quinta-feira, 11 de outubro de 2012

Desenvolvimento

Privatizar ou estatizar? I/II*

Amir Khair

Está em pauta a discussão da privatização, que, em nosso país, ganha dimensões particulares pelas contradições que encerra, com movimentos constantes de interpenetração do espaço público pelo privado. É um debate que comporta um grande elenco de argumentos sócio-históricos, cuja dimensão, sem dúvida, não cabe no âmbito deste artigo.

As recentes medidas da presidenta Dilma Rousseff de privatização de empresas estatais reacende a crítica à agenda liberal, demolidora da intervenção do Estado no plano econômico e social, demarcada no país por sua ascensão à modernidade capitalista.

Especialmente em decorrência da crise mundial de 1929 a 1931, ocorreu no Brasil o combate à depressão mediante a elevação do gasto público, tendo como uma de suas consequências uma forte reorganização econômica, com a transformação do sistema produtivo nacional.

Foi um período marcado pela aceleração da industrialização e a substituição das importações, com significativa intervenção do Estado na vida econômica e social, vasta expansão dos serviços governamentais e estruturação de setores estratégicos.

Essa experiência não se afasta daquela de outros países, quando a industrialização e os conflitos gerados pela desigualdade de seus frutos provocaram também a presença do Estado no âmbito das legislações previdenciária e do trabalho.

Dessa forma, a economia foi resgatada da crise por uma ação deliberada do Estado, modelo que fortaleceu e expandiu o setor público e incorporou demandas sociais, concomitantemente às demandas do capital de se manter reciclado [1].

É da era Vargas a criação da Companhia Siderúrgica Nacional (1940), da Vale do Rio Doce (1942) e da Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (1945). Em seu segundo governo (1951-1954), foram fundados o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (1952) e a Petrobrás (1953).

Já existiam havia tempo o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal, atuando ao lado de outras poucas instituições financeiras, a maioria em mãos do capital estrangeiro.

O processo de criação de empresas estatais ocorreu também durante o regime militar (1964-1985), em setores estratégicos e em outros de menor importância, como hotelaria e supermercados.

O processo de privatização no Brasil representou uma mudança radical do papel até então reservado ao Estado na atividade econômica, em contexto histórico de ascenso do pensamento neoliberal, cujas postulações enfatizam o valor do mercado e de suas leis a reger a sociedade e suas condições de desenvolvimento, devendo o Estado ser reduzido ao mínimo necessário (Estado mínimo).

Contraditoriamente no Brasil, a Constituição Federal de 1988 introduziu e ampliou direitos e expandiu as responsabilidades públicas por sua objetivação.

O ressurgimento de valores liberais incitou reformas, e uma de suas expressões está no chamado “Consenso de Washington” [2], reação contra o Estado interventor.

Novas crises econômicas mundiais fizeram emergir com força a crítica ao funcionamento do Estado e à sua capacidade de prover políticas públicas, por seu gigantismo, ineficiência e burocratismo. Esse debate fertilizou o terreno para a introdução de medidas, entre elas as várias formas de privatizações e desregulamentações.

Fernando Collor (1990-1992)foi o primeiro presidente a adotar as privatizações, ao instituir o Programa Nacional de Desestatização (PND) pela Lei n. 8.031, de 12 de abril de 1990. Os principais objetivos foram transferir à iniciativa privada atividades indevidamente exploradas pelo Estado e usar os recursos da privatização para reduzir a dívida pública.

A privatização iniciou-se em 24 de outubro de 1991, com a venda da siderúrgica Usiminas, uma das estatais mais lucrativas, seguida por várias siderúrgicas e petroquímicas.

No governo de Itamar Franco (1992-1995), concluiu-se a privatização de empresas do setor siderúrgico e petroquímico e foi leiloada a Embraer (1994).

O governo FHC (1995-2002) adotou as recomendações do Consenso de Washington, que pregava um amplo programa de privatizações. Foi além, ao condicionar as transferências de recursos da União para os estados à submissão dos governadores às políticas recomendadas pelo FMI. Foram privatizados os principais bancos estaduais, Light, Vale do Rio Doce, Telebrás e Eletropaulo.

Os leilões de privatização de FHC foram objeto de protestos em razão de irregularidades e duas grandes falhas: uso de moedas podres [3] e permissão para que o BNDES financiasse parte do preço de compra, inclusive a investidores estrangeiros, o que levaria a privilegiar grupos privados específicos [4].

A maior parte dos valores usados para as privatizações veio de empréstimos do BNDES e dos fundos de pensão das próprias empresas estatais (como no caso da Vale).

Nos oito anos de mandato de FHC, as privatizações atingiram US$ 78,6 bilhões, dos quais 28% no setor elétrico e 38% em telecomunicações. A dívida pública era de 28% do PIB e passou no final para 60%! E isso apesar dos recursos provenientes das privatizações. Isso ocorreu pelo uso da Selic elevada para não deixar ruir o Plano Real.

No governo Lula, 2,6 mil quilômetros de rodovias foram leiloadas em 9 de outubro de 2007. O grande vencedor do leilão para explorar pedágios por 25 anos foi o grupo espanhol OHL. Nessas concessões, foi adotado o critério da menor tarifa nas licitações. As empresas vitoriosas ofereceram-se para administrar as estradas por um pedágio médio de R$ 0,02 por quilômetro, seis vezes inferior ao cobrado nas rodovias Anhanguera e Imigrantes, privatizadas na década anterior.

Ocorreram também outras privatizações: Banco do Estado do Ceará, Banco do Estado do Maranhão, hidrelétricas Santo Antônio e Jirau.
 
Referências

[1] - No plano da teoria econômica, quem inspirou tais medidas foi John Maynard Keynes, que publicou, em 1936, Teoria geral do emprego, do juro e do dinheiro, obra na qual demoliu os pressupostos liberais e demonstrou que emprego e produção dependem, em cada país, da demanda efetiva (a totalidade das compras de meios de consumo e de produção). Quando a demanda efetiva não é suficiente, parte dos trabalhadores fica desempregada involuntariamente.
[2] - Conforme José Eduardo Faria, citado por Dinorá A. M. Grotti em O serviço público e a constituição brasileira de 1988, São Paulo, Malheiros Editores,
2003, p.67, “é a opinião partilhada pelo Departamento do Tesouro, pelo Federal Reserve e pelo Departamento de Estado dos Estados Unidos, pelos ministérios
das finanças dos demais países do Grupo dos Sete e pelos presidentes dos vinte maiores bancos internacionais [...] constituído por dez reformas básicas:
1) disciplina fiscal para eliminação do déficit público;
2) mudança das prioridades em relação às despesas públicas, com a superação de subsídios;
3) reforma tributária, mediante a universalização dos contribuintes e o aumento de impostos.
4) adoção de taxas de juros positivas;
5) determinação da taxa de câmbio pelo mercado;
6) liberalização do comércio exterior;
7) extinção de restrições para os investimentos diretos;
8) privatização das empresas públicas;
9) desregulação das atividades produtivas; e
10) ampliação da segurança patrimonial, por meio do fortalecimento do direito à propriedade”.

[3] - Títulos da dívida pública emitidos para resolver crises financeiras e cujo valor de mercado era quase nulo. Foram usados para as compras do patrimônio público por seus valores de face. Isso representou grave lesão ao erário, mas ninguém foi julgado nem punido por isso.
 
[4] - Conversas gravadas na sede do BNDES revelaram esquema de favorecimento de empresas no leilão de privatização da Telebrás, conduzido pelo ministro das Comunicações, Luiz Carlos Mendonça de Barros, com o presidente do BNDES, André Lara Resende, e com a anuência do presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, que também aparece nas gravações.
 
*Extraído de Diplomatique
 
continua

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