quinta-feira, 11 de julho de 2013

República

Choque de vaidades e poderes

Celso Evaristo Silva*

A teoria da separação de poderes está ligada ao nome do escritor francês, barão Charles de Montesquieu (1689-1755), e está manifesta na sua obra O Espírito das leis, de 1748, um clássico do direito constitucional. No capítulo destinado ao estudo da constituição inglesa, a qual ele tem como paradigma de representação política, Montesquieu identifica as três espécies de poder: o legislativo, o executivo das coisas e o judiciário. Ao primeiro caberia a elaboração das leis; ao segundo, sua execução; e a parte de julgamento dos litígios e o cumprimento legal ficariam com o terceiro poder. A garantia da liberdade dos cidadãos (no caso dos ingleses, súditos) dependeria do funcionamento independente de cada um dos poderes em relação aos outros dois. Além do funcionamento autônomo dessas instâncias, no plano individual, uma pessoa não poderia atuar simultaneamente em mais de uma delas, sob pena de quebrar o princípio básico de que “o poder limita o poder”, ocasionando choque imediato de interesses.

Enquanto fato histórico observável, o modelo de Montesquieu nunca ocorreu na íntegra, pelo menos é no que a maioria dos tratadistas do direito público e da ciência política parece concordar. Condicionantes históricos, um certo relativismo de atuação, assimetrias de poder fazem com que as instâncias acabem por invadir a seara uma da outra, gerando atritos. Tal realidade faria da “separação dos poderes” algo mais parecido com o “tipo ideal” weberiano do que com uma construção científica da teoria do direito, como talvez desejassem os positivistas.

Apesar do grau inevitável de subjetivismo envolvendo a questão, a tentativa de se manter o equilíbrio entre os três poderes, através do diálogo, da negociação e do aperfeiçoamento institucional tem demonstrado ser de fundamental importância para a garantia do Estado de direito e da democracia.

Vivemos no Brasil um momento delicado no que se refere ao princípio de independência dos poderes. A aprovação pelos deputados da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), da Câmara, da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) elevou a temperatura política. A proposta trata de alteração na sistemática do controle de constitucionalidade de normas realizado por tribunais e pela Suprema Corte. Ministros do STF manifestaram de forma clara sua objeção à proposta.

Por outro lado, os presidentes da Câmara e do Senado anunciaram que vão recorrer ao STF para que o plenário julgue a liminar concedida pelo ministro Gilmar Mendes, ao PSB, a qual suspendeu a tramitação do projeto de lei que restringe o acesso ao fundo partidário aos novos partidos, bem como o tempo destinado à propaganda no radio e na televisão. O PSB entendeu ser casuísmo da bancada governista o projeto, em face das eleições de 2014. Alguns parlamentares sentem cheiro de retaliação por parte do ministro do Supremo. Seria a conta da PEC.

Ao suspender a tramitação de um projeto de lei na Câmara, o ministro Gilmar Mendes, em nome de uma eventual inconstitucionalidade, adotou procedimento inédito de questionar algo ainda não aprovado em plenário. Lideranças do legislativo acusam a Corte de intervir em questões internas; ao passo que o STF lembra a demora crônica do congresso em avaliar e votar questões importantes. Um lado acusa o outro de “ativismo judicial”, o outro rebate com o argumento de “imobilismo e casuísmo”congressista.

A sensação é que houve uma troca de posições. O legislativo começa a entrar na seara jurídica, sem estar preparado ou “vocacionado” para isso, enquanto o STF parece sofrer um processo acelerado de politização, ou, melhor qualificando, partidarização, desde o julgamento do chamado “processo do mensalão”, tão bem coberto pela a mídia (o quarto poder, inexistente no modelo de Montesquieu, mas determinante nos dias de hoje).

O parlamento, pela origem de representação dos diversos estratos sociais dos seus integrantes, tem por função debater mais aberta e apaixonadamente os temas políticos, lidar com o jogo de interesses e buscar acordos que possibilitem a governança do país, sem excluir nem deixar de reconhecer a importância de uma oposição atuante. Quanto à Corte Suprema, é dela esperado maior temperança, tecnicidade jurídica – principalmente no que tange à constitucionalidade do que lhe é apresentado – e discrição na sua maneira de atuar. A variável política estará sempre presente em qualquer instituição; seria ingenuidade imaginá-la ausente do STF, mas este fato não elide a necessidade de tratá-la com o máximo cuidado e maturidade coletiva.

Porém o que se tem visto ultimamente é a constância com que questões são transferidas do fórum legislativo para serem debatidas e aprovadas na arena do Supremo (não está o legislativo abrindo mão de sua soberania?); e, não menos recorrente, alguns ministros do Supremo virando verdadeiras celebridades globais, ao ponto de uma simples aparição em um restaurante, show ou qualquer evento público, no Rio ou em São Paulo, ser motivo para vibrante ovação por parte dos presentes. Ministros do Supremo dando longas entrevistas, sendo televisados passando pito em magistrados ou posando para capa de revista não contribuem para o cumprimento de sua missão.

A premissa também é válida para deputados mais preocupados em aparecer na mídia do que em trabalhar pela elevação da atividade política. É sempre bom lembrar aos representantes dos três poderes quem lhes outorgou o poder de representação: a soberania popular.

A quem interessa o desgaste dos três poderes? Essa pergunta não pode ser esquecida por ninguém. Em política, “A quem interessa...?” é a pergunta de onde se deve partir para analisar qualquer situação, pessoa, grupo social ou fato.

Sigmund Freud (1856-1939) tinha uma frase maravilhosa sobre o salto alto nosso de cada dia:

"Uma pessoa pode defender-se das críticas; contra o elogio, ela estará sempre indefesa".

Nossos homens públicos deveriam observá-la à risca.

*Sociólogo e Administrador

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