Políticas sociais e transformação da sociedade[1] - IV/V*
Ladislau Dowbor
O
conceito microeconômico de produtividade só consegue provar a sua superioridade
ao isolar a contabilidade de uma unidade produtiva do conjunto das externalidades, do impacto social
gerado. A cada parque que fecha para abrigar um supermercado ou um
estacionamento, temos maior lucro em termos empresariais, PIB mais elevado, e
maior prejuízo em termos econômicos, pelos custos adicionais gerados para a
sociedade, além da perda de qualidade de vida, que afinal é o objetivo mais
amplo.
A
opção liberal centrada no lucro imediato da unidade empresarial, não é apenas
socialmente injusta: não faz sentido econômico. É natural que uma sociedade
perplexa ante o ritmo das mudanças, assustada com o desemprego, angustiada com
a violência, busque soluções simples. A grande simplificação ideológica do
liberalismo representa neste sentido o extremismo ideológico simétrico do que
foram as grandes simplificações da esquerda estatista. Com todo o peso das
heranças extremas do século XX, temos de aprender a construir sistemas mais
complexos, onde a palavra chave não é a opção, mas a articulação.
Em
termos práticos, temos de aprender a construir uma sociedade economicamente
viável, socialmente justa, e ambientalmente sustentável. E temos de fazê-lo
articulando Estado e empresa no quadro de uma sociedade civil organizada. A palavra
chave, uma vez mais, não é a opção entre um ou outro, é a articulação do
conjunto.
Soluções individuais e soluções
sociais
É
interessante colocar a questão seguinte: por que razão, com décadas de discurso
anti-estado, e com as grandes vitórias liberais, o Estado continuou aumentando?
E aumentou na fase Thatcher na Inglaterra, na fase Reagan e Bush nos Estados
Unidos, quando a redução do Estado estava no cerne dos discursos políticos?
A
realidade é que o Estado aumentou porque aumentou a demanda por bens públicos.
Ainda que seja muito óbvio, é necessário lembrar que a problemática social
mudou radicalmente com a urbanização. Uma família no campo resolve os seus
problemas individualmente, seja no caso do lixo, da água, da lenha, do
transporte ou outro. Na cidade, a residência só é viável quando integrada na
rede de energia elétrica, telefonia, água, esgoto, calçamento, redes de ruas e
assim por diante. É por falta de solução adequada para um bem de consumo
coletivo como o transporte, que o paulistano se desloca numa velocidade média
de 14 quilômetros por hora, ainda que tenha de pagar por um possante carro. Uma
cidade conseguir se paralisar por excesso de meios de transporte, quando as
alternativas baratas e funcionais são amplamente conhecidas, revela a que ponto
a nossa capacidade de planejamento e de gestão social ficou parada no tempo,
enquanto surgiam desafios dramáticos que exigem soluções renovadas. E os bens
públicos exigem forte presença do Estado. Ou iremos até o absurdo de colocar
pedágios nas ruas? E porque não para pedestres?
A
urbanização também mudou a forma de organização da solidariedade social. Na
família ampla do mundo rural, as crianças e os idosos, ou um eventual
deficiente, eram sustentados pela parte ativa da família. Assim a redistribuição
necessária entre a fase em que o indivíduo é produtivo e as fases não ativas,
se fazia através da solidariedade da família. Com a urbanização, a família
tornou-se nuclear, rompendo o sistema. Com as novas tecnologias, os apartamentos
e a atomização social, a própria família nuclear se desintegra. Nos Estados
Unidos, menos de um quarto dos domicílios têm pai, mãe e filho, ou seja, uma
família.
No
caso brasileiro, o processo é dramático, pois nos urbanizamos em apenas três
décadas, criamos cidades e sobretudo periferias sem infraestruturas, sem
escolas, sem saneamento, sem segurança. Perdeu-se o pouco que havia de redes
tradicionais, e ainda estão nas fraldas os sistemas modernos de solidariedade
pública. Discutimos amplamente os possíveis defeitos do Estado de Bem-Estar,
quando sequer chegamos a desenvolvê-lo.
Chegamos
assim ao absurdo das doutas bobagens sobre se o princípio de ajuda pública aos
vulneráveis da sociedade não constituiria por acaso um certo paternalismo —
pecado mortal na visão de pessoas ricas — enquanto crianças inocentes morrem de
fome e de causas ridículas, e a sociedade explode com desemprego, criminalidade,
corrupção generalizada.
Outra
tendência que muda o contexto resulta das novas tecnologias, que constituem,
junto com a urbanização, os dois eixos fundamentais de transformação da gestão
social. A tendência é nos dividirmos entre os que são a favor e contra as
tecnologias. Primeiro, é útil indagar se alguém está pedindo a nossa opinião a
respeito. Segundo, é essencial entender que a mudança tecnológica segmenta a
sociedade em incluídos e excluídos. Não se trata portanto de negar a utilidade
geral da tecnologia, mas de entender que, junto com o progresso tecnológico,
temos de construir as redes de apoio para os excluídos na fase de transição. O
fato de existirem robôs nas empresas automobilísticas, não significa que
deixamos de ter quase 20 milhões de pessoas que ainda trabalham no campo,
dezenas de milhões de trabalhadores sem carteira assinada, outros tantos em
atividades precárias e informais, e um crescente contingente em atividades
ilegais.
Podemos
imaginar no futuro uma sociedade em rede, crianças com computadores no bolso, a
redução da jornada de trabalho, a explosão do lazer e atividades culturais. E o
que construímos no país realmente existente são as fortalezas isoladas nos
condomínios, versão rica da barbárie.
Sonhos
à parte, portanto, o desafio que temos pela frente, em termos de gestão social,
é a construção de uma transição ordenada, minimamente viável em termos
políticos, sociais e econômicos, para o admirável mundo novo que se delineia no
horizonte. As pessoas frequentemente esquecem que a transição para a era
industrial jogou milhões de pessoas no desemprego e no desespero, provocando a
gigantescas migrações para os Estados Unidos e para o Brasil, entre outros.
Repetir este drama em escala planetária, com bilhões de pessoas excluídas do
processo de transformação, neste pequeno e exausto planeta, levaria a tragédias
insustentáveis.
É
fácil, sem dúvida, dizer que no futuro outros empregos virão substituir os que
perdemos, e que outras formas de organização virão resolver os problemas. O que
gostaríamos, naturalmente, é de sobreviver até lá. Articular o social, com
realismo, flexibilidade e eficiência, e não mais com ideologias do século
passado, tornou-se um imperativo central para as nossas sociedades.
Uma área à procura do seu paradigma
organizacional
As
áreas sociais adquiriram esta importância apenas nas últimas décadas. Ainda não
se formou realmente uma cultura setorial. E a grande realidade, é que não
sabemos como gerir estas novas áreas, pois os instrumentos de gestão
correspondentes ainda estão engatinhando. Os paradigmas de gestão que herdamos
— basta folhear qualquer revista de administração — têm todos sólidas raízes
industriais. Só se fala em taylorismo, fordismo, toyotismo, just-in-time e assim por diante.
Como é que se faz um parto just-in-time?
Ou educação em cadeia de montagem? Um Cad-Cam
cultural?
Seria
relativamente simples considerarmos o social como sendo naturalmente da órbita
do Estado. Aí, temos outros paradigmas, correspondentes à administração
pública: Weber, a Prússia, as pirâmides de autoridade estatal. Há no entanto
cada vez menos espaço para simplificações deste tipo. Como se atinge 200
milhões de habitantes a partir de uma cadeia de comando central? As áreas
sociais são necessariamente capilares: a saúde deve atingir cada criança, cada
família, em condições extremamente diferenciadas. A gestão centralizada de
mega-sistemas deste porte é viável?
Em termos
práticos, sabemos que quando se ultrapassa 5 ou 6 níveis hierárquicos, os
dirigentes vivem na ilusão de que alguém lá em baixo da hierarquia executa
efetivamente os seus desejos, enquanto na base se imagina que alguém está
realmente no comando. A agilidade e flexibilidade que exigem situações sociais
muito diferenciadas não podem mais depender de intermináveis hierarquias
estatais que paralisam as decisões e esgotam os recursos. Na realidade, os
paradigmas da gestão social ainda estão por ser definidos, ou construídos. É
uma gigantesca área em termos econômicos, de primeira importância em termos
políticos e sociais, mas com pontos de referência organizacionais ainda em
elaboração.
O
mundo do lucro já há tempos descobriu a nova mina de ouro que o social representa.
Que pessoa recusará gastar todo o seu dinheiro, se se trata de salvar um filho?
E que informação alternativa tem o paciente, se o médico lhe recomenda um
tratamento? Hoje nos Estados Unidos um hospital está sendo processado porque
pagava 100 dólares a qualquer médico que encaminhasse um paciente aos seus
serviços. Paciente é mercadoria? A Nature mostra
como dezenas de pesquisadores publicavam como cartas pessoais em revistas
científicas opiniões favoráveis ao fumo: descobriu-se que receberam em média
dez mil dólares das empresas de cigarros. Um cientista se defende, dizendo que
esta é a sua opinião sincera, e porque não fazê-la render? Para regular a
cultura, basta a cultura do dinheiro?
Empresas
hoje fornecem software educacional
para escolas, com publicidade já embutida, martelando a cabeça das crianças
dentro da sala de aula. A televisão submete as nossas crianças (e nós) ao circo
de quarta categoria que são os ratinhos de
diversos tipos, explicando que está apenas seguindo as tendências do mercado,
dando ao povo o que o povo gosta. Se o argumento é válido, porque um professor
também não passar a ensinar o que os alunos gostam, sem preocupação com a verdade
e o nível cultural? Na Índia hoje se encontram vilas com inúmeros jovens ostentando
a cicatriz de um rim extraído: sólidas empresas de saúde de países
desenvolvidos compram rins baratos no terceiro mundo para equipar cidadãos do
primeiro. Aqui, os planos privados de saúde geridos por empresas financeiras de
seguro estão transformando a saúde em pesadelo. Qual é o limite? Estamos
falando de uma área cuja importância relativa no conjunto da reprodução social
tende a se tornar central.
Em
termos de recursos, é importante lembrar que o social, no Brasil, envolve, como
ordem de grandeza, 25% do PIB do país. O Brasil não é um país que gasta pouco
com o social. Como evitar que o apoio ao Nordeste se transforme em indústria da
seca, o complemento alimentar nas escolas em indústria da merenda, a saúde na
indústria da doença, a educação num tipo de indústria do diploma. A área social
precisa, sem dúvida, de mais recursos. Mas precisa hoje, muito mais ainda, de
uma reformulação político-administrativa.
continua...
[1] Versão
atualizada do artigo originalmente publicado na coletânea Costos
Sociales da las Reformas Neoliberales en América Latina, (org) Anita
Kon, Catalina Banko, Dorothea Melcher, Maria Cristina Cacciamali, publicado por
PUC-SP, FAPESP, USP e UCV. 2000.
*Extraído de Dowbor
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