quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Altamiro Carrilho

A flauta mágica
Celso Evaristo Silva*

Altamiro Carrilho (1924-2012) parou de soprar. Nós suspiramos. Ele chorou na flauta um dos gêneros musicais com maior toque de brasilidade na sua essência e, ao mesmo tempo, portador de uma universalidade reconhecida. O choro e sua variante mais conhecida, chorinho, nasceram no final do séc. XIX, no Rio de Janeiro, atingindo o auge nas primeiras décadas do séc. XX. Instrumentistas chamados chorões formavam grupos musicais denominados regionais, com seus violões de seis e sete cordas, clarinete, flauta, cavaquinho, trombone (com o tempo, o pandeiro passou a ser admitido, desde que não fizesse muito barulho). Tocavam-se polcas, mazurcas, valsas, modinhas, maxixes e, claro, o choro: uma forma de música bem melodiosa, com um corte rítmico e modulações tonais próprias; às vezes alegre e brejeira, por vezes, melancólica e sentimental, mas sempre de uma riqueza harmônica digna de uma fugata. Sincrético na sua origem, o choro mescla elementos musicais africanos e europeus, fazendo com nossa música o que o maxixe fez com a dança.

O ambiente onde os chorões se apresentavam podia ser qualquer lugar da cidade. Faziam longas serenatas pelas ruas e praças do Rio de outrora. Alegravam festas e saraus. Frequentemente reuniam-se em uma taverna, botequim ou quintal de casa de subúrbio para desfrutar do simples prazer de tocar junto; neste caso, a platéia era dispensável se relutasse em fazer silêncio absoluto; idem para com o músico não virtuoso, por eles apelidado de “facão”.

Os pioneiros do gênero foram: Joaquim Callado (1848-1880) e sua Flor amorosa, Chiquinha Gozaga (1847-1935), Ernesto Nazareth (1863-1934), criador do famoso chorinho Odeon; Catulo da Paixão Cearense (1863-1946), autor da mais tradicional modinha - Luar do sertão; o paulista Zequinha de Abreu (1880-1935), com o sucesso Tico-tico no fubá; os grandes flautistas Patápio Silva (1881-1907) e Benedito Lacerda (1903-1958), por cujas obras Altamiro manteve sempre respeitosa admiração.

Toda essa gente abençoada por dois mestres: Heitor Villa-Lobos (1887-1959), que, entre a vida boêmia e as salas de concerto, unia o clássico ao popular; e Alfredo da Rocha Viana Filho (1898-1973), mais conhecido como Pixinguinha. A ele devemos a consolidação definitiva do choro. Altamiro Carrilho sempre incluía no repertório de suas apresentações choros de Pixinguinha – Um a zero, Urubu malandro, Lamento, Naquele Tempo, Sofres porque queres e o indefectível Carinhoso.

São com essas referências que o nosso flautista, prático de farmácia e fluminense de Santo Antônio de Pádua, assume a liderança na defesa do chorinho no Brasil e mundo afora. Mestre na improvisação, começou sua carreira no programa de calouros de Ary Barroso (1903-1964). Em 1951, ingressa no conjunto regional do violonista Garoto (1915-1955), na Rádio Marynk Veiga, em substituição a Benedito Lacerda. Daí por diante, acompanhou grandes nomes de nossa música popular, como Vicente Celestino (1894-1968), Francisco Alves (1898-1952)
, o Rei da Voz, Orlando Silva (1915-1978); Dalva de Oliveira (1917-1972), dentre outros. Mais tarde, criou o grupo Altamiro e sua bandinha, para se apresentar em horário nobre na antiga TV Tupi, alcançando enorme sucesso.

Todavia, no final dos anos 50, início dos 60, o fôlego do chorinho já não acompanhava o seu. Há muito o gênero perdera espaço para o samba, em especial, o samba-canção, primo-irmão do bolero; e, por fim, a bossa nova assumiu a vanguarda, atraindo a juventude talentosa que ansiava por novos caminhos estéticos para a música brasileira. O golpe final veio com o chorrilho da Jovem Guarda e do iê-iê-iê (simulacros tupiniquins do pop rock norte-americano). Nichos ainda resistiam nos subúrbios cariocas, mas não houve renovação possível. Os principais centros culturais do país – Rio e São Paulo - estavam divididos entre o pop rock vindo do norte e o que se convencionou chamar de Música Popular Brasileira – MPB, uma mixórdia de gêneros e estilos unidos na tentativa de fazer frente à invasão alienígena. A música brasileira de boa qualidade havia sido expulsa lentamente das rádios, TV e casas noturnas.

Em meados dos anos 70 acontece fugaz renascimento do choro. O QG deste acontecimento espontâneo era um armazém localizado no subúrbio carioca da Penha: o Sovaco de cobra.

O português dono do estabelecimento, além de torcer pelo Vasco, era amante de chorinho. Regionais remanescentes começaram a atacar por lá os tremoços regados a chope, todos os sábados à tarde. Não demorou muito para o mineiro Abel Ferreira (1915-1980), Dino 7 Cordas (1918-2006), o trombonista Zé da Velha, o Conjunto Época de Ouro, Paulinho da Viola e o regional de seu pai; os violonistas Guinga, Raphael Rabello (1962-1995) e Paulinho Nogueira (1929-2003); o gaúcho Radamés Gnattali (1906-1988), Joel do Bandolim, Paulo Moura e, claro, o nosso Ás da flauta identificarem o cheiro da boa música e darem suas “canjas” por lá. Seguiram novelas, filmes, discos, shows de choro pelo Brasil inteiro. O lugar virou point, encheu de gente “descolada”, o português abriu filiais, bandas ecléticas “aguitarradas” foram contratadas e a vida seguiu seu curso. A duração dessa renascença foi efêmera. Rapidamente a coisa perdeu o frescor da novidade, e, com ele, o interesse mercadológico. Brasília e a cidade de Conservatória, no Rio, ainda tentam manter viva a chama. Na verdade, o chorinho retornou à condição de relíquia do folclore nacional.

Porém, Altamiro Carrilho já tinha atravessado o Atlântico para tocar Mozart, Bach, Villa-Lobos e Pixinguinha para boquiabertos alemães, ingleses, espanhóis, portugueses, egípcios, indianos etc. Suas apresentações impressionavam pelo amálgama equilibrado entre o rigor técnico da execução e a emoção passada ao público.

Hoje, no Japão, Europa, EUA existem grupos musicais dedicados ao estudo e execução do chorinho. Yo-Yo Ma, Wynton Marsalis, Stéphane Grappelli e muitos músicos de renome, além de apaixonados pelo chorinho, consideram Altamiro um dos maiores flautistas de todos os tempos.

Se algo parecido com Shangri-La existe, lá, com certeza, estão Pixinguinha, Jacob do Bandolim, Waldyr Azevedo, Dilermando Reis, Jackson do Pandeiro e Ademilde Fonseca tocando e cantando Brasileirinho junto com Altamiro e suas flautas. Sem dúvida, música para os deuses . . . !



Quinho

                                         
*Administrador e Sociólogo

3 comentários:

Alda disse...

Que maravilha de texto, Dani. Parabenize o Celso por mim. Sorte sua poder publicá-lo e sorte a dele ter espaço no seu blog. Um exemplo de sinergia.

Célia Figueira disse...

Gostei imenso desse texto. Muito bom.

Anônimo disse...

Homenagem merecida.