quinta-feira, 2 de agosto de 2018

O valor da Cultura

Reflexões sobre o papel da Cultura no contexto

pré-eleições no Brasil


Simone Amorim*


A cultura de massas, assim como os demais processos de alienação a partir da mercantilização de tudo o que cerca a existência comum das pessoas, vai atomizando os indivíduos em unidades não responsivas aos estímulos do pensar criativo. Percebe-se hoje um espaço vazio onde o cultivo do gosto é uma remota possibilidade para a grande massa, alheia ao exercício de apreciação estética. O principal norteador de uma atuação realmente criativa e engajada com o que nos parece ser essencial no campo das artes e da cultura, se apresenta, na verdade, como antivalores a algumas práticas que acabam por escamotear o que deveria ser central na atuação de um gestor cultural: “Uma política cultural subordinada à estrita lógica do mercado e das audiências é uma política cultural sem princípios nem valores, que se demite do seu papel estruturante do discurso e da prática políticos e do seu papel ativo na construção da imagem que uma sociedade dá de si própria e ao exterior”. (MELO, 2002, p.149)

Sem capacidade de abstração uma sociedade não avança. A ação cultural funciona como uma das possibilidades de que, a partir do exercício criativo, os indivíduos participem da construção de novos discursos, recombinem os repertórios de seu cotidiano com criatividade e reinventem suas realidades em cima do que lhes é imposto cotidianamente. Isso vale para todos os aspectos do convívio social. Quando existem deficiências nesse circuito, quando as pessoas por alguma razão perdem a capacidade de abstração, de criação, isto é, de participação na vida cultural; de alguma forma a cultura de um grupo se vê mais pobre e na mesma proporção o indivíduo se enfraquece. De modo que, subordinar esse circuito a lógicas exógenas ao campo cultural é criar um arremedo de ação cultural cujo efeito é estranho ao que acabamos de mencionar acima. Em outras palavras, quando uma ação cultural qualquer, se submete a indicadores socioeconômicos de medição quantitativa da curva de públicos, prestar contas dos seus resultados a parceiros, financiadores ou o Estado, gerir a instituição cultural, ou o projeto, como uma empresa capitalista globalizada (rentabilização máxima de dividendos) e outras práticas, em curso no campo cultural, já não enxergamos a cultura e a arte no pleno de sua potência humanizadora. O campo cultural tem espaço para funções executivas, mas jamais deveria perder de vista que o produto de sua atuação não pode ser reduzido a uma mercadoria (ou serviço) e como tal não pode ser comercializado no bazar global das mercadorias.

Essa reflexão é de uma atualidade crítica, na medida em que a ideologia da pós-modernidade entranhou-se por todos os domínios da vida social e particular dos indivíduos; diluiu os componentes tradicionais de sociabilidade e abriu espaço para uma miríade de experiências efêmeras, fragmentárias e descoladas umas das outras, ao mesmo tempo construindo novas frentes e destruindo a possibilidade de criação de novas narrativas – no sentido empreendido pelos modernos. Algo como uma infinita possibilidade de códigos e uma rara probabilidade de interação, pela incapacidade do estabelecimento de sentido, de grupo. “O ‘contrato social’ que, a partir do século XVIII, estabeleceu-se; contrato social de essência racional, privilegiando o cérebro, domesticando as paixões e marginalizando as emoções, esse contrato social está sob todos os aspectos totalmente saturado”. (MAFFESOLI, 2010, p.52).

Vivemos o tempo de um retorno ao aqui e agora como territórios do pertencimento, símbolos únicos da coesão pós-moderna, territórios reais ou simbólicos, o pacto tribal pós-moderno estaria fundado, organicamente, na experiência do imediato, do efêmero. Como se esse fosse o único laço possível na contemporaneidade: a partilha sensorial do momento presente das relações, do conhecimento, das interações dos pontos de vista. A enxurrada de opiniões publicadas para abafar a possibilidade de consolidação de um esfera pública sustentada por opinião pública criticamente constituída; a violência com que as diversidades rasgaram o modelo apoiado na ordem como condição para o progresso ou mesmo romperam com o contrato social cínico do século anterior, são verdades que mais participam do sentido neste momento, os símbolos do tempo presente. De modo que é nessa janela que se abre para o novo, que nos parece absolutamente pertinente um reenfocamento das políticas culturais na contemporaneidade. Oportunidade em que cabe ao agente cultural: “fazer a ponte entre as pessoas e a obra de cultura ou arte para que, dessa obra, possam as pessoas retirar aquilo que lhes permitirá participar do universo cultural como um todo e aproximarem-se umas das outras por meio da invenção de objetivos comuns” (COELHO, 2004, p.33).

Isto é, compartilharem códigos que possibilitarão a reinvenção da coesão a partir do social, do simbólico e de possibilidades estéticas do presente. Dessa forma não vejo como não serem úteis à política cultural do futuro. Por isso a arte e a cultura, na minha visão, devem ser entendidas como valores estéticos do presente, humanizadoras das sociabilidades e que, desse modo, reveste de uma importância política ainda maior o papel do Estado nesse campo. Um processo de ação cultural resume-se na criação ou organização das condições necessárias para que as pessoas inventem seus próprios fins e se tornem assim, sujeitos – sujeitos da cultura, não seus objetos (JEANSON, Apud COELHO, 2001, p.14).

A efetiva vida cultural da população, entendida aqui como o conjunto de práticas e atitudes que têm uma incidência sobre a capacidade do homem se exprimir, se situar no mundo, criar seu entorno e se comunicar. A vida cultural do indivíduo não se faz apenas através do uso do chamado tempo livre e do dispêndio de dinheiro; ela comporta também atitudes em períodos dominados por elementos não culturais, como o tempo do trabalho e do transporte, por exemplo. Conhecer as várias faces do cotidiano é fundamental para a formulação de políticas consequentes na área. (BOTELHO, 2016, p.20). Dessa forma, os bens culturais entendidos no conjunto do patrimônio histórico e cultural de uma sociedade constituem o propósito central da ação cultural genuína. Ao criticarmos o efeito alienante da ênfase que a indústria cultural dá apenas à mercantilização da arte e da cultura no circuito da produção cultural, reforçamos a noção de que “o objetivo da ação cultural não é construir um tipo determinado de sociedade, mas provocar as consciências para que se apossem de si mesmas e criem as condições para a totalização, no sentido dialético do termo, de um novo tipo de vida derivado do enfrentamento aberto das tensões e conflitos surgidos na prática social concreta” (COELHO, 2001, p.42).

Uma ação cultural legítima não pode demitir-se do entendimento da cultura no conjunto de capitais necessários ao convívio social e de como uma determinada sociedade distribui e valoriza esse capital no conjunto dos demais.

*Gestora Cultural, Doutora em Políticas Públicas, Investigadora de Pós-doutorado na Linha de Pesquisa “Cidades e Territórios” do Centro de Estudos sobre Mudança Socioeconômica e Territorial DINÂMIA’CET-IUL, em Lisboa.

Referências

BOTELHO, I. Dimensões da cultura: políticas culturais e seus desafios. São Paulo: SESC SP, 2016.
COELHO, T. O que é ação Cultural?São Paulo: Brasiliense, 2001.
COELHO, T. Dicionário crítico de política cultural: Cultura e imaginário. 3aEd. São Paulo: Iluminuras, FAPESP, 2004.
MAFFESOLI, M. Saturação. São Paulo : Iluminuras, Itaú Cultural, 2010.
MELO, Alexandre. O que é Globalização Cultural?Lisboa: Quimera, 2002.

Um comentário:

Anônimo disse...

Muito interessante