quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Vinícius de Moraes

Cem anos de poesia


Celso Evaristo Silva*




Entrevista de Vinicius de Moraes, concedida, em sonho meditativo, ao monge tibetano radicado em São Paulo, Rampar Singar






RS: Por que Vinicius?
Vinicius: O lançamento, em português, no ano do meu nascimento – 1913 – do ‘Quo Vadis’, do escritor polonês Henryk Sienkiewscz, cujos personagens protagonistas eram Vinicius e Lígia. O velho Clodoaldo, meu pai, mandou ver.

RS: Marcus Vinicius da Cruz de Melo Moraes. Nascido na . . . ?
Vinicius: Gávea, onde passei a primeira infância. Depois fui pra Ilha do Governador. Nasci na Gávea, mas sou botafoguense por causa do Garrincha, embora goste do Flamengo . . . no fundo, no fundo, sou Flamengo também.

RS: Você sempre múltiplo !? (risos)
Vinicius: É . . . O Stanislaw Ponte Preta, nosso querido cronista Sérgio Porto, ao conversar com um amigo comum, disse que estivera comigo em Niterói, dois ou três dias atrás, ao que o outro ponderou: “Mas conversei com ele em Paris, semana passada!” . “Meu caro”, disse o Sérgio, “Vinicius de Moraes é plural; se fosse um só, seria Viniciu de Moral.”

RS: No início, meio místico, meio cósmico . . .
Vinicius: Estudei língua e literatura inglesa em Oxford, o que foi muito importante na minha formação. Ao voltar ao Brasil, entrei, por concurso, para a carreira diplomática. Meus primeiros livros tinham preocupações místicas e transcendentais: “O Caminho para a distância”, “Forma e exegese” e “Ariana, a mulher”. Me achava um grande poeta – loucuras da mocidade. Depois veio a preocupação com as questões sociais e o tema central da sensualidade e do amor, no sentido mais cósmico e profundo do termo.

RS: Poetinha, você é um excelente poeta!
Vinicius: Certa vez, o maravilhoso poeta e escritor, e amigo, João Cabral de Melo Neto, disse que se juntássemos a disciplina dele com o meu lirismo, finalmente o Brasil teria um grande poeta.(risos). Eu já desistira dessa coisa de ser o maior ou o melhor. Ele com aquela enxaqueca . . . aquela exigência consigo mesmo. Sei lá; preferi ir tocando do meu jeito. Foi a minha recusa à poesia não vivida. Drummond chegou a dizer ser eu o único da turma a ter vivido como poeta. Exagero amigo.

RS: As mulheres, claro, sempre presentes.
Vinicius: Sempre. A mulher é a ligação mais profunda e direta com a vida. Nove casamentos e algumas aventuras, tudo vivido mui intensamente enquanto durava; porém, sem jamais decifrar o mistério do eterno morrer na cruz dos seus braços. É . . . as mulheres são muito estranhas . . . muito estranhas.

RS: E os parceiros musicais ? Fale um pouco deles.
Vinicius: A parceria é como um casamento sem sexo. Há ciúmes, brigas, curtições, muita amizade e cumplicidade. O Tom Jobim, eu conheci no bar/restaurante Villarino, que fica próximo à Academia Brasileira de Letras. Fomos apresentados porque eu precisava de um arranjador para a peça ‘Orfeu da Conceição’(adaptação do drama da mitologia grega ‘Orfeu e Eurídice’ à realidade de um morro carioca). Ele, numa pobreza franciscana danada, foi logo perguntando se rolaria um dinheirinho (risos). Daí por diante, a parceria rendeu os frutos conhecidos e a garota mais famosa do mundo.

Depois veio o Carlinhos Lyra, com quem fiz o musical “Pobre menina rica”.
Com Baden Powel, foram os afro-sambas. Passamos 15 dias trancafiados no meu apartamento compondo “Berimbau”, “Canto de Ossanha”, “Tristeza e solidão”, entre outros.

RS: Você teve outros parceiros.
Vinicius: Francis Hime, Edu Lobo, Chico Buarque, João Bosco e, claro, o Toco.

RS: Toquinho foi especial, correto?
Vinicius: Muito. Há quem atribua a ele o milagre da minha profissionalização enquanto artista – se é que isto realmente ocorreu. Compusemos muita coisa boa. Foi uma nova fase. Eu entrava com uma certa malandragem e experiência acumuladas; ele, com o vigor da juventude e o virtuosismo de violonista. Estouramos com “Tarde em Itapoã”, depois vieram outras músicas: “Regra três”, “Samba da volta”, “Na Tonga da Milonga”; “Como dizia o poeta”. Poxa, foram tantas!

RS: Vinicius, você conheceu e conviveu com muita gente. Você gostava de gente. Uma pessoa incrível, na sua opinião?
Vinicius: Alfredo da Rocha Viana Júnior, o Pixinguinha. Pra esse eu tiro o chapéu. Não sei de onde ele tirava tanta sabedoria e bondade. Fizemos sambas juntos: “Mundo melhor e “Lamento”. Fui algumas vezes até sua casa, no subúrbio de Ramos, pra ouvi-lo tocar piano e sax. Além de chorinho, ele adorava Bach: ‘Vinicius, em Bach, está tudo de música!’. Outra figura fantástica foi o Paulinho Soledade, meu parceiro em “Poema dos olhos da amada”, “São Francisco”. Companheiro de copo e longos papos esotéricos na banheira.

RS: Quais os tipos mais irritantes?
Vinicius: Detesto fascistas e gente fiteira, afetada; quem não paga pra ver. A vida é uma só, meu caro. Duas mesmo que é bom ninguém vai me provar muito bem provado a não ser com certidão passada em cartório do céu e assinado embaixo: Deus. Com firma reconhecida. A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida.

RS: Sua demissão do Itamaraty.
Vinicius: Foi em 1969, por ordem direta do então presidente Costa e Silva. No despacho vinha: “Ponha-se esse vagabundo para trabalhar!”. Chorei um dia inteiro, mas senti alívio depois.

RS: Uma música.
Vinicius: Ih, irmãozinho, foram tantas ! Nature boy’, de Éden Ahbez. Eu era do Itamaraty e fui designado vice-cônsul nos EUA, em Los Angeles, quando essa música nasceu, no final da década de 40. Marcou muito.

RS: Existiu alguma cobrança quando você largou a chamada ‘alta literatura’ pra se dedicar mais à música popular?
Vinicius: Sim, houve muita crítica. Sempre achei isso tudo uma grande bobagem. Veja o Pixinga, o Villa-Lobos. Eles transitavam do popular ao clássico sem nenhum drama de consciência. Uma forma alimentava a outra. A minha poesia não ficava mais fácil ou se descomplicava quando escrevia letras de música popular. Via essa cobrança como puro preconceito elitista de quem não conhece a fundo a riqueza da cultura popular. O Baden tocava qualquer suíte clássica para violão com destreza irretocável. Será que Andrés Segovia ou Tarrega, criadores do violão erudito, tocariam um samba como o Baden?

Eu tinha vergonha de cantar até João Gilberto me dizer: “Vina, todos têm o direito de cantar!”. Eu nunca mais esqueci essa frase dita por ninguém menos do que o João.

RS: Bom de poesia, copo e . . . polêmicas. (risos)
Vinicius: Nem tantas. As principais foram em São Paulo e Belo Horizonte. Estava numa boate em São Paulo, tentando, em vão, ouvir a voz e o piano do Johnny Alf, mas a turma estava mais interessada em fofoca e negócios do que em música. Aí eu me irritei e gritei pro Johnny pra ele parar de tocar porque o pessoal não dava bola pro seu talento, pois São Paulo era o túmulo do samba.

RS: E em Minas?
Vinicius: Eu chegara pro show, direto da casa de um amigo lá de Minas cuja amizade era tensa e meio competitiva. Lá pelas tantas, saiu a pérola: “Eu quero que a tradicional família mineira vá pra P#*@+!”. Quase apanhei (risos). O diplomata passou a ser o Toquinho (risos). Teve também uma rusga com um americano palpiteiro. Ele questionou meu verso “é melhor viver do que ser feliz”. Segundo ele, o certo seria: “é melhor viver e ser feliz”. O cara não entendeu nada.

RS: Poeta, quando ela chegou, foi mesmo a sua mais nova namorada?
Vinicius: Eu e o Carlinhos Lyra tomávamos chope no Barbas’s (bar do Nelsinho, filho de Nélson Rodrigues), quando fomos abordados por uma jovem jornalista, foquinha, que disparou em minha direção: “Vinicius, você tem medo da morte?” Eu, que já estava nos acréscimos, respondi, com serenidade, que o que tinha era saudades da vida. O querido Rubem Braga fez uma crônica linda sobre minha partida.

RS: Pra finalizar. Você começou místico, virou materialista e (Saravá, meu pai!) terminou compondo músicas para crianças. Por curiosidade, o que vem depois da . . .
Vinicius: Isto é um sonho, esqueceu?

E depois disso, ao mestre Rampa Singar, nada mais digo.

*Administrador e sociólogo

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