quinta-feira, 27 de junho de 2013

Gestão social

Políticas sociais e transformação da sociedade[1] - V/V*
Ladislau Dowbor
O social: um poderoso articulador social
Um caminho renovado vem sendo construído através de parcerias envolvendo o setor estatal, organizações não-governamentais e setores abertos do empresariado. Surgem com força conceitos como responsabilidade social e ambiental do setor privado. O chamado terceiro-setor aparece como uma alternativa de organização que pode, ao se articular com o Estado e assegurar a participação cidadã, trazer respostas inovadoras. As empresas privadas ultrapassam a visão do assistencialismo, para assumir a responsabilidade que lhe confere o poder político efetivo que têm. Passa-se assim do simples marketing social, frequentemente com objetivos cosméticos, para uma atitude construtiva onde o setor privado pode ajudar a construir o interesse público.
Onde funciona, como por exemplo no Canadá ou nos países escandinavos, a área social é gerida como bem público, de forma descentralizada e intensamente participativa. A razão é simples: o cidadão associado à gestão da saúde do seu bairro está interessado em não ficar doente, e está consciente de que trata da sua vida. Um pai, associado à gestão da escola do seu bairro, não vai brincar com futuro dos seus filhos. De certa forma, o interesse direto do cidadão pode ser capitalizado para se desenhar uma forma desburocratizada e flexível de gestão social, apontando para novos paradigmas que ultrapassam tanto a pirâmide estatal como o vale-tudo do mercado.
Outro eixo renovador surge com as políticas municipais, o chamado desenvolvimento local. A urbanização permite articular o social, o político e o econômico em políticas integradas e coerentes, a partir de ações de escala local, viabilizando — mas não garantindo, e isto é importante para entender o embate político — a participação direta do cidadão, e a articulação dos parceiros. O surgimento de políticas inovadoras nesta área é muito impressionante. Peter Spink e um grupo de pesquisadores na Fundação Getúlio Vargas em São Paulo têm hoje um banco de 400 descrições de experiências exitosas e premiadas. A Secretaria de Assuntos Institucionais do Partido dos Trabalhadores tem um banco de dados com algumas centenas de experiências. O Pólis publica excelentes resumos no quadro das Dicas Municipais. A Fundação Abrinq está ajudando a dinamizar um conjunto de atividades no quadro do movimento Prefeito-Criança. Efeito indireto da urbanização, assistimos a uma aceleração de iniciativas locais que estão transformando o contexto político da gestão social.
Uma vantagem muito significativa das políticas locais é o fato de poderem integrar os diferentes setores, e articular os diversos atores. Pelo país afora, constatamos a expansão de conselhos locais de desenvolvimento econômico e social, de articulações inovadoras buscando no conjunto melhorar a qualidade de vida da população. São Paulo criou em 2013 um conselho de desenvolvimento sustentável, na linha da rede de Cidades Sustentáveis que hoje envolvem 31% da população do país. 
Não há fórmula universal na área social. Como demonstra a riqueza do projeto médico de família, por exemplo, a dimensão diferenciada das relações humanas é fundamental nas políticas sociais. Uma das mais significativas riquezas do desenvolvimento local resulta justamente do fato de se poder adequar as ações às condições extremamente diferenciadas que as populações enfrentam.
Isto não implica, naturalmente, que as políticas sociais possam se resumir à ação local, às parcerias com o setor privado, e à dinâmica do terceiro setor. A reformulação atinge diretamente a forma como está concebida a política nacional nas diversas áreas de gestão social, colocando em questão a presente hierarquização das esferas de governo, e nos obriga a repensar o domínio das macroestruturas privadas que se apropriam das áreas da saúde, dos meios de informação, dos instrumentos de cultura.
Mais uma vez, não se trata aqui de redescobrir coisas óbvias. Mas devemos nos colocar uma pergunta elementar: se as atividades da área social estão se tornando o setor mais importante, que tipo de relações sociais de produção o seu surgimento traz no seu bojo? Seguramente, serão diferentes das que foram geradas com o desenvolvimento industrial. Apontam para uma sociedade mais horizontalizada, mais participativa, mais organizada em rede do que as tradicionais pirâmides de autoridade. Ou podem ainda gerar um tipo de capitalismo de pedágio centrado na indústria da doença, na indústria do diploma, na manipulação cultural através da publicidade e do controle da mídia.
A universidade frente ao novo continente: primeiros passos
Não há dúvida que no Brasil a discussão ainda é muito recente, sobretudo se considerarmos que se trata de uma revisão profunda dos nossos paradigmas de como a sociedade se gere. Ainda estamos impregnados da visão de que a empresa só se interessa pelo lucro e será por tanto inacessível a uma visão social ou ambiental, de que organizar a participação da sociedade civil é apenas uma forma de desresponsabilizar o Estado e assim por diante. A contribuição acadêmica ainda está muito fragmentada, separada por setores, fatiada por assim dizer.
É muito significativo constatarmos que uma série de conceitos básicos da reformulação política e social que está ocorrendo em muitos países sequer encontra tradução em português: é o caso de empowerment, que os hispano-americanos já traduzem de empoderamiento, no sentido de resgate do poder político pela sociedade, e que estamos nacionalizando como empoderamento; de stakeholder, ou seja, de ator social que tem um interesse numa determinada decisão; de advocacy, que representa o original etimológico de ad-vocare, de criar capacidade de voz e defesa a uma causa, a um grupo social; de accountability, ou seja, da responsabilização dos representantes da sociedade em termos de prestação de contas; de devolution, recuperação da capacidade política de decisão pelas comunidades, como contraposição ao conceito de privatização; trata-se também de entitlement, de self-reliance e tantos outros. Além do conceito chave de governance, que envolve capacidade de governo do conjunto dos atores sociais, públicos e privados, onde o conceito tradicional de governança, tal como existe no Aurélio, tem de ser reconstruído.
A articulação que temos pela frente envolve uma aproximação articulada de empresários, de administradores públicos, de políticos, de organizações não governamentais, de sindicatos, de pesquisadores acadêmicos, de representantes comunitários. É interessante a PUC-SP, como a FGVSP a USP e outras instituições acadêmicas terem criados centros de estudos do Terceiro Setor. É significativo a pós-graduação em Economia da PUC ter criado um Laboratório de Economia Social. De certa forma, se trata da superação de uma separação acadêmica tradicional no Brasil, onde Economia e Administração tratavam de como maximizar lucros, enquanto o Serviço Social tratava de encontrar muletas para as vítimas do processo. Hoje quem estuda gestão social se preocupa com as novas formas participativas de elaboração do orçamento, com um imposto de renda negativo (renda-mínima), com novas formas de representação política e o novo potencial da comunicação. A gestão social está buscando novos espaços em termos políticos, econômicos e administrativos. Não é mais apenas um setor, é uma dimensão humana do próprio desenvolvimento, que envolve tanto o empresário como o pesquisador, ou o ativista do Movimento dos Sem Terra.
Os avanços não devem ser subestimados. Nos últimos anos, o Brasil tem dado passos impressionantes na expansão das políticas sociais. A América Latina, com o relatório A hora da igualdade publicado pela CEPAL, está entrando com força neste caminho de novos equilíbrios. As tendências recentes da gestão social nos obrigam a repensar formas de organização social, a redefinir a relação entre o político, o econômico, o social e o ambiental, a desenvolver pesquisas cruzando as diversas disciplinas, a escutar de forma sistemática os atores estatais, empresariais e comunitários. Trata-se hoje, realmente, de um universo em construção. O impacto convergente da urbanização, das novas tecnologias, da descentralização política e da ampliação das políticas sociais oferece por tanto perspectivas particularmente interessantes de reorganização da gestão da sociedade em geral.
-x-
[1]Versão atualizada do artigo originalmente publicado na coletânea Costos Sociales da las Reformas Neoliberales en América Latina, (org) Anita Kon, Catalina Banko, Dorothea Melcher, Maria Cristina Cacciamali, publicado por PUC-SP, FAPESP, USP e UCV. 2000.
*Extraído de Dowbor

Bibliografia
CepalLa hora de la Igualdad – CEPAL,  Santiago, mayo de 2010, 289 p. Documento síntese com 58 páginas em português:  http://bit.ly/bqwYAh  Documento completo em espanhol:  http://bit.ly/bA9yrl
Emerson KapazA importância do Pacto Político, Folha de são Paulo, 22 de dezembro de 1998
Frank McGillyCanada’s Public Social Services, Oxford University Press, Toronto 1998
Fundação Abrinq - boletim Prefeito Criança, São Paulo, vários números.
IPEA, Comunicado N. 75, Gastos com a Política Social: alavanca para o crescimento com distribuição de renda, Ipea, 3 de fevereiro de 2011, 16 p., disponível em http://bit.ly/e9rBGg
Ladislau Dowbor - A Reprodução Social - Vozes, Petrópolis 2003
Maria Marcela Petrantonio (org.) - Herramientas Locales para Generar Empleo y Ocupación, Mar del Plata, Mercociudades, 1998
Martin Wolf, Países ricos terão de jogar com as cartas na mesa, Gazeta Mercantil de 21 de setembro de 1998, p. A-16
Peter Spink e Roberta Clemente20 Experiências de Gestão Pública e Cidadania, FGV, São Paulo 1997
Pontual, Pedro, Desafios à construção da democracia participativa no Brasil – CIDADE, 2008, http://www.plataformademocratica.org/Publicacoes/Publicacao_7226_em_19_05_2011_15_40_03.pdf
 
IPEA, Comunicado N. 75, Gastos com a Política Social: alavanca para o cresscimento com distribuição de renda, Ipea, 3 de fevereiro de 2011, 16 p., disponível em http://bit.ly/e9rBGg
Pnud - Relatório sobre o Desenvolovimento Humano no Brasil – vários anos
Pólis - número especial, 50 experiências de gestão municipal

Sen, Amartya Desenvolvimento como liberdade, Cia. das Letras, São Paulo 1999
Unctad - Trade and Development Report 1997, Unctad, New York, Geneva 1997

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