quinta-feira, 20 de junho de 2013

Gestão social

Políticas sociais e transformação da sociedade[1] - IV/V*
Ladislau Dowbor
O conceito microeconômico de produtividade só consegue provar a sua superioridade ao isolar a contabilidade de uma unidade produtiva do conjunto das externalidades, do impacto social gerado. A cada parque que fecha para abrigar um supermercado ou um estacionamento, temos maior lucro em termos empresariais, PIB mais elevado, e maior prejuízo em termos econômicos, pelos custos adicionais gerados para a sociedade, além da perda de qualidade de vida, que afinal é o objetivo mais amplo.
A opção liberal centrada no lucro imediato da unidade empresarial, não é apenas socialmente injusta: não faz sentido econômico. É natural que uma sociedade perplexa ante o ritmo das mudanças, assustada com o desemprego, angustiada com a violência, busque soluções simples. A grande simplificação ideológica do liberalismo representa neste sentido o extremismo ideológico simétrico do que foram as grandes simplificações da esquerda estatista. Com todo o peso das heranças extremas do século XX, temos de aprender a construir sistemas mais complexos, onde a palavra chave não é a opção, mas a articulação.
Em termos práticos, temos de aprender a construir uma sociedade economicamente viável, socialmente justa, e ambientalmente sustentável. E temos de fazê-lo articulando Estado e empresa no quadro de uma sociedade civil organizada. A palavra chave, uma vez mais, não é a opção entre um ou outro, é a articulação do conjunto.
Soluções individuais e soluções sociais
É interessante colocar a questão seguinte: por que razão, com décadas de discurso anti-estado, e com as grandes vitórias liberais, o Estado continuou aumentando? E aumentou na fase Thatcher na Inglaterra, na fase Reagan e Bush nos Estados Unidos, quando a redução do Estado estava no cerne dos discursos políticos?
A realidade é que o Estado aumentou porque aumentou a demanda por bens públicos. Ainda que seja muito óbvio, é necessário lembrar que a problemática social mudou radicalmente com a urbanização. Uma família no campo resolve os seus problemas individualmente, seja no caso do lixo, da água, da lenha, do transporte ou outro. Na cidade, a residência só é viável quando integrada na rede de energia elétrica, telefonia, água, esgoto, calçamento, redes de ruas e assim por diante. É por falta de solução adequada para um bem de consumo coletivo como o transporte, que o paulistano se desloca numa velocidade média de 14 quilômetros por hora, ainda que tenha de pagar por um possante carro. Uma cidade conseguir se paralisar por excesso de meios de transporte, quando as alternativas baratas e funcionais são amplamente conhecidas, revela a que ponto a nossa capacidade de planejamento e de gestão social ficou parada no tempo, enquanto surgiam desafios dramáticos que exigem soluções renovadas. E os bens públicos exigem forte presença do Estado. Ou iremos até o absurdo de colocar pedágios nas ruas? E porque não para pedestres?
A urbanização também mudou a forma de organização da solidariedade social. Na família ampla do mundo rural, as crianças e os idosos, ou um eventual deficiente, eram sustentados pela parte ativa da família. Assim a redistribuição necessária entre a fase em que o indivíduo é produtivo e as fases não ativas, se fazia através da solidariedade da família. Com a urbanização, a família tornou-se nuclear, rompendo o sistema. Com as novas tecnologias, os apartamentos e a atomização social, a própria família nuclear se desintegra. Nos Estados Unidos, menos de um quarto dos domicílios têm pai, mãe e filho, ou seja, uma família.
No caso brasileiro, o processo é dramático, pois nos urbanizamos em apenas três décadas, criamos cidades e sobretudo periferias sem infraestruturas, sem escolas, sem saneamento, sem segurança. Perdeu-se o pouco que havia de redes tradicionais, e ainda estão nas fraldas os sistemas modernos de solidariedade pública. Discutimos amplamente os possíveis defeitos do Estado de Bem-Estar, quando sequer chegamos a desenvolvê-lo.
Chegamos assim ao absurdo das doutas bobagens sobre se o princípio de ajuda pública aos vulneráveis da sociedade não constituiria por acaso um certo paternalismo — pecado mortal na visão de pessoas ricas — enquanto crianças inocentes morrem de fome e de causas ridículas, e a sociedade explode com desemprego, criminalidade, corrupção generalizada.
Outra tendência que muda o contexto resulta das novas tecnologias, que constituem, junto com a urbanização, os dois eixos fundamentais de transformação da gestão social. A tendência é nos dividirmos entre os que são a favor e contra as tecnologias. Primeiro, é útil indagar se alguém está pedindo a nossa opinião a respeito. Segundo, é essencial entender que a mudança tecnológica segmenta a sociedade em incluídos e excluídos. Não se trata portanto de negar a utilidade geral da tecnologia, mas de entender que, junto com o progresso tecnológico, temos de construir as redes de apoio para os excluídos na fase de transição. O fato de existirem robôs nas empresas automobilísticas, não significa que deixamos de ter quase 20 milhões de pessoas que ainda trabalham no campo, dezenas de milhões de trabalhadores sem carteira assinada, outros tantos em atividades precárias e informais, e um crescente contingente em atividades ilegais.
Podemos imaginar no futuro uma sociedade em rede, crianças com computadores no bolso, a redução da jornada de trabalho, a explosão do lazer e atividades culturais. E o que construímos no país realmente existente são as fortalezas isoladas nos condomínios, versão rica da barbárie.
Sonhos à parte, portanto, o desafio que temos pela frente, em termos de gestão social, é a construção de uma transição ordenada, minimamente viável em termos políticos, sociais e econômicos, para o admirável mundo novo que se delineia no horizonte. As pessoas frequentemente esquecem que a transição para a era industrial jogou milhões de pessoas no desemprego e no desespero, provocando a gigantescas migrações para os Estados Unidos e para o Brasil, entre outros. Repetir este drama em escala planetária, com bilhões de pessoas excluídas do processo de transformação, neste pequeno e exausto planeta, levaria a tragédias insustentáveis.
É fácil, sem dúvida, dizer que no futuro outros empregos virão substituir os que perdemos, e que outras formas de organização virão resolver os problemas. O que gostaríamos, naturalmente, é de sobreviver até lá. Articular o social, com realismo, flexibilidade e eficiência, e não mais com ideologias do século passado, tornou-se um imperativo central para as nossas sociedades.
Uma área à procura do seu paradigma organizacional
As áreas sociais adquiriram esta importância apenas nas últimas décadas. Ainda não se formou realmente uma cultura setorial. E a grande realidade, é que não sabemos como gerir estas novas áreas, pois os instrumentos de gestão correspondentes ainda estão engatinhando. Os paradigmas de gestão que herdamos — basta folhear qualquer revista de administração — têm todos sólidas raízes industriais. Só se fala em taylorismo, fordismo, toyotismo, just-in-time e assim por diante. Como é que se faz um parto just-in-time? Ou educação em cadeia de montagem? Um Cad-Cam cultural?
Seria relativamente simples considerarmos o social como sendo naturalmente da órbita do Estado. Aí, temos outros paradigmas, correspondentes à administração pública: Weber, a Prússia, as pirâmides de autoridade estatal. Há no entanto cada vez menos espaço para simplificações deste tipo. Como se atinge 200 milhões de habitantes a partir de uma cadeia de comando central? As áreas sociais são necessariamente capilares: a saúde deve atingir cada criança, cada família, em condições extremamente diferenciadas. A gestão centralizada de mega-sistemas deste porte é viável?
Em termos práticos, sabemos que quando se ultrapassa 5 ou 6 níveis hierárquicos, os dirigentes vivem na ilusão de que alguém lá em baixo da hierarquia executa efetivamente os seus desejos, enquanto na base se imagina que alguém está realmente no comando. A agilidade e flexibilidade que exigem situações sociais muito diferenciadas não podem mais depender de intermináveis hierarquias estatais que paralisam as decisões e esgotam os recursos. Na realidade, os paradigmas da gestão social ainda estão por ser definidos, ou construídos. É uma gigantesca área em termos econômicos, de primeira importância em termos políticos e sociais, mas com pontos de referência organizacionais ainda em elaboração.
O mundo do lucro já há tempos descobriu a nova mina de ouro que o social representa. Que pessoa recusará gastar todo o seu dinheiro, se se trata de salvar um filho? E que informação alternativa tem o paciente, se o médico lhe recomenda um tratamento? Hoje nos Estados Unidos um hospital está sendo processado porque pagava 100 dólares a qualquer médico que encaminhasse um paciente aos seus serviços. Paciente é mercadoria? A Nature mostra como dezenas de pesquisadores publicavam como cartas pessoais em revistas científicas opiniões favoráveis ao fumo: descobriu-se que receberam em média dez mil dólares das empresas de cigarros. Um cientista se defende, dizendo que esta é a sua opinião sincera, e porque não fazê-la render? Para regular a cultura, basta a cultura do dinheiro?
Empresas hoje fornecem software educacional para escolas, com publicidade já embutida, martelando a cabeça das crianças dentro da sala de aula. A televisão submete as nossas crianças (e nós) ao circo de quarta categoria que são os ratinhos de diversos tipos, explicando que está apenas seguindo as tendências do mercado, dando ao povo o que o povo gosta. Se o argumento é válido, porque um professor também não passar a ensinar o que os alunos gostam, sem preocupação com a verdade e o nível cultural? Na Índia hoje se encontram vilas com inúmeros jovens ostentando a cicatriz de um rim extraído: sólidas empresas de saúde de países desenvolvidos compram rins baratos no terceiro mundo para equipar cidadãos do primeiro. Aqui, os planos privados de saúde geridos por empresas financeiras de seguro estão transformando a saúde em pesadelo. Qual é o limite? Estamos falando de uma área cuja importância relativa no conjunto da reprodução social tende a se tornar central.
Em termos de recursos, é importante lembrar que o social, no Brasil, envolve, como ordem de grandeza, 25% do PIB do país. O Brasil não é um país que gasta pouco com o social. Como evitar que o apoio ao Nordeste se transforme em indústria da seca, o complemento alimentar nas escolas em indústria da merenda, a saúde na indústria da doença, a educação num tipo de indústria do diploma. A área social precisa, sem dúvida, de mais recursos. Mas precisa hoje, muito mais ainda, de uma reformulação político-administrativa.


continua...


[1] Versão atualizada do artigo originalmente publicado na coletânea Costos Sociales da las Reformas Neoliberales en América Latina, (org) Anita Kon, Catalina Banko, Dorothea Melcher, Maria Cristina Cacciamali, publicado por PUC-SP, FAPESP, USP e UCV. 2000.

*Extraído de Dowbor

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