quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Ideologia

O preço do descaso
Celso Evaristo Silva*


“Estavas, linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo doce fruito,
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a fortuna não deixa durar muito . . .”

(Camões, Os Lusíadas, Canto III)

Para muitos analistas políticos, uma desconfiança virou sentimento e está prestes a se transformar em constatação: a de que a esquerda, no Brasil, está perdendo (ou já perdeu) a luta ideológica para o campo da direita. As causas prováveis do desfecho da contenda são de natureza vária, porém duas se destacam. Primeiro, a confusão conceitual sobre o que vem a ser ideologia. Intelectuais, políticos e militantes de esquerda têm confundido, com frequência, ideologia com propaganda ou retórica. Não que o campo conservador tenha tão maiores esclarecimentos sobre o tema; por vezes, tem bem menos. A diferença é que os conservadores parecem ter acordado para a importância das idéias, valores e suas implicações práticas no curto e no longo prazo, mesmo quando desconhecem a natureza complexa do fenômeno. Esse despertar é a segunda causa da vantagem obtida pelos conservadores. Quem domina, conhece, avalia o papel da ideologia no embate político obtém vantagem sobre seus adversários quanto ao planejamento estratégico - em outras palavras - tem um norte; sabe pra onde vai.

Confusão conceitual e descaso de um lado garantem vantagem ao outro. Significativa parte da esquerda brasileira é herdeira da tradição stalinista. Ainda que revisões históricas tenham sido feitas, a matriz básica é essa. Em tal matriz o elemento tático, imediato, operacional, de curto prazo prevalece sobre o estratégico (visão de longo prazo), fazendo com que este seja negligenciado, ou, quando muito, vá a reboque daquele. Como o fenômeno ideológico tende a mover-se para fora do “aqui e agora”, numa perspectiva de tempo mais longa, as consequências são obvias.

Nos últimos anos, a direita brasileira tem se preocupado com a questão. Matéria publicada pela revista “Carta Capital”, no seu nº 727, revela a reorganização do campo conservador, o quanto ele tem avançado na construção de estruturas ideológicas necessárias a sua atuação política, no sentido mais amplo do termo. Desde a equalização da grande mídia em torno de princípios comuns, até ao fortalecimento de organizações aglutinadoras do pensamento conservador, como o Instituto Millenium.

A revista descreve o atual estado de coisas, deixando claro o avanço significativo da direita no que se refere à criação/articulação de uma rede de grupos e instituições conservadoras, bem como a formação de quadros de jovens jornalistas e militantes. O que a revista não faz – e isso decorre de sua própria linha mais à esquerda – é avaliar a contribuição da própria esquerda no sucesso dos conservadores.
Ela até tenta explicar a situação pela via do apoio empresarial. Por certo, isso tem lá sua grande importância, mas escamoteia o que o outro lado deixou e deixa de fazer para tentar neutralizar o movimento hegemônico conservador.

A começar pela oligopolização da grande mídia, cujo viés conservador é nítido. É bem verdade que essa tendência não é exclusividade brasileira: ela acontece em escala mundial. Agora mesmo, no Reino Unido, ocorre acirrado debate sobre a grande concentração de poder da mídia local, devido à oligopolização do setor, em especial, o poder desmesurado do grupo de Rupert Murdoch. Debate-se, por lá, a necessidade ou não de mecanismos de regulamentação ou autorregulamentação. O mesmo ocorre na Argentina, cuja disputa entre governo e o “Clarim” já entrou até para o anedotário popular.

Qualquer debate sobre regulamentação da mídia traz embutidas questões éticas polêmicas. É impensável uma democracia autêntica sem a chamada liberdade de imprensa e informação. Se essa é uma verdade insofismável, também o é a constatação de que a oligopolização da mídia, em qualquer sociedade, tende a inibir o contraditório o debate fluido e enriquecedor de idéias, sendo, pois, tão perigosa essa concentração de poder quanto o cerceamento da mídia privada por parte do Estado.

Os grandes oligopólios midiáticos pautam o que vai ser publicado; quais assuntos merecem destaque e por quanto tempo; quais denúncias devem ser feitas contra ou a favor de quem; quando e em quais circunstâncias as notícias serão divulgadas, além de facilitarem a articulação dos formadores de opinião, segundo interesses específicos, transformando-se num verdadeiro quarto poder. Só pra exemplificar: o resultado final de um reality show pode, se assim um determinado grupo midiático decidir, ganhar mais tempo no telejornal de horário nobre do que um debate sobre a flexibilização do mercado de trabalho e suas consequências sociais e políticas.

Bem, mas voltemos ao nosso ponto de partida. Em entrevista no programa Manhattan Connection, da Globo News, Sandra Moscovitch, diretora do Instituto Ling, falou como a instituição sem fins lucrativos faz seus investimentos em educação e dá bolsas de estudos em universidades e escolas de negócios internacionais, para jovens interessados em estudar administração, direito e, agora, jornalismo. As escolas são os tradicionais centros de formação do ideário conservador, ao mesmo tempo em que primam pela qualidade do ensino; ou seja, ao mesmo tempo em que se forma gente qualificada, formam-se novos quadros do pensamento liberal conservador. Vários grupos econômicos de peso contribuem para o programa. O aluno assume, ainda, o compromisso de, uma vez formado, cooperar com a bolsa de estudos de futuros estudantes. Um círculo virtuoso tendente a se propagar na formação de intelectuais orgânicos, na linha do que o filósofo Antônio Gramsci (1891-1937) chamaria de sólido processo de construção de uma hegemonia de classe.

Enquanto Inês se postava em sossego, alguém tratou de ler e aplicar na prática as ideias do marxista italiano.
*Administrador e sociólogo. É membro do Conselho Editorial de Plurimus Cultura e Desenvolvimento em Revista 

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