou-se
também a chamada entertainment
industry, a indústria do entretenimento, que pertence
essencialmente à área cultural. A educação também assumiu, se somarmos a
educação formal, a formação nas empresas, a explosão dos cursos de atualização
tecnológica (da informática à inseminação artificial) e outros, dimensões que a
tornaram um gigante tanto em termos de recursos envolvidos como de emprego. A
formação de adultos atinge hoje nos Estados Unidos uma massa que não
imaginaríamos há uma década ainda: “Os números são estonteantes. Enquanto
apenas 23 milhões de pessoas de americanos tomavam parte de programas de
educação de adultos em 1984, de acordo com o National Center for Educational Statistics, o número tinha chegado
a 76 milhões em 1995, e segundo certos prognósticos poderia ultrapassar 100
milhões em 2004″.
A
saúde como política social já não é mais um complemento onde pessoas com
preocupações sociais vêm colocar um esparadrapo nas feridas das vítimas do
progresso, como a cultura já não é o verniz chique de uma pessoa com dinheiro.
A área social, hoje, é o negócio.
A
transformação é profunda. No decorrer de meio século, passamos de uma visão
filantrópica, de generosidade assistencial, de caridade, de um tipo de bálsamo
tranquilizador para as consciências capitalistas, para a compreensão de que a
área social se tornou essencial para as próprias atividades econômicas. Esta
mudança profunda de enfoque foi positiva. As áreas empresariais, com suporte de
numerosos estudos do Banco Mundial, passaram a entender que não se trata de
simples cosmética social, mas das condições indispensáveis para a própria
produtividade empresarial. É a visão que leva, em numerosos países, a que as
próprias empresas deem forte sustento político ao ensino público universal, a
sistemas de saúde abrangentes e eficientes e assim por diante.
Uma
coisa é reconhecer que a área social é indispensável para o bom andamento das
atividades produtivas. Outra coisa é colocar esta área a serviço das empresas.
Neste sentido, estamos assistindo a uma segunda mudança importante, que podemos
constatar por exemplo nos Relatórios
sobre o Desenvolvimento Humano das Nações Unidas: Pensando
bem, uma vida com saúde, educação, cultura, lazer, informação, é exatamente o
que queremos da vida. Em outros termos, o enfoque correto não é que devemos
melhorar a educação porque as empresas irão funcionar melhor: a educação, o
lazer, a saúde, a segurança constituem os objetivos últimos da sociedade, e não um mero
instrumento de desenvolvimento empresarial. A atividade econômica é um meio, o bem-estar social é o fim.
A
mudança de enfoque contribuiu para nos dar um choque de realismo. Enquanto
colocávamos as atividades produtivas no centro, na visão do Banco Mundial
centrada no produto interno bruto, podíamos nos vangloriar de sermos a oitava
economia mundial. Quando olhamos o Brasil pelo prisma da qualidade de vida, nos
critérios definidos nos Indicadores de
Desenvolvimento Humano das Nações Unidas, o nosso lugar no
ranking planetário é 79º.
De
certa forma, aparecem claramente duas ideias chave: primeiro, a área social
tornou-se central para o desenvolvimento, em qualquer parte do planeta.
Segundo, os resultados nesta área constituem o principal critério de avaliação
da política de desenvolvimento em geral. Em termos de Brasil, constatamos que
deste ponto de vista atingiu-se um desequilíbrio dramático entre as dimensões
produtivas e a dimensão social. E o sucesso econômico brasileiro dos últimos
anos resulta sem dúvida da visão mais equilibrada das dimensões sociais no
conjunto do processo de desenvolvimento.
Não
se trata portanto, na presente reconstrução do país, de atrair mais uma fábrica
de carros, com tecnologias mais avançadas, e com os poucos empregos que estas
novas tecnologias geram. Trata-se de pensar e organizar o equilíbrio social e
ambiental. Este sim abre o espaço real para o desenvolvimento. Trata-se de
inverter a equação.
O social: um setor ou uma dimensão?
Colocar
o desenvolvimento social e a qualidade de vida como objetivo, como finalidade
mais ampla da sociedade, tem repercussões profundas, na medida em que o social
deixa de ser apenas um setor de atividades, para se tornar uma dimensão de
todas as nossas atividades, englobando inclusive a dimensão da sustentabilidade
em geral.
Quando
um grande produtor de soja nos afirma que é capaz de suprir as nossas necessidades
agrícolas em geral, visualiza dezenas de milhares de hectares de plantações
numa ponta, e consumidores felizes na outra. Em outra visão, esta opção
representa êxodo rural, famílias sem emprego penduradas nas periferias urbanas,
gigantescos custos humanos, e enormes custos financeiros em termos de
segurança, saúde e outros, além de um fluxo de renda insuficiente para consumir
o produto.
Existe
outra opção, que é por exemplo a da criação de cinturões verdes em torno das
regiões urbanas. Quem já viajou pela Europa, lembrará dos milhares de pequenas
unidades agrícolas em torno das cidades, assegurando abastecimento em produtos
hortícolas, promovendo o lazer divertido e produtivo de fim de semana,
contribuindo para absorver a mão de obra, abrindo oportunidades de
terceira-idade e assim por diante.
Pode-se
elencar centenas de opções deste tipo, entre a produtividade da grande empresa
e o bem-estar social. Não há dúvida que, na ponta do lápis, mil hectares de
tomate permitirão uma produção a custo unitário mais baixo. É a lógica
micro-econômica. No entanto, se somarmos os custos do êxodo rural, do
desemprego, da criminalidade, da poluição química, dos desequilíbrios políticos
gerados pela presença de um polo de poder corporativo na economia e na política
locais, não há dúvida que a sociedade como um todo terá uma produtividade
menor. Em outros termos, a melhor produtividade
sistêmica não é a que resulta da simples maximização e soma
das produtividades micro-econômicas, mas de articulações mais inteligentes dos
potenciais no território[1].
Não
se trata de finezas teóricas. Milhares de empresas poluem os rios. Os
empresários e os seus economistas explicam que jogar os resíduos no rio é mais
barato, que os ambientalistas são uns exagerados, que a produtividade e
competitividade é mais importante, pois assegura mais empregos, e em última
instância mais bem-estar via salários. No entanto, o dinheiro economizado pelas
empresas, ao não se equiparem para a proteção do meio ambiente, resulta em rios
poluídos. Estes por sua vez geram doenças e enormes gastos em saúde curativa,
além de perda de lazer e prejuízo de outras atividades como pesca ou turismo.
Pagando com os nossos impostos, as prefeituras terão de proceder à recuperação
da água poluída, com custos dezenas de vezes superiores ao que teria sido o
custo da prevenção. O resultado prático é uma sociedade que perde dinheiro,
além de perder qualidade de vida.
Visitando
um supermercado em Toronto, encontrei uma sala repleta de livros. Explicaram-me
que se tratava de uma seção da biblioteca municipal, que funciona dentro do
supermercado. A lógica é simples: quando uma pessoa vai fazer compras,
aproveita para pegar um livro para a semana, devolvendo o da semana anterior.
Em termos micro-econômicos, de faturamento, não há dúvida que o supermercado
preferiria ter uma seção de cremes de beleza. Mas em termos de qualidade de
vida e de cidadania, ter essa facilidade de acesso aos livros, poder folheá-los
com as crianças, gerando interesse pela cultura, aumenta indiscutivelmente a
produtividade social.
A essência
do enfoque é que não se trata de optar pelo
supermercado ou pelo livro, pelo interesse econômico ou pelo social: trata-se
de articulá-los. E em numerosos países, a articulação destes interesses já foi
incorporada nas práticas correntes de gestão da sociedade, na chamada governança.
Ao
apresentar no Brasil a discussão escandinava sobre a reforma do Estado, Ove
Pedersen explica: “É minha asserção que os países escandinavos estão
crescentemente assumindo o caráter de uma economia negociada (negotiated economy). Uma parte
essencial, e inclusive crescente, da alocação de recursos produtivos, bem como
a (re)distribuição do produto é determinada nem no mercado, nem através de
tomadas de decisão autônomas das autoridades públicas. Em vez disto, o processo
de tomada de decisão é conduzido através de negociações institucionalizadas
entre os agentes interessados relevantes, que chegam a decisões vinculantes
tipicamente sobre a base de imperativos discursivos, políticos ou morais, mais
do que sobre a base de ameaças e incentivos econômicos”
Em
outros termos, busca-se inteligentemente, entre os diversos agentes econômicos
e sociais interessados, as soluções negociadas que permitirão maximizar os
resultados nos planos social, econômico e ambiental. Quem olha a Suécia, país
pequeno, congelado sete meses por ano, com todas as dificuldades econômicas que
isto implica, deve-se perguntar a razão da simultânea prosperidade econômica e
qualidade de vida. A razão reside, em grande parte, no fato de se zelar não só
pelo capital da empresa, mas crescentemente pelo capital social do país.
No
Canadá, as pessoas se acostumaram a lavar, para dar um exemplo, a latinha de
massa de tomate que utilizaram, e a depositá-la em recipiente adequado. É o
chamado lixo limpo, conceito que já está penetrando em várias cidades
brasileiras. Se multiplicarmos, para dar um exemplo, cinco pequenas ações
ambientais deste tipo por dia, pelos 30 milhões que conta a população do
Canadá, teremos 150 milhões de ações ambientais por dia.
Em
São Paulo, o programa de reciclagem foi cancelado na época de Paulo Maluf, pois
não é economicamente viável. O raciocínio é correto do ponto de vista
microeconômico: custa mais a reciclagem doméstica do que o valor de venda do
produto reciclado. No Canadá, no entanto, uma vez generalizada a atitude, ou a
cultura, do não desperdício, constatou-se que o lixo orgânico que sobra é muito
pouco. A prefeitura de Toronto forneceu latas de lixo padronizadas e
herméticas, para o este tipo de lixo. Como é pouco e está vedado, não
provocando mau cheiro, foi possível passar a recolha do lixo de todo dia para
uma vez por semana. Isto significa evidentemente uma redução dramática dos
custos de limpeza da cidade. A mudança cultural, e a correspondente mudança da
forma de organização das atividades provocam assim uma grande melhoria da
produtividade social.
É fácil
dizer que se trata de sociedades ricas, onde há cultura e espaço para
atividades do gênero. Mas podemos inverter o raciocínio. A sociedade do Canadá
é muito menos rica do que a dos Estados Unidos, e no entanto a qualidade de
vida é muito superior. Vendo por outro ângulo, podemos nos perguntar se Canadá
consegue promover este tipo de iniciativas porque é rico, ou se tornou rico por
optar pelos caminhos socialmente mais
produtivos? É muito impressionante ver a que ponto a cultura do bom senso
econômico e social, e que poderíamos chamar de capital social, gera economias e racionalidades em cadeia:
as escolas abrem à noite e aos fins de semana as suas instalações esportivas
para a vizinhança, o que aumenta a infraestrutura de lazer disponível, com
vários impactos conhecidos em termos de saúde, convívio social, prevenção de
marginalidade e assim por diante. A disponibilidade de lazer social reduz por
exemplo o absurdo de famílias ricas construírem piscinas individuais, que
passam mais de 90% do tempo sem uso, com grande custo e produtividade quase
nula.
Não é
o caso de multiplicar exemplos de uma tendência que já se tornou evidente no
plano internacional. O que isto implica, em termos de melhoria da gestão, é que
o avanço social não significa apenas destinar por lei uma maior parcela de
recursos para a educação. Significa também incorporar nas decisões
empresariais, ministeriais, comunitárias ou individuais, as diversas dimensões
e os diversos impactos que cada ação pode ter em termos de qualidade de vida.
Além de uma área, — com os seus setores evidentes como saúde, educação,
habitação, lazer, cultura, informação, esporte, — o social constitui por tanto
também uma dimensão de todas as outras atividades, uma forma de fazer
indústria, uma forma de pensar desenvolvimento urbano, uma forma de tratar os
rios, uma forma de organizar o comércio.
continua...
Referências
[1] Ver a
nossa nota técnica Produtividade
Sistêmica do Território, 2009, 4p. http://dowbor.org/2009/11/produtividade-sistemica-do-territorio-nov.html/
*Extraído de Dowbor
Nenhum comentário:
Postar um comentário