quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Tempos difíceis

A burrice no poder*

Ladislau Dowbor**


“The most intellectual creature ever to walk the earth,
is destroying its only home.” – Jane Goodall


A burrice no poder tende não só a se perpetuar, como nela se afundar. O acúmulo de bobagens ou de tragédias, a partir de um certo ponto, exigiria tamanha confissão de incompetência, que os donos de poder continuam até a ruptura total. Reconhecer a burrice torna-se demasiado penoso. Barbara Tuchman nos dá uma análise preciosa dos mecanismos, no que ela chama de Marcha da Insensatez: “Uma vez que uma política foi adotada e implementada, toda atividade subsequente se transforma num esforço para justificá-la.” Isso levou, por exemplo, cinco presidentes americanos sucessivos a se afundarem na guerra do Vietnã, apesar da convicção íntima, hoje conhecida e documentada, de que era uma causa perdida. A burrice política obedece a uma impressionante força de inércia. (263)

Qualquer semelhança com o golpismo no Brasil insistir numa política que empurra o país para trás, mesmo depois de quatro anos de desastre, não é evidentemente uma coincidência, é a regra. No túnel da burrice, os que a perpetram sempre imaginam que logo adiante surgirá a proverbial luzinha. Se a política sacrifica em vez de ajudar, dirão que o sacrifício não foi suficiente, é só aprofundar um pouco mais. Com gigantesco esforço de mídia, de fake-news e de dinheiro, elegeu-se um presidente cujo rumo é simplesmente acelerar a Marcha. Com Deus e a Família rumo ao absurdo. Apontar os absurdos não é negativo: corrigir os erros óbvios pode ser mais factível do que buscar distantes utopias.

A burrice da austeridade

A austeridade, para quem não tenha notado, não funciona. Como diz Stiglitz, nunca funcionou. Por uma razão simples: o capitalismo, para se expandir, precisa de produtores, mas também de consumidores. No centro do raciocínio, está a ilusão de que não temos recursos suficientes para incluir os pobres. As políticas sociais e um salário mínimo decente não caberiam na economia, no orçamento, ou na Constituição, segundo os políticos. Façam um cálculo simples: o Brasil produz 6,3 trilhões de reais de bens e serviços, o montante do nosso PIB. Isso dividido por 208 milhões de habitantes nos dá um per capita de 30 mil reais ao ano, ou seja, 10 mil reais por mês por família de 4 pessoas. Isso está longe das ambições de consumo da nossa classe média alta, mas assegura, para o comum dos mortais, o suficiente para uma vida digna e confortável. Nosso problema não é falta de recursos, e sim a burrice na sua distribuição. Na fase do lulismo, a economia cresceu, sendo que a renda dos mais pobres e das regiões mais pobres cresceu mais do que a renda dos mais ricos: todos ganharam, os pobres de maneira mais acelerada, reduzindo a desigualdade. A ascensão dos pobres gerou nos ricos a reação esperada: a mesma que tiveram com Getúlio e com Jango, agora repetida com Dilma e com Lula. Reconhecer que funciona o que sempre denunciaram seria penoso demais. A burrice é muito teimosa. Portugal tem uma experiência simpática: mandou a austeridade às favas, e está indo de vento em popa. Com uma lei absurda de teto de gastos, nós institucionalizamos o aprofundamento da desigualdade. Já se notou que a austeridade recomendada é a dos pobres que têm pouco, e não a dos ricos que têm muito e ainda esbanjam?

A burrice do golpe

O Banco Mundial qualificou os anos 2003 a 2013 de The Golden Decade¸ a década dourada da economia brasileira. É preciso ser muito ideologicamente cego para ignorar o imenso avanço que representaram a queda do desemprego de 12% em 2002 para 4,8% em 2013, a abertura de 18 milhões de empregos formais, a retirada de 38 milhões de pessoas da pobreza, a redução do desmatamento da Amazônia de 28 para 4 mil quilómetros quadrados, o acesso à luz elétrica para 15 milhões de pessoas e assim por diante. Um processo firme dez anos seguidos é caminho, não é oportunismo nem voo de galinha. Mesmo porque, para o Brasil, os 150 milhões que precisam melhorar o seu consumo individual e coletivo constituem uma imensa oportunidade de dinamização econômica, um horizonte de expansão. O mercado externo, lembremos, representa apenas 10% da nossa economia.

A opacidade mental dificulta naturalmente a aceitação dos números por quem quer se convencer do contrário. Então se gera uma forma sofisticada de bobagem, chamada hoje de “narrativa”, tentando convencer as pessoas que fazer política para o povo é populismo, que o populismo quebrou as contas do Estado e que o caminho certo é o da boa dona de casa que só gasta o que tem. Portanto, “a dona de casa” Dilma tem de ir para casa. Mas os números são simples e derrubam essa narrativa: o que gerou o déficit não foram as políticas econômicas e sociais do governo, e sim os juros escorchantes sobre a dívida pública e a dívida privada, a chamada financeirização. Já pararam para pensar o que significa o Brasil ter, em 2018, 64 milhões de adultos endividados até o ponto de não poderem mais pagar suas dívidas? São adultos, acrescentem as famílias, estamos falando da massa da população.

Quando a Dilma tenta, entre 2012 e 2013, reduzir as taxas de juros, começa a guerra política, com manifestações, boicote e denúncias. A partir de meados de 2013 não há mais governo. A Dilma ainda ganha a eleição de 2014, mas como foi anunciado pelos adversários, não governaria. A burrice atinge o seu ápice quando se cortam as políticas sociais com a lei do teto de gastos, mas se mantêm as taxas de juros. Os bancos agradeceram, a classe rentista também. Jogaram a economia na recessão, mas alguém tinha de levar a culpa, e buscar um bode expiatório tem sólidas tradições.

Em termos políticos, tiraram Dilma sem crime, prenderam Lula sem comprovação de culpa, elegeram um presidente absurdo por meio da prisão de quem ia ganhar a eleição, e quem prendeu Lula ganhou o posto de ministro. Sim, de 2014 para cá, são muitos anos que estão “consertando” a economia, que continua parada. O presidente eleito vai reduzir ainda mais os rendimentos da massa da população. Só para lembrar, o Bolsa Família são 30 bilhões de reais ao ano, que geram demanda e dinamizam a economia. Só os juros sobre a dívida pública, na faixa de 320 bilhões de reais, representam dez vezes mais, alimentando rentistas. E como as finanças deformadas quebraram a economia, o déficit aumentou. É um círculo vicioso. E quanto mais travam a economia, mas explicam que o sacrifício ainda é insuficiente.

No entanto, persiste a narrativa simplória: a Dilma quebrou a economia. É uma farsa. O déficit nas fases Lula e Dilma nunca foi significativo, mesmo incluídos os juros sobre a dívida pública. Para a maioria das pessoas, em particular quando não entendem os processos, política se resume a eleger o culpado. O sistema financeiro travou a economia, mas vendeu ao povo uma culpada, aliás mulher e teimosa, vítima ideal. O poder dos bancos funciona hoje apenas para os banqueiros e para os rentistas. Na linha de uma charge americana, podemos dizer que o nosso problema é que uma minoria que ganha 500 mil por mês conseguiu convencer os grupos que ganham 50 mil por mês de que o problema do país são as pessoas que ganham mil reais por mês. Acredite quem quiser.

Os arrependidos da quebra da legalidade hoje são qualificados de viúvas do golpe. Abriram as portas para o absurdo total que hoje vivemos, prolongamento da burrice econômica por meio da burrice política. A base evidente e o elementar bom senso indicam que o que funciona é a representatividade do poder, na linha do artigo 1º da nossa Constituição: “Todo poder emana do povo”. Neste sentido fundamental, o de representar o povo, o novo governo eleito não é legítimo. Foi eleito porque o candidato legítimo e que ia ganhar foi preso, porque a mídia comercial criou um fanatismo antipetista, porque recorreram a uma escala industrial de fakenews, e porque uma facada criminosa lhe conferiu uma aura de vítima e lhe evitou o vexame de submeter as suas visões a debate.

Não se trata de “reconhecer” ou não o candidato eleito, mas sim de reconhecer que sua representatividade é pífia, e que pensar em desenvolver um país moderno sobre a base de um poder de extrema-direita não faz nenhum sentido. Para se sustentar, precisará se submeter ao grande vizinho do Norte, abrir ainda mais as portas aos interesses predatórios nacionais e internacionais, e mobilizar em permanência o ódio contra o que apresentará como “os inimigos”, desde já escolhidos como futuros culpados do não funcionamento do seu governo. A perseguição e a violência tendem a ser um caminho natural para a insensatez. A incompetência está sempre à procura de bodes expiatórios.

A burrice do rentismo

O lucro sobre investimento é legítimo: gera empregos, produtos, e paga impostos. O lucro sobre aplicações financeiras constitui dividendos, assegura grandes retornos para quem não produz nada. Os banqueiros chamam os diversos papéis que rendem dividendos de “produtos”, o que constitui um disfarce simpático. Dinheiro ganho com aplicações financeiras não coloca um par de sapatos no mercado de bens realmente existentes. Diferenciar investimento produtivo e aplicação financeira é básico.

O manual britânico sobre o funcionamento da moeda explica o efeito bola de neve, financial snow-ball effect: papéis financeiros renderam nas últimas décadas entre 7% e 9% ao ano. Só para lembrar, a produção efetiva de bens e serviços aumenta no mundo num ritmo incomparavelmente menor, da ordem de 2% a 2,5%. Os afortunados, logicamente, irão optar pelas aplicações financeiras. Por exemplo, um bilionário que aplica o seu dinheiro a modestos 5% ao ano ganha 137 mil dólares ao dia, sem precisar produzir nada. A cada dia a maior parte deste dinheiro é reaplicada, gerando um enriquecimento improdutivo que gradualmente multiplica bilionários e trava a economia. É o capitalismo dando o tiro no próprio pé, ao perder a sua principal justificativa, a produtividade. De crise em crise, no cassino financeiro mundial, vimos o 1% dos mais ricos do planeta se apropriar de mais riqueza do que os 99% seguintes. No curto e médio prazo, funciona muito para o 1%. Como institucionalização da remuneração dos improdutivos muito superior à dos que produzem, não funciona para o conjunto. É sistemicamente disfuncional.

A economia de mercado supunha trocas entre produtores e consumidores, com geração de emprego e renda. Hoje os “mercados”, grupo limitado de especuladores, apresentam um surto de otimismo a cada redução dos direitos da população. É a lógica da insensatez. Não é preciso ir muito longe para aprender algo de positivo: a China controla o seu sistema financeiro para que seja utilizado produtivamente, os alemães usam a rede de caixas de poupança locais (sparrkassen) assegurando que o dinheiro seja investido no que a comunidade necessita. Sabemos o que funciona: é quando o dinheiro é investido produtivamente.

Um exemplo prático ajuda: há alguns anos a Coréia do Sul desbloqueou recursos públicos pesados para financiar sistemas de transporte público não poluente. O investimento gerou evidentemente um conjunto de atividades de pesquisa e de produção, e portanto emprego. Como utilizar transporte coletivo é muito mais barato do que cada pessoa pegar o seu carro, foram geradas economias que mais que cobrem o investimento. Como investiram em transporte menos poluente, melhoraram as emissões tanto pela tecnologia desenvolvida como pela redução do uso de automóveis. Menos poluição nas cidades significa menos doenças de diversos tipos, e economias na área da saúde. A redução do tempo perdido nos engarrafamentos permite menor desgaste da população, mais tempo com lazer, melhor produtividade no trabalho. O exemplo tende a ilustrar apenas o óbvio, os recursos têm de ser investidos em projetos e programas que geram efeitos multiplicadores em termos de dinamização econômica, de proteção do meio ambiente e de melhoria do bem-estar das famílias. Tanta inteligência que se gasta para encontrar a aplicação financeira que mais rende, poderia ser utilizada para elaborar os projetos mais úteis. E enriquecer a sociedade.

O fluxo financeiro integrado

Como isso funciona no Brasil? As contas não são difíceis de explicar. A economia funciona quando se coloca o dinheiro onde vai ter efeitos multiplicadores. Se eu compro uma máquina, aumento a minha produtividade e consequentemente os meus lucros em nível superior à taxa de juros que me cobram, posso pegar outro empréstimo e ir aumentando a produção, gerando emprego e renda. Mas se o custo do crédito, a taxa de juros cobrada, é superior aos rendimentos que a máquina me permite obter, eu me verei enforcado em dívidas sobre dívidas, terminando por trabalhar para pagar o banco. Como escreve Zygmunt Bauman, os banqueiros detestam o bom pagador. Essa deformação fundamental, dos principais agentes econômicos no Brasil – as famílias, as empresas e o Estado – se verem enforcados com o sistema financeiro, é que está na raiz da nossa recessão econômica e do caos político que vivemos. E ainda nos convencem que a solução está em colocar mais banqueiros na direção da política.

Faça as contas. No Brasil as famílias e as empresas pagam anualmente, só em juros, portanto sem reduzir a dívida, 1 trilhão de reais. Como o nosso PIB é de 6,3 trilhões, estamos aqui falando em 16% do PIB. Este montante surrealista se deve simplesmente às taxas de juros praticadas, que constituem agiotagem. Em fevereiro de 2018, por exemplo, os juros bancários para pessoa física estavam na faixa de 137% ao ano, quando na França são inferiores a 5%, também, evidentemente, ao ano. Assim o sistema financeiro drenou a capacidade de compra das famílias e a capacidade de investimento das empresas.

O dinheiro dos nossos depósitos e o fluxo de juros que os bancos extorquem das famílias e das empresas são em grande parte aplicados em títulos da dívida pública. O governo pagou aos bancos e aos ricos que têm aplicações deste tipo 341 bilhões de reais em 2017, cerca de 6% do PIB. Muitos países têm dívidas públicas maiores que as nossas, proporcionalmente ao PIB, mas nenhum paga juros tão elevados. Para o governo pagar esses 341 bilhões (apenas juros, sem reduzir a dívida) aos aplicadores financeiros, ele precisa cobrar os impostos correspondentes. Assim, os nossos impostos, em vez de financiarem políticas sociais e infraestruturas, vão parar nos bolsos dos especuladores financeiros, de gente que não produz nada, pelo contrário, desviam os recursos dos seus usos produtivos.

A conta não é complicada. Somando os 16% que tiram das famílias e das empresas, e os 6% que tiram dos nossos impostos, vamos a 22% do PIB. Mas isso é agravado pelo sistema tributário. Enquanto na Europa se corrige em boa parte a deformação taxando o capital financeiro, as grandes fortunas, as heranças, e as rendas mais elevadas, no Brasil os ricos pagam proporcionalmente menos que os pobres, e desde 1995 os lucros e dividendos distribuídos são isentos de impostos. E tem mais. A evasão fiscal é calculada no Brasil em 570 bilhões de reais por ano, o que representa 9% do PIB. Quem evade, naturalmente, é o rico, o banco, a corporação: o assalariado tem o seu imposto descontado na folha. Boa parte da evasão é assessorada por bancos, que têm para isso departamentos que qualificam de “otimização fiscal”. Os nomes utilizados nas finanças são muito bons, como justamente chamar aplicação financeira de investimento.

Tem mais, naturalmente. Boa parte da evasão se dá por meio de paraísos fiscais, com grandes empresas de gestão discreta de fortunas que se situam em países onde não há controle, por exemplo no Panamá, ou nas Ilhas Cayman, ou ainda no Estado de Delaware nos Estados Unidos, sem falar evidentemente da Suíça que, como escreveu Jean Ziegler, “lava mais branco”. Não se trata de roupa, evidentemente. O fato é que o estoque de recursos financeiros improdutivos nos paraísos fiscais é estimado em 20 trilhões de dólares pelo Economist, equivalente a quase um terço do PIB mundial. O Brasil participa com 520 bilhões de dólares (dados de 2012), o que representa cerca de 2 trilhões de reais, equivalente a cerca de um terço do nosso PIB. Não só não investem, como sequer pagam impostos.

Vimos aqui os imensos drenos que sangram a nossa economia, que vaza por todo lado. E há evidentemente uma série de drenos menores, como o sistema de pensão complementar (ativos da ordem de 1 trilhão que poderiam ser investidos e fomentar a economia em vez de alimentarem o sistema financeiro), bem como as seguradoras, com ativos também da ordem de 1 trilhão, e também ‘aplicados’ e não investidos, além do rentismo mais disfarçado dos planos de saúde, das telefônicas e outros drenos.

A nossa Constituição é clara: “O sistema financeiro nacional [será] estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade.” Hoje, o SFN (Sistema Financeiro Nacional) serve essencialmente para alimentar improdutivos, sejam eles banqueiros, grupos nacionais ou internacionais, e em particular a classe média alta que com tanto entusiasmo ocupa a avenida Paulista. A realidade é que os bancos criaram um sistema em que os nossos impostos são desviados em grande parte para os seus cofres e para os rentistas que participam da festa, essencialmente os mais afortunados. Os banqueiros manejam o Estado, drenam os seus recursos, e explicam que a culpa é do Estado, dos impostos elevados, e dos “gastos” com os mais pobres.

O absurdo de tudo isso? É que seria incomparavelmente mais produtivo para todos, inclusive para os bancos, fomentarem a economia em vez de drená-la. A China tem esse ritmo de desenvolvimento porque canaliza os recursos financeiros “de forma a promover o desenvolvimento”. No nosso caso, trata-se de visões de curto prazo, mesquinhas, satisfazendo quem olha a sua conta bancária ou seu dinheiro no exterior engordar, e esquece que gerar o caos e travar o desenvolvimento não resolve o futuro de ninguém.

O absurdo da desigualdade

Manter a desigualdade é particularmente absurdo, mas está no centro das propostas do poder. Afinal, os ricos que nos regem defendem os seus próprios interesses, e é raríssimo ter alguém no poder que não seja rico, branco, homem, e centrado em aumentar as suas próprias vantagens. A questão, evidentemente, é que a partir de um certo nível de desigualdade e de repartição do acesso aos bens e serviços produzidos pela sociedade divorciada dos aportes, e portanto do merecimento, o sistema se torna disfuncional, inclusive para os donos do poder. Jogaram a economia na recessão, no desemprego, e no caos político.

Mas funciona pelo menos para os ricos? Criar as suas famílias em absurdos condomínios cercados e eletrificados, ou em mansões em que precisam conviver com equipes de segurança, dotando-se de veículos blindados, escondendo as suas fortunas em paraísos fiscais, administrando esquemas de evasão fiscal, buscando relaxamento em viagens aos países desenvolvidos – enfim a civilização – tudo isso tem pouco a ver com uma sociedade onde se respira livremente. Inúmeros estudos comparados internacionais sobre a percepção de qualidade de vida apontam para uma radical melhoria quando um pobre tem acesso a uma renda mais decente, mas quase nenhuma melhoria quando um milionário avança para mais milhões. Este sistema nem para eles funciona. Se é para aumentar a felicidade geral da nação, a tal da Felicidade Interna Bruta (FIB), não há dúvida que uma política de inclusão funciona melhor para todos. Quanto mais na base chega o dinheiro na pirâmide social, maior é o multiplicador de felicidade, e também do dinamismo econômico. A redução da desigualdade é fundamental em termos éticos, políticos e econômicos.

Em termos de ética, fica difícil encontrar palavras suficientemente fortes. Em nenhuma sociedade civilizada pode uma pessoa ficar sem atendimento médico ou acesso a um medicamento, uma criança ou um adulto ficarem sem poder comer, famílias viverem desabrigadas, ou ainda passarem anos em campos de refugiados. Morrem de fome ou de falta de acesso à água segura cerca de 6 milhões de crianças por ano, 850 milhões pessoas passam fome no mundo, quando produzimos, só de grãos, mais de um quilo por pessoa por dia, quando desperdiçamos um terço dos alimentos produzidos por mal manejo. Todos esses ricaços irresponsáveis que esbanjam os seus recursos com consumo espalhafatoso ou especulação financeira, em vez de ajudar na implementação de políticas que funcionam para o conjunto da sociedade, todas essas corporações que geram tragédias sociais e ambientais, navegam em valores de primatas, na ética de que o sucesso consiste em arrancar o pedaço maior, que se dane o sofrimento, que se dane o planeta. Aqui temos inteligência impressionante para gerar novos meios, mas uma burrice impressionante em termos de definir os fins. Vamos construir mais muros, abrir mais condomínios, mais casulos de riqueza, sistemas de repressão mais violentos?

Essa desigualdade é evidentemente disfuncional também em termos sociais e políticos. A partir de um determinado nível de desigualdade, não há solidariedade social nem convívio democrático que sobrevivam. A violência se torna latente em todas as esferas. Nos Estados Unidos as pessoas compram mais armas, no Brasil o exército invade favelas, nas Filipinas se fuzila à vontade, a Europa não sabe mais o que fazer para se proteger da maré de miseráveis que fogem das colônias que a Europa tanto explorou e desarticulou. Não estamos aqui sugerindo perfeita igualdade, mas sim uma situação menos obscena, em que cada pessoa possa valer pelo que vale como pessoa, e ter as suas oportunidades de crescer. A realidade é muito simples: pessoas reduzidas ao desespero reagem de maneira desesperada, há limites no bom senso de milhões de pessoas que encontram todas as portas fechadas. Temos os recursos, temos as tecnologias, sabemos como fazer, e custa muito pouco. É exagero falar de ignorância?

E a desigualdade constitui em particular uma burrice no plano econômico. Porque funcionaram o New Deal de Roosevelt, o Welfare State dos países hoje desenvolvidos, o milagre da Coréia do Sul, o impressionante ritmo de desenvolvimento da China, a “década dourada” do Brasil? Todos tiveram em comum a expansão da capacidade de compra da base da população, e o acesso a políticas sociais públicas e universais, que permitiram ampliar a escala de produção e o emprego. O que a empresa mais quer é ter mercado.

Os mecanismos econômicos são conhecidos já há quase um século, a partir de Kalecki e de Keynes. Investir no bem-estar das populações gera demanda, o que por sua vez amplia a produção, e assegura mais empregos, o que aumenta mais ainda a demanda. O consumo das famílias e a produção empresarial geram por sua vez impostos que aumentam as receitas do Estado, fechando a conta. Isso permite o financiamento das políticas sociais: uma população com mais saúde e educação é mais produtiva. Aqui não são necessários ideologias e ódios, e sim um simples olhar para o que funciona. E o que funciona é quando a economia é orientada segundo as prioridades e o bem-estar das famílias. A desigualdade, em termos econômicos, apenas mantém uma atividade de base estreita e de baixa produtividade.

Manter e reproduzir a desigualdade, quando desarticula as nossas sociedades acumulando absurdos éticos, políticos e econômicos, francamente, é espantoso. Aprofundá-la é patológico. Todos os exemplos positivos que temos, do Canadá à Coreia do Sul, passando pela Alemanha e os países nórdicos, e evidentemente a China, se basearam em expandir o mercado interno e as políticas sociais, em de vez de privilegiar minorias.

Estado, empresa e sociedade civil organizada

No centro dos desafios está a necessidade de termos instituições que permitam que se implementem políticas que façam sentido. O embate sobre a política tem se resumido basicamente à guerra entre os que querem estatizar e os que querem privatizar. A realidade é que somos hoje sociedades demasiado complexas para soluções ideológicas simplificadoras deste tipo. Onde funcionam, as políticas se apoiam numa articulação razoavelmente equilibrada de Estado, empresas e organizações da sociedade civil. As corporações sem controle do interesse público viram máfia, o Estado sem controle público vira ditadura, o interesse público sem organizações da sociedade civil para enfrentar de maneira articulada os desmandos é simplesmente desconsiderado.

E não é complicado. O objetivo é o desenvolvimento sustentável, equilibrando os interesses econômicos, sociais e ambientais. Hoje os 17 objetivos e 169 metas da Agenda 2030 descrevem de maneira clara os rumos: assegurar uma vida decente para todos, sem prejudicar as gerações futuras. Sabemos o que funciona: é o ciclo econômico completo centrado no bem-estar das famílias. O bem-estar das famílias, objetivo último do desenvolvimento econômico e social, depende sem dúvida da renda auferida, que permite fazer as compras, pagar as contas. Assegurar um razoável fluxo de renda para a massa dos consumidores é o que por sua vez vai gerar o mercado para o desenvolvimento das atividades produtivas. Tanto o consumo direto (out-of-pocket dizem os americanos) como a atividade empresarial geram receitas para o Estado.

Este, por sua vez, poderá utilizar os recursos para o chamado salário indireto, o que assegura o consumo coletivo de serviços como saúde, educação, cultura, segurança, o rio limpo, os parques na cidade, infraestruturas de energia e transporte e semelhantes. O acesso ao consumo coletivo é fundamental, pois sai muito mais barato e se torna muito mais eficiente ter um serviço público gratuito universal de saúde como no Canadá, do que o sistema privatizado norte-americano. Os números são clamorosos: o americano gasta 9.400 dólares por ano com doenças; o canadense 3.400 dólares por ano com saúde, com resultados incomparavelmente superiores. O sistema público, gratuito e universal de acesso aos bens coletivos é simplesmente mais eficiente. É ridículo no Brasil se chamar os investimentos públicos de “gastos”, quando se trata da forma mais eficiente de assegurar o acesso a bens de consumo coletivo essenciais. Curiosamente, os bancos chamam os diversos papéis que nos empurram de “produtos”.

A burrice aqui consiste em se desenvolver uma guerra ideológica pro- ou anti-Estado, quando é natural que bens de consumo individual estejam no âmbito empresarial, políticas sociais e infraestruturas no âmbito do Estado, e o ajuste das políticas tanto empresariais como públicas seja assegurado de forma articulada com organizações da sociedade civil. Nada como olhar o que funciona, e de que maneira, pelo planeta afora, e se inspirar. O melhor antídoto à burrice é a aprendizagem, rende muito mais do que bater panelas.

A sociedade desinformada

Dizia Jung que pensar é trabalhoso, então as pessoas preferem ter opiniões. Você pode ter direito às suas opiniões, mas não aos seus fatos. O espantoso é termos uma sociedade tão desinformada numa época em que estamos cercados de meios de comunicação, na sala, na rua, no consultório médico, no próprio bolso. Em boa parte, essa desinformação se deve ao fato de que entre os fatos que chegam à cabeça e as opiniões que mobilizam o nosso fígado, preferimos claramente tranquilizar o fígado: vamos selecionar os fatos, ou deformá-los, para justificar o que queremos acreditar. Os demagogos do mundo há tempos aprenderam que mobilizar as pessoas pelo ódio rende muito mais do que tentar explicar-lhes a realidade. Encontrar um culpado que possamos odiar juntos gera uma catarse popular poderosa, uma imensa excitação de sermos uma patota solidária na mobilização punitiva: os judeus na Alemanha de Hitler, os palestinos no Israel de hoje, os mexicanos nos Estados Unidos (já que não temos mais os soviéticos nem Saddam Hussein), os imigrantes na Europa. No Brasil até reinventaram o comunismo para poder justificar o ódio ao Lula e aos pobres em geral.

Kurt Andersen escreve que os Estados Unidos sofreram uma mutação que os tornou uma ilha da fantasia, Fantasyland: “No bilhão de sites da internet, pessoas que acreditam em tudo e qualquer coisa podem encontrar milhares de companheiros de fantasia que compartilham as suas crenças, com colagens de fatos e com “fatos” para confirmá-las. Antes da internet, os de cabeça confusa (crackpots) ficavam essencialmente isolados e seguramente tinham mais dificuldade para continuar convencidos das suas realidades alternativas. Hoje as suas devotamente seguidas opiniões estão no ar e na Web, da mesma maneira como notícias efetivas. Agora todas as fantasias parecem verdadeiras.”

Demagogos políticos com os seus discursos de ódio ou de grandiosidade, corporações que nos convencem que somos mais importantes ao pagar 1200 reais por uma caneta Montblanc que escreve, Think Tanks que se multiplicaram como cogumelos – desde os gigantes financiados pela família Koch até o nosso Milenium tão brasileiro – gigantes do carvão e do petróleo que financiam campanhas mundiais para dizer que a mudança climática é uma invenção acadêmica, tudo isso aponta não só para o fato que somos muito frágeis em termos de usar a nossa razão, mas que temos uma gigantesca indústria planetária que disso se aproveita. O cérebro passa a existir para inventar razões para acreditar no que não tem nenhuma base racional. Ter uma sociedade tão desinformada, e ao mesmo tempo sobrecarregada de informação, aponta para uma forma particularmente idiota de organizarmos o acesso ao conhecimento. E exemplos positivos não faltam, como a BBC para o mundo que entende inglês, a TV5Monde para o mundo francófono, redes de informação científica como a PBS americana e assim por diante. Já pensaram a TV utilizada para informação em vez de fakereality?

O paradoxo das tecnologias

É muito impressionante a nossa preocupação com as tecnologias. Afinal, fazer mais coisas com menos esforço deveria nos deixar contentes, aumenta a produtividade social. Mas os avanços tecnológicos explosivos que vivemos exigem formas inovadoras de organização social. No mundo do vale-tudo que chamamos educadamente de liberalismo, ou de neoliberalismo, as novas tecnologias permitem liquidar a vida nos mares, encher os nossos alimentos de agrotóxicos e de antibióticos, contaminar a água, o ar e o solo, transformar o clima, liquidar as florestas, destruir a biodiversidade herdada – tudo em escala sem precedentes, justamente pelo poder das tecnologias. Entre a criatividade que permite esse avanço das tecnologias, e a nossa patológica dificuldade de pensar de maneira sistêmica (como se articulam essas diversas transformações) e no longo prazo (mudança climática, acidificação dos oceanos etc.), o resultado é o que tem se chamado de catástrofe em câmara lenta.

Como se preocupar tanto com o desemprego tecnológico quando a produtividade maior significa que podemos trabalhar menos, e dedicar uma parte maior das nossas vidas à cultura, lazer, convívio e semelhantes? Obviamente, é só distribuir melhor a jornada de trabalho, deixar a economia se expandir nas áreas que nos permitam aproveitar melhor a vida, e assegurar a renda básica para permitir que na transição ninguém fique em situação desesperadora. Mas também precisamos nos dotar de instrumentos de regulação que evitem a destruição do planeta. Ou seja, quem maneja a tecnologias tem de assumir a responsabilidade de não ser apenas economicamente viável, mas também socialmente justo e ambientalmente sustentável. O vale-tudo organizacional do século XX mas com as tecnologias do século XXI não tem como funcionar. Utilizar tanta tecnologia e conhecimento sofisticado para aprofundar a crise ambiental e o desastre social, francamente, constitui burrice sistêmica.

Competição ou colaboração

Sabemos que os processos colaborativos funcionam. No entanto privilegiamos a guerra de todos contra todos, entre grupos sociais, entre religiões, entre países, entre empresas, entre vizinhos. Em grande parte, sem dúvida, trata-se da nossa natureza. Mas o essencial é que constatamos, em tantos exemplos pelo mundo, que se trata também de dimensões institucionais. Não estava na natureza dos alemães matar pessoas em campos de concentração, nem está na dos guardas de fronteira americanos arrancar filhos de junto das suas mães. E podemos olhar como sociedades muito mais centradas na colaboração, como o Canadá ou os países nórdicos, prosperam não só em termos de qualidade de vida como inclusive de produtividade econômica. As pessoas esquecem, ao constatarem a impressionante dinâmica da China, do Vietnã e de outros “tigres”, a que ponto está ancorada nas suas tradições a dinâmica colaborativa do cultivo de arroz, em que o dique de um é também o dique de outro, em que a repicagem do arroz se faz de maneira coletiva.

O que vale no curso da nossa curta vida não são só os resultados, mas também os processos. Transformar a vida num inferno e depois mostrar que aumentou a produção nos deve levar a pensar, afinal, o que queremos? A vida é o próprio caminhar, e tornar o caminho menos espinhoso pode ser mais importante do que chegar mais rápido. As pessoas estão redescobrindo os bens comuns, como conhecimento, meio ambiente, infraestruturas que geram mais conforto e articulação entre as diversas atividades. Com a urbanização mundial, inúmeras cidades estão assumindo as rédeas de um desenvolvimento mais equilibrado, organizando a colaboração dos diversos atores sociais e econômicos. Com a evolução para a sociedade do conhecimento, redescobrem a evidência de que as ideias podem ser generalizadas sem custos adicionais, no quadro da sociedade de custo marginal zero tão bem descrita por Jeremy Rifkin. Com a conectividade planetária abrem-se espaços imensos de economia colaborativa.

Já é tempo de começarmos a nos civilizar. Um versinho de repentistas pernambucanos é cheio de sabedoria: “Para que tanta ganância e correria, se ninguém veio aqui para ficar?” Francamente, os super-homens de plantão, sejam políticos, empresariais ou eclesiásticos, me enchem o saco, eu quero a tranquilidade do cotidiano, a riqueza das trocas, as alegrias do convívio. E temos toda a ciência e riqueza necessárias para assegurar o bem-estar de todos sem tanta ideologia do sucesso individual. Realização, sem dúvida, mas não sobre as costas dos outros, e muito menos sobre os seus cadáveres, absurdo que por desgraça continua em tantas regiões do mundo. Quando as regras se tornam fluidas e as leis ajustáveis, impera o arbítrio dos mais fortes. Até quando aceitaremos a estupidez de armar mais pessoas para gerar mais segurança? De mandar tropas para as favelas em vez de enfrentar o absurdo da sua existência? Será demais exigir da inteligência que entenda que é mais produtivo agir sobre as causas do que sobre as consequências?

A lei como vetor de injustiça

A lei é fundamental. O conjunto das leis define as regras do jogo na sociedade. E a igualdade perante a lei é essencial, permitindo previsibilidade e segurança. Um problema central, naturalmente, é definir quem faz as leis. No mundo realmente existente, as leis são feitas por homens, não por acaso brancos e ricos. E são feitas, como se poderia esperar, no sentido de privilegiar homens, brancos e ricos. Houve um tempo em que era legal uma pessoa comprar ou vender pessoas como escravos. Lincoln, como presidente, conseguiu revogar esta lei recorrendo a uma série de ilegalidades, inclusive à corrupção: já se comentou que o maior avanço humanitário dos Estados Unidos foi conseguido por um homem profundamente ético que o conseguiu recorrendo aos procedimentos mais desonestos. No Brasil, a generalização do hábito de legislar em causa própria nos leva ao caos, ao se deslegitimar a própria lei e o próprio judiciário.

As nossas heranças recentes são significativas. Podemos dizer que a Constituição de 1988, pelo modo como foi elaborada, era legítima. Mas mesmo dentro desse marco jurídico, foi se desenhando um Frankenstein. Sigam o processo. Em 1988, nós aprovamos a Constituição, resgatando um mínimo de governabilidade. Em 1995, o governo aprova uma lei que define as modalidades do endividamento público: a partir de julho de 1996, os bancos podiam aplicar o nosso dinheiro em títulos públicos que rendiam 25%, já com inflação baixa. O normal no mundo é um rendimento entre 0,5% e 2% ao ano. A taxa Selic foi e continua sendo um imenso presente para os banqueiros. Apropriação privada legalizada de recursos públicos. Bem, a lei é igual para todos, os pobres, se têm dinheiro sobrando, também podem aplicar. As fortunas que o endividamento público representou para a nata da sociedade não seriam oneradas pelo imposto: no presente de natal aprovado em 26 de dezembro de 1995, os lucros e dividendos distribuídos passaram a ser isentos de imposto. Os funcionários do banco são descontados na folha, mas os milhões que entram nos bolsos dos banqueiros são isentos. Isso no Brasil, mais uma particularidade nossa.

Tem mais, em 1997, o governo aprovou uma lei autorizando as pessoas jurídicas a financiarem as campanhas eleitorais. A política passou a representar os ruralistas, os bancos, a grande mídia, cada grupo de grandes corporações passou a ter a sua bancada. Levou 18 anos para o STF, guardião da nossa Constituição, se dar conta de que o artigo 1º, que reza que todo poder emana do povo, não das corporações e pessoas jurídicas, mas de pessoas de verdade, tinha sido violado. O Congresso eleito desta maneira aceitou em 1999 a PEC que liquidava o artigo 192º da nossa Constituição, transformada em Emenda Constitucional em 2003. A limitação de juros (era de 12% ao ano mais inflação) desaparece. Liquidaram a regulação financeira.

Lula estava plenamente consciente das relações de força do país e leu, em junho 2002, a Carta aos Brasileiros, que mais poderia se chamar de carta aos banqueiros: não mexeria com os seus interesses. Aliás, com a liquidação do artigo 192º, teria inclusive pouca base legal para fazê-lo. Apesar da sangria dos juros, foi possível, como vimos, realizar milagres. Mas em 2012, com mais de 50 milhões de adultos enforcados na dívida, e o governo esterilizado pelo dreno da dívida pública, Dilma resolve baixar os juros. Não teve força política correspondente ao desafio. O resto sabemos: é o golpe, e a lei do teto de gastos que garante os juros para os banqueiros e os rentistas, mas onera a massa da população, iniciativas do aparato jurídico que têm como denominador comum o aumento dos privilégios. Neste início de 2019, como vimos, são 64 milhões de adultos “enforcados” na dívida.

Moral da história: falar em legalidade tornou-se um faz-de-conta. Em pequeno livro de 2015, Os estranhos caminhos do nosso dinheiro, descrevo como a grande corrupção gera a sua própria legalidade. Uma empresa dar dinheiro a um político para que se aprove uma lei que lhe favorece constitui corrupção. Mas entre 1997 e 2015, financiar a eleição do político que se deseja e, portanto, ter os seus votos assegurados durante quatro anos, era legal. Comprar políticos só seria ilegal no varejo.

Temos uma referência básica, a Constituição. E um guardião do seu cumprimento que é o Supremo Tribunal Federal. Ao se bandear com armas e bagagens para os golpistas e para os grupos mais corruptos da política, ao acobertar o golpe, o judiciário conseguiu sem dúvida favorecer uma guinada radical para a direita, e reduzir radicalmente os espaços democráticos no país. Alguém acredita hoje neste judiciário? O que conseguiram, foi uma desmoralização profunda, e a perda de confiança na justiça representa um imenso recuo para o país. Em pleno final de 2018, depois de tanto justificar a perda de direitos da massa da população com o pretexto do desequilíbrio das contas públicas, o STF obteve do Congresso agradecido um aumento dos já impressionantes salários. É o absurdo do judiciário desmoralizando a justiça. Os custos para o país serão imensos, e muito mais do que financeiros.

***

Voltamos aqui ao problema básico, a nossa imensa dificuldade de nos governarmos com um mínimo de bom senso. As opções políticas seguem sendo definidas muito mais pelo fígado do que pela cabeça, pelo ódio do que pela solidariedade e compaixão. Em particular, a truculência de grupos ou classes sociais que por alguma razão se tornaram mais fortes, constitui uma permanência na história, com o exercício sistemático e recorrente de formas extremas de discriminação e de violência. Qualquer pretexto é suficiente, seja a cor da pele, o gênero, a opção sexual, a religião, a diferença de renda, e frequentemente até a idade. Por vezes o tamanho do cabelo, o porte de barba, ou um véu na cabeça bastam para alimentar a besta latente dentro de nós. E quando a bestialidade encontra a sua dimensão coletiva, e se veste de superioridade ética, sai de baixo.

Hoje os meios de comunicação permitem que o nosso consciente seja invadido pelas narrativas mais absurdas, mas sempre favoráveis aos grupos dominantes. A penetração na nossa intimidade é hoje individualizada através dos sistemas eletrônicos, e o controle do que vemos e entendemos permite a gestão por algoritmos de uma opinião pública que passa a ser uma construção em escala industrial. Os sistemas financeiros complexos permitem que sejamos expropriados do controle das atividades econômicas, gerando uma desigualdade aberrante em favor de rentistas improdutivos. Gigantes corporativos exercem um poder distribuído pelo planeta, por parte de grupos que ninguém elegeu, e que nenhum governo mundial limita. E estamos avançando rapidamente, em termos históricos de maneira extremamente acelerada, para o comprometimento da vida no planeta.

Visões estratégicas existem, e são razoavelmente óbvias: o resgate da dimensão pública do Estado, a taxação dos capitais improdutivos que nos governam, a reforma do nosso sistema tributário aberrante, a obrigação de transparência dos fluxos financeiros, uma renda básica de cidadania, a redução da jornada de trabalho à medida que avança a produtividade, o resgate do papel das cidades como unidades básicas de governança, a constituição de um mínimo de governança global nos caos internacional que se constata. E, obviamente, uma democratização da mídia que permita a existência de uma sociedade informada. É viável? A questão não é ser ou não viável, mas sim, em primeiro lugar, entender a dimensão essencialmente política dos desafios, a centralidade da questão do poder. Em segundo lugar, entender que é uma questão de tempo, pois com a mudança climática, a destruição da biodiversidade, o aprofundamento do fosso entre ricos e pobres, a contaminação mundial da água e outros desafios que se avolumam, estamos apenas adiando as medidas, provavelmente até que uma catástrofe planetária gere a força política necessária.

A erosão do pouco de democracia que o Brasil tinha se dá como numa tragédia burlesca. Derrubamos as políticas que estavam dando certo, desfiguramos a Constituição que nos protegia dos absurdos, elegemos um personagem fraco e sem base organizada cuja única possibilidade de sobrevivência é deixar a oligarquia e os interesses internacionais livres para aprofundar os seus desmandos. O encarregado da economia brasileira é co-fundador do Banco Pactual, que tem 38 filiais nas Ilhas Cayman, Bermudas, Panamá, Delaware e outros paraísos fiscais. Paraísos fiscais servem essencialmente para especulação financeira, evasão fiscal e lavagem de dinheiro. É disso que precisamos?

Haverá um Brasil profundo, um bom senso latente na cabeça de milhões, permitindo retomar os avanços para uma sociedade decente? Dividimos o mundo em esquerda e direita. Isso confere à direita, que quer apenas aumentar o poder e os privilégios das oligarquias, e com isso está gerando uma tragédia social e ambiental, uma aparência de legitimidade: seriam “opiniões”. O grande divisor é na realidade entre os que querem uma sociedade democrática e sustentável, e os que querem arrancar mais e no curto prazo, danem-se o povo e o futuro. Não se trata de esquerda ou direita, trata-se de decência humana. Até quando toleraremos que 850 milhões passem fome, quando há alimento sobrando? E que um bando de idiotas em Wall Street justifique tudo com o lema de Greed is Good?

Paulo Freire declarou um dia que queria “uma sociedade menos malvada”. Os nossos desafios são imensos, e a nós que somos professores, ou comunicadores, ou organizadores sociais, ou simples cidadãos, cabe a tarefa de explicar o óbvio: uma sociedade que funcione tem de ser uma sociedade para todos. A burrice se enfrenta, de preferência, com inteligência.

*Extraído de Dowbor
**Economista, professor da PUC-SP, consultor de diversas agências das Nações Unidas, e autor de numerosos livros e estudos técnicos disponíveis de forma aberta e gratuita

quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Tempos sombrios

La idiotización de la sociedad como estrategia de dominación*

 

  La gente está imbuida hasta tal extremo en el sistema establecido, que es incapaz de concebir alternativas a los criterios impuestos por el poder.


Por Fernando Navarro

Para conseguirlo, el poder se vale del entretenimiento vacío, con el objetivo de abotagar nuestra sensibilidad social, y acostumbrarnos a ver la vulgaridad y la estupidez como las cosas más normales del mundo, incapacitándonos para poder alcanzar una conciencia crítica de la realidad.

En el entretenimiento vacío, el comportamiento zafio e irrespetuoso se considera valor positivo, como vemos constantemente en la televisión, en los programas basura llamados “del corazón”, y en las tertulias espectáculo en las que el griterío y la falta de respeto es la norma, siendo el fútbol espectáculo la forma más completa y eficaz que tiene el sistema establecido para aborregar a la sociedad.

En esta subcultura del entretenimiento vacío, lo que se promueve es un sistema basado en los valores del individualismo posesivo, en el que la solidaridad y el apoyo mutuo se consideran como algo ingenuo. En el entretenimiento vacío todo está pensado para que el individuo soporte estoicamente el sistema establecido sin rechistar. La historia no existe, el futuro no existe; sólo el presente y la satisfacción inmediata que procura el entretenimiento vacío. Por eso no es extraño que proliferen los libros de autoayuda, auténtica bazofia psicológica, o misticismo a lo Coelho, o infinitas variantes del clásico “cómo hacerse millonario sin esfuerzo”.

En última instancia, de lo que se trata en el entretenimiento vacío es de convencernos de que nada puede hacerse: de que el mundo es tal como es y es imposible cambiarlo, y que el capitalismo y el poder opresor del Estado son tan naturales y necesarios como la propia fuerza de gravedad. Por eso es corriente escuchar: “es algo muy triste, es cierto, pero siempre ha habido pobres oprimidos y ricos opresores y siempre los habrá. No hay nada que pueda hacerse”.

El entretenimiento vacío ha conseguido la proeza extraordinaria de hacer que los valores del capitalismo sean también los valores de los que se ven esclavizados por él. Esto no es algo reciente, La Boétie, en aquel lejano siglo XVI, lo vió claramente, expresando su estupor en su pequeño tratado Sobre la servidumbre voluntaria, en el que constata que la mayor parte de los tiranos perdura únicamente debido a la aquiescencia de los propios tiranizados.

El sistema establecido es muy sutil, con sus estupideces forja nuestras estructuras mentales, Y para ello se vale del púlpito que todos tenemos en nuestras casas: la televisión. En ella no hay nada que sea inocente, en cada programa, en cada película, en cada noticia, siempre rezuma los valores del sistema establecido, y sin darnos cuenta, creyendo que la verdadera vida es así, nos introducen sus valores en nuestras mentes.

El entretenimiento vacío existe para ocultar la evidente relación entre el sistema económico capitalista y las catástrofes que asolan el mundo. Por esto es necesario que exista el espectáculo vacuo: para que mientras el individuo se autodegrada revolcándose en la basura que le suministra el poder por la televisión, no vea lo obvio, no proteste y continúe permitiendo que los ricos y poderosos aumenten su poder y riqueza, mientras las oprimidos del mundo siguen padeciendo y muriendo en medio de existencias miserables.

Si seguimos permitiendo que el entretenimiento vacío continúe modelando nuestras conciencias, y por lo tanto el mundo a su antojo, terminará destruyéndonos. Porque su objetivo no es otro que el de crear una sociedad de hombres y mujeres que abandonen los ideales y aspiraciones que les hacen rebeldes, para conformarse con la satisfacción de unas necesidades inducidas por los intereses de las élites dominantes. Así los seres humanos quedan despojados de toda personalidad, convertidos en animales vegetativos, siendo desactivada por completo la vieja idea de luchar contra la opresión, atomizados en un enjambre de egoístas desenfrenados, quedando las personas solas y desvinculadas entre ellas más que nunca, absortas en la exaltación de sí mismas.

Así, de esta manera, a los individuos ya no les queda más energía, para cambiar las estructuras opresoras (que además no son percibidas como tales), ya no les queda fuerza ni cohesión social para luchar por un mundo nuevo.

No obstante, si queremos revertir tal situación de enajenamiento a que estamos sometidos, solo queda como siempre la lucha, solo nos queda contraponer otros valores diametralmente opuestos a los del espectáculo vacuo, para que surja una nueva sociedad. Una sociedad en que la vida dominada por el absurdo del entretenimiento vacío sea tan solo un recuerdo de los tiempos estúpidos en que los seres humanos permitieron que sus vidas fueran manipuladas de manera tan obscena.

*Extraído de AnnurTV

quinta-feira, 22 de novembro de 2018

O ovo da serpente

Brasil, Bannon e Bolsonaro: alegoria antecipada em “O Ovo da Serpente.”*


Pedro Felipe Narciso

O ano é 1923, a Alemanha está devastada pelo cenário do Pós-Guerra e pela rapinagem de Versalhes. A economia está um caos e a inflação explode, um pacote de cigarros chega a custar 4 bilhões de Marcos. O desemprego, a fome e o desespero são normalizados como o cotidiano de milhões de alemães.

No coração desse país devastado está uma Berlim burlesca e decadente, por onde vagam prostituas, artistas, malandros, militares desempregados e toda sorte de gente sem esperança. É também por essa Berlim que flana o personagem principal de O Ovo da Serpente, filme de Ingmar Bergman. Trata-se de Abel, um trapezista judeu estadunidense que se mudara para a cidade com o seu irmão Max e com Manuela, a ex-esposa desse último.

O enredo é disparado com o suicídio de Max, o fato misterioso a ser resolvido pelo personagem principal e a problemática pela qual os acontecimentos subsequentes se desencadeiam. No entanto, embora tenha centralidade incontestável para a estória, essa não se desenvolve linearmente a partir de causas que produzem efeitos que, costurando-se, lançam luz sobre o enigma inicial, o suicídio. Trata-se de um filme de atmosfera, cuja proposta parece ser a de transmitir ao espectador a angústia de estar sem rumo, sem perspectiva e sem esperança.

A atmosfera dessa Berlim é construída pela ausência de linearidade, pela iluminação sombria e pelo desafio diário que os personagens enfrentam para obter recursos necessário à manutenção da vida e da, não menos importante, embriaguez que dê conta suportá-la. Nos diálogos diversos observa-se a proliferação do discurso paranoico de orientação antissemita e anti-bolchevique. A prostituição e a mendicância generalizam-se. A sensação é de desordem absoluta. Nas ruas hordas de soldados desempregados pelo fim da Guerra perseguem todo tipo gente. Os soldados empregados, identificados e solidários com seus ex-colegas, nada fazem perante as cenas de violência gratuita.

Após passar por esses cenários diversos de decadência e desesperança, Abel é convencido por Manuela a aceitar a ajuda do seu amigo e cliente, o Dr. Vérgerus, que, além de lhes emprestar um pequeno apartamento, arranja para Abel um emprego em sua clínica, onde esse executaria a monótona tarefa de organizar arquivos médicos secretos. É nessa nova situação, quando o enredo parece caminhar para lugar nenhum, que o mistério, como num estalo, se resolve. Abel percebe que o apartamento é monitorado por câmeras e que na parte dos fundos daquele encontra-se uma clínica abandonada, semelhante aquela em que ele trabalha como arquivista.

Após vencer o enfrentamento físico com o personagem anônimo que o observava pelos espelhos do apartamento, Abel vai até a clínica, encontrando-se na área restrita com o Dr. Vérgerus que, com uma calma psicopática, explica o que motiva a existência da clínica e da casa vigiada, revelando, também, as causas desconhecidas que levaram o seu irmão ao suicídio. Abel, assim como o seu irmão e Manuela estavam sendo observados como cobaias de uma série de experimentos psicológicos comportamentais. Esses experimentos têm como objetivo mensurar e controlar a relação entre os estímulos necessários de angústia capazes de produzir como resposta reações extremadas e irracionais, em que os sujeitos sejam levados “a um total desequilíbrio emocional, sejam despojados de suas defesas sociais, percam as inibições, vacilem como loucos e entre as mudanças rápidas de humor respondam com reações absurdas”. Dr. Vérgerus mostra alguns dos experimentos filmados para Abel, segue abaixo a transcrição da explicação de um deles:
 – Este é um experimento de resistência. Esta mulher de 30 anos se ofereceu para cuidar de um bebê de quatro meses com uma lesão cerebral que o fazia chorava dia e noite. Queríamos ver o que aconteceria a esta mulher normal e bastante inteligente se nós a fechássemos com um bebê que chorasse ininterruptamente. Como vê, depois de 12 horas ela ainda se controla perfeitamente. Entretanto, 24 horas depois podemos ver que está afetada. Sua compaixão pelo bebê doente desapareceu e se transforma em uma profunda depressão, que por sua vez, paralisa qualquer iniciativa. Ela abandona o bebê a sua sorte. Aqui podemos ver claramente que seu impulso por atacar o bebê amadureceu. Passaram-se seis horas antes de materializar suas intenções. Uma resistência extraordinária. Infelizmente, nossa câmera não conseguiu documentar o acontecimento em si.
 Após seguir com a sessão de filmes dos experimentos, o Dr. Vérgerus conclui,
 – Em um ou dois dias, talvez amanhã de manhã, o exército da Alemanha do Sul começará uma revolta comandada por um demente chamado Adolf Hitler. Será um fiasco descomunal. Herr Hitler carece de capacidade intelectual e de técnica e não sabe as forças tremendas com as que se enfrentará. Será arrasado, como um grande fiasco no dia em que desatar esta tormenta. Observe esta imagem. Observe toda esta gente. São incapazes de uma revolução. Estão muito humilhados, muito temerosos, muito oprimidos. Mas em dez anos os de 10 terão 20 e os de 15 terão 25. Eles terão herdado o ódio de seus pais, mas com a adição de seu idealismo e impaciência. Alguém se adiantará e colocará seus sentimentos em palavras. Alguém prometerá um futuro. Alguém fará suas exigências. Alguém falará de grandeza e sacrifício. Os jovens e inexperientes brindarão seu valor e sua fé aos cansados e indecisos.
 Ao fim, enquanto a polícia arromba a porta da clínica, Dr. Vérgerus se suicida tomando uma cápsula de cianureto. Adentrando o local, o inspetor de polícia noticia:
 – Herr Hitler falhou com seu golpe de estado em Monique. Foi um fiasco descomunal. Herr Hitler e seu bando subestimaram a força da democracia alemã.
 O filme é incrível em todos os sentidos, quase que nos transporta para a República de Weimar. O desencantamento absoluto, o cansaço e a ausência de perspectiva estão ali. Pela película transmite-se também uma contradição de sentimentos extremamente angustiantes e paralisantes, ao mesmo tempo em que se tem revolta, tem-se impotência; ao mesmo tempo em que se tem medo, tem-se a sensação de que nada pode piorar. O aspecto realístico do filme é impecável.

Observando então a radicalidade da situação de Weimar e o final trágico gestado ali é quase óbvio que não cabe comparação histórica com a situação que estamos vivendo. A variante germânica do fascismo só é comparável em brutalidade e violência com as campanhas coloniais contra os povos americanos, africanos e asiáticos. No entanto, curiosamente, o elemento ficcional, não histórico, do filme de Bergman é bastante pertinente se entendido como uma alegoria antecipada do momento em que estamos vivendo no Brasil de hoje. O Dr. Vérgerus, como relatado acima, conduzia pesquisas que mapeavam modalidades comportamentais mediante o estudo de grupos focais. Os estudos de Vérgerus tinham como base teórico-metodológica a orientação behaviorista, cujo princípio básico é identificar padrões de relação entre determinados estímulos e determinadas respostas, ou seja, sob determinadas condições e sob determinados estímulos obtêm-se, quase que invariavelmente, determinados comportamentos.

Poderia imaginar o Dr. Vérgerus que no futuro os grupos focais seriam substituídos por quase a totalidade da população? Poderia imaginar o Dr. Vérgerus que quase todas as pessoas morariam em casas cercadas por câmeras e sensores e voluntariamente quase que 24 horas por dia produziriam padrões de comportamento dando detalhes sobre localização, itens preferidos de consumo, estado de ânimo e exporiam em minúcias seus medos, fragilidades e desejos? Pois bem, esse cenário distópico que a ficção não se atreveu a imaginar é a realidade de todos os contemporâneos do Facebook, Twitter, whatsApp e afins.

Já é do conhecimento de todos que as informações produzidas pelos os usuários das redes sociais são vendidas por essas mesmas companhias para empresas especialistas em propaganda. Essas empresas, tais como a Cambridge Analytica, de Steve Bannon (o Dr. Vérgerus da vida real), cruzam essas informações traçando perfis psicológicos detalhados, podendo, assim, mapear esses perfis diferencialmente, produzindo estímulos personalizados para cada grupo. Alguns podem ser mais sensíveis ao “Kit-gay”, outros à “bolivarianização do Brasil”, outros, ainda, ao “direito de armar-se contra a bandidagem”. Por esses meios as fake-news são produzidas quase que por encomenda, adequando-se ao perfil do receptor das mensagens. É dessa produção personalizada e direcionada das falsas notícias que se deriva a fé inabalável dos seus consumidores e divulgadores espontâneos, o que anula qualquer possibilidade de convencimento pelo diálogo racional. Os crentes não acreditam somente porque estão sendo manipulados por uma força externa, mas porque querem e, sobretudo, porque precisam.

Esse fenômeno é explicado por Slavoj Zizek como sintoma de um impasse simbólico generalizado. O filósofo esloveno, seguindo pela tradição da psicanálise, entende que o mundo exterior se apresenta ao homem comum como uma fonte inesgotável de restrições e ameaças. Esse mundo externo, além de ameaçador, está cada vez mais complexo, descentrado, ininteligível e imprevisível, “tudo que é solido se desmancha no ar.” Portanto, o homem comum além de sentir-se ameaçado, não sabe sequer identificar a origem da ameaça, menos ainda é capaz de identificar os meios necessários para combate-la.

É nesse contexto que o discurso paranoico e simplificador cativa a sua audiência. Os medos são lidos de modo personalizado e a origem desses medos diversos é unificada como sendo consequência da existência de um ponto único, do qual emana toda a diversidade de males. Com essa operação de simplificação grotesca do real resolve-se o impasse simbólico das massas dispersas, afinal, basta eliminar aquele pontinho e toda a gama de medos, restrições e frustrações desaparece.

Agora tudo fica mais fácil, o real está dividido entre aqueles que são do bem e estão comigo e aqueles que estão com o ponto e contra mim. Qualquer argumentação que siga por outro caminho e tente demonstrar que, talvez, por acaso, o ponto não tenha responsabilidade sobre tudo o que se julgue desagradável, é entendido como mais uma manifestação malévola do ponto querendo confundir aqueles que são cidadãos de bem. Deriva-se disso o anti-intelectualismo que sempre acompanha essa massa carente e apaixonada.

Obviamente, o bom senso indica que as origens explicativas do fascismo tupiniquim têm outros elementos, inclusive, mais importantes que os destacados neste texto que não tem, sequer, a pretensão de explicar o fenômeno. No entanto, uma questão importante que merece ser frisada pela novidade que significa é o aparato técnico e científico de que dispõem atualmente os grupos obscurantistas que visam manipular o sentimento popular. O trabalho de militância via panfleto virou quase que trabalho artesanal se comparado ao trabalho científico desenvolvido por Bannon e seus assessores, que é de causar inveja até à imaginação de Bergman e ao seu inventivo e doentio personagem, o Dr. Vérgerus, que em uma das suas provocações finais adverte Abel:
 – Cômico, não é verdade, Abel? Algum dia poderá dizer isto a quem quer que lhe dê ouvidos. Ninguém vai acreditar em você!

*Extraído de Lavra Palavra

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Distopia brasileira

Neoliberalismo, distopias e Bolsonaro* 

Leda Paulani**

A eleição de Jair Bolsonaro para a presidência da república do Brasil deixa o mundo estarrecido. Seu estilo autoritário e agressivo, sua apologia à tortura, suas continuadas ofensas a determinados grupos ao longo de seus quase 30 anos de vida parlamentar (mulheres, negros, LGBTQs) e seu desprezo aos princípios democráticos são tão impressionantes que mesmo para um nome de destaque mundial da extrema-direita, como a francesa Marie Le Pen, ele causa repulsa: “suas declarações são inaceitáveis”, ela diz. Não por acaso, só Trump parece relevar tudo isso e louva, pelo Twitter, a conversa alvissareira que teve, em 30 de outubro, com o presidente eleito.
 
Considerando que o Brasil não é um país pequeno e sem importância no cenário mundial, bem ao contrário, e considerando, portanto, que essa eleição significa o voto de mais de 57 milhões de pessoas em alguém como Bolsonaro (ainda que esse contingente represente apenas 39,2% dos eleitores do país), cabe uma reflexão profunda e que mobilize todo o arsenal teórico à disposição para que se possa identificar as causas desse terremoto anticivilizatório. Evidentemente não é possível fazê-la no curto espaço de um artigo e, com certeza, independentemente do que possa vir a acontecer a partir de agora, esse resultado será discutido e estudado, analisado e dissecado por décadas a fio. É possível, contudo, antecipar alguns elementos, que podem jogar alguma luz em episódio tão sombrio.
 
Um fenômeno dessa magnitude nunca é isolado, de modo que não pode ser explicado mobilizando-se apenas variáveis relativas às questões sociais e políticas internas ao país. Além disso, o mundo é hoje cada vez mais integrado, seja por conta da forma que foi tomando o processo de acumulação de capital desde o início dos anos 1980, num sistema econômico que é hoje (depois da transformação capitalista da China) verdadeiramente mundial, seja pelo estupendo desenvolvimento das assim chamadas tecnologias de informação e comunicação (elemento, por sinal, de extrema importância no resultado das eleições brasileiras). Nosso primeiro olhar vai, portanto, para o cenário externo.
 
Depois de mais de três décadas de ascensão e difusão da cartilha e das políticas neoliberais mundo afora (como se sabe, mesmo países europeus geridos por longos períodos por partidos social democratas acabaram por sucumbir a essas políticas – e o Brasil comandado pelo Partido dos Trabalhadores tampouco foi diferente), o neoliberalismo parece ter chegado num ponto de saturação e sem ter entregue aquilo que prometera. No início dos anos 1980, as teorias da “repressão financeira” alegavam que a estrutura institucional herdada do pós-segunda guerra mundial – com seus controles, regras, tributos e quarentenas – era deletéria para o desenvolvimento, e que a liberalização financeira, ao tornar mais eficiente a alocação de capitais no globo, traria melhores tempos para todos os países, potenciando o crescimento. O mesmo se dizia da generalização da abertura comercial, pois que a economia mundial viria a ser então uma harmônica aldeia global, em que todos os países, beneficiados por suas vantagens comparativas mútuas, sairiam ganhando materialmente.
 
Mas o resultado dessas políticas, três décadas depois, foi o aumento da desigualdade (inclusive entre os países), o crescimento muito lento e o surgimento de um desemprego que tem características estruturais. Tudo isso piorou substantivamente com o advento da crise financeira internacional de 2008-09, que não só tornou ainda mais indigestos os resultados desse modelo, como, ao longo da última década e graças aos meios segundo os quais se tentou equacionar os problemas, aprofundou as contradições que estão em sua base. O voto antissistema é uma consequência imediata dessa situação. É por aí que devem ser explicados, a meu ver, a eleição de Trump nos Estados Unidos, o Brexit britânico e a ascensão de partidos e políticos de extrema direita em todo o planeta (Hungria, Polônia, Itália, Filipinas, Turquia, Bulgária, e agora, infelizmente, também o Brasil – que já estava nesse caminho, deve-se notar, desde o injustificável impeachment da presidenta Dilma em 2016 e o início do governo Temer). O cenário é distópico.
 
Cabe no entanto perguntar: por que o sentimento antissistema vem resultando majoritariamente numa aposta que parece antes contribuir para o aprofundamento do modelo que é o responsável pela geração dessa situação ruim e desguarnecida de perspectivas, do que no sentido contrário? É verdade que o voto antissistema também flui para esse último lado: Bernie Sanders quase se tornou candidato nas últimas eleições presidenciais americanas, Obrador venceu no México, temos a primavera socializante e alvissareira de Portugal e a surpreendente vitória de Jeremy Corbin no tradicional e ainda poderosíssimo Labour Party inglês. O predomínio, contudo, parece estar no primeiro movimento. Por que?
 
A resposta a essa pergunta passa por caminhos que vão além das variáveis e análises puramente econômicas e/ou políticas. É preciso aqui mobilizar os filosófos, os pesquisadores de costumes, os antropólogos urbanos, os sociólogos. Lendo Pierre Dardot e Christian Lavall, Nancy Fraser, Dany-Robert Dufour, Wolfgang Streeck, Naomy Klein, André Gorz dentre outros, vai sendo possível perceber que, na quadra histórica que se inicia ao final dos anos 1970, não foram apenas as máximas e as políticas neoliberais que ganharam proeminência: a vitória ideológica foi também retumbante.
 
A insistente pregação neoliberal, quase nunca desacompanhada do mote there is no alternative, foi transformando corações e mentes e instituindo, no ideário de boa parte da população, sobretudo daqueles mais negativamente afetados pela ascensão das políticas neoliberais, os valores da concorrência, do cada um por si, do self made man, do mérito próprio, do empresário de si mesmo, do cidadão como “cliente” do Estado. A cooperação, a solidariedade, a importância do coletivo, do comum, da comunidade, foram atirados nos desvãos da história junto com o muro de Berlim e os “velhos” e empoeirados expedientes do Estado-Nação, da sociedade de classes, das políticas universais, dos controles sociais/estatais impostos à sanha acumulativa. Como lembra Nancy Fraser, mesmo as chamadas pautas identitárias (mulheres, LGBTQs, minorias raciais) foram inteiramente capturadas pelo espírito the winner takes all. Não é de espantar que a reação às mazelas do mundo neoliberal, aprofundadas pela crise de 2008-2009, se virem “contra” o sistema na direção errada e acabem por fortalecê-lo, arrastando para os mesmos desvãos da história a própria democracia.
 
No caso da vitória de Bolsonaro somaram-se a esse espírito de época decorrente das quase quatro décadas de neoliberalismo, alguns elementos domésticos não menos importantes para o resultado funesto produzido em 28 de outubro. Entre 2003 e meados de 2016 (até o impeachment de Dilma Roussef) o Brasil foi governado pelo Partido dos Trabalhadores (PT). Sob esses governos, a economia brasileira, apesar de continuar submetida, em boa parte do tempo, a uma política econômica de corte neoliberal, que beneficiava continuamente a riqueza financeira, floresceu e conseguiu resultados positivos impulsionados pela boa fase da economia mundial pré-crise e pelo efeito multiplicador dos massivos programas de renda compensatória (Bolsa Família), associados à substantiva elevação do valor real do salário mínimo. Contra o sentido neoliberal, esses governos também brecaram as privatizações e, a partir de 2006, deram forte impulso aos investimentos públicos. No mesmo sentido, a política externa “ativa e altiva” do país ao longo desse período recusou a ALCA, fortaleceu os BRICS e o Mercosul e retirou o país do costumeiro alinhamento direto com os interesses dos países centrais, EUA em destaque.
 
Apesar do sucesso em termos de crescimento, nível de emprego e redução da desigualdade, sem que os interesses dos muito ricos tivessem sido afetados, as elites do país, de feição ainda extremamente senhorial, nunca aceitaram o PT e sua maior liderança, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O sentimento de “perda” de poder se instalou e, no caso das classes médias altas, esse sentimento foi magnificado por conta das políticas públicas dos governos do PT, que colocaram os mais pobres em espaços antes exclusivos das elites: os aeroportos, as universidades, os shoppings mais chiques.
 
Assim, desde pelo menos 2005, iniciou-se, com a inestimável colaboração da grande mídia, uma implacável campanha de difamação e demonização do Partido dos Trabalhadores e de suas principais lideranças. Sempre ao abrigo da justa demanda social pelo combate à corrupção, o sistema judiciário do país, com o beneplácito das elites econômicas e dos partidos mais à direita, foi empreendendo uma “operação de limpeza” seletiva, que passou a “julgar” e punir apenas os políticos e partidos de esquerda, sobretudo do PT, enquanto os demais políticos e partidos continuavam a ser tratados com a habitual camaradagem. É nesse sentido que se deve entender a ação penal 470 (no processo conhecido como “mensalão”), o infundado impeachment da presidenta Dilma, a operação Lava-Jato, a juridicamente insustentável prisão de Lula no bojo da citada operação, e seu impedimento de concorrer às eleições – sendo o candidato de longe favorito e aparecendo com quase o dobro das intenções de voto de Bolsonaro no início do processo eleitoral (e isto mesmo com a determinação, duas vezes enviada ao governo brasileiro pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU, de que se garantisse a Lula o exercício de todos os seus direitos políticos).
 
No corpo a corpo com os eleitores que as forças democráticas do país empreenderam nas últimas semanas do segundo turno para tentar virar as intenções de voto em Bolsonaro, um dos argumentos que mais se ouvia era que o PT era sim o partido mais corrupto do país, porque afinal a maior parte dos políticos condenados era ou havia sido ligada ao partido. Mesmo argumentando que o PT, por qualquer critério que se escolha (políticos cassados, processados etc.) está sempre em 9º ou 10º lugar, aparecendo na frente dele a maior parte dos partidos de direita e aqueles que estão hoje no comando do país, sob o governo Temer, os eleitores continuavam desconfiados, preferindo continuar a crer na imagem do partido em que foram sendo doutrinados a acreditar por mais de uma década.
 
A crise econômica internacional, que atinge o Brasil a partir de 2011, ajudou a engrossar as críticas ao PT e a seus governos. Os movimentos de maio de 2013, iniciados por uma juventude de esquerda horizontalista e apartidária, tendo como foco reivindicações ligadas ao transporte público, foram rapidamente capturados pela direita, com o auxílio sempre determinante da grande mídia. A quarta vitória consecutiva do PT nas eleições presidenciais de 2014, que ainda assim acontece, detonou a operação conjugada do judiciário, grande mídia, empresariado e partidos de direita para usurpar o poder delegado a Dilma Rousseff pelo voto de mais de 54 milhões de brasileiros e pôr em marcha uma agenda fortemente neoliberal, que havia sido rechaçada nas urnas (privatizações, entrega do patrimônio natural do país, cortes nos direitos dos trabalhadores).
 
Os interesses do grande capital internacional, com destaque para o petróleo das camadas do pré-sal, também tiveram papel determinante. É hoje de conhecimento público o fato de magistrados brasileiros como Sérgio Moro, o todo poderoso juiz de primeira instância, comandante da operação Lava Jato, que quase destruiu a Petrobrás e a respeitada indústria de construção pesada do país, terem sido treinados nos Estados Unidos e apetrechados com os instrumentos e as ferramentas da chamada lawfare. Tampouco é por acaso que uma das primeiras medidas do governo de Temer foi a alteração de algumas regras do regime de exploração do pré-sal, buscando dar maior espaço para as grandes petroleiras mundiais.
 
Finalmente não se pode deixar de mencionar a relação despolitizada da população beneficiada pelas políticas implantadas pelos governos do PT com essas mesmas políticas e programas, por culpa, é preciso que se diga, do próprio partido. Combinada com a irrefreável ascensão das igrejas pentecostais e sua teologia da prosperidade (não estranha, muito ao contrário, ao referido ideário do neoliberalismo), essa despolitização foi decisiva para a aceitação totalmente acrítica do tsunami de fake news advindo da campanha de Bolsonaro contra o candidato do PT no segundo turno, Fernando Haddad – que ele incentivaria o incesto, que teria estuprado uma menina de 11 anos, para mencionar apenas duas das incontáveis mentiras sobre ele que foram sendo persistentemente propagadas por milhares de robôs, cujos links apresentavam como local de origem os EUA.
 
A dez dias da realização do segundo turno, a divulgação pela imprensa do financiamento desse ataque digital nas fechadas redes de whatsapp por dinheiro de caixa 2 proveniente de empresas, o que é proibido pela atual legislação brasileira e considerado crime eleitoral, deu alguma esperança de que o fascismo da campanha de Bolsonaro seria afinal derrotado, mas esse desfecho feliz não aconteceu. O juiz Sergio Moro, que disse que a corrupção destinada a caixa 2 de campanha eleitoral é ainda mais perniciosa do que a corrupção destinada ao enriquecimento pessoal porque constitui um ataque direto à democracia, acaba de aceitar o convite de Bolsonaro para ser o seu ministro da justiça. Não é preciso dizer mais.

*Extraído de Outras Palavras
** É formada em Economia pela FEA-USP e em Comunicação Social pela ECA-USP. Possui Doutorado em Teoria Econômica pelo Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade de São Paulo - IPE/USP (1992). É livre-docente junto ao Departamento de Economia da FEA-USP (2004). É professora do Departamento de Economia e da Pós-graduação em Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo - FEA/USP desde 1988 e professora titular na mesma unidade desde 2007. De janeiro de 2013 a março de 2015 foi secretária municipal de planejamento, orçamento e gestão da Prefeitura de São Paulo (gestão Fernando Haddad).