Desculpe, são ordens superiores*
Carolina Lemos Coimbra**
Um dia desses fui ao cinema com uma amiga. Eu não assisti ao filme e a
“questão” que me fez não assisti-lo talvez seja assunto para outro
texto. O que quero aqui é contar a conversa que tive para tentar
assistir ao filme e que ficou muito mais interessante para mim que
assistir ao próprio filme.
Em certo momento me percebi conversando com o cara que trabalha na
bilheteria e ele me disse que não podia fazer nada a respeito em relação
à minha situação e eu perguntei: “Quem pode então?” Então ele chamou o
Vitor.
Depois de uns cinco minutos, Vitor sai da bilheteria por uma porta
lateral e me pergunta: “Qual o problema?”. Eu lhe explico a minha
situação e ele me diz: “Eu não posso fazer nada, não posso abrir uma
exceção para a senhora”. Eu lhe digo que estou curiosa em saber o que
lhe impede de abrir uma exceção para mim e ele me diz: “São ordens
superiores”.
Então, seguiu-se a seguinte conversa:
— Vitor, quero falar então com essa pessoa que tem poder de decisão, que pode me ajudar.
— Eu sou essa pessoa. Não podemos abrir nenhuma exceção.
— Ok Vitor, então eu quero saber seu nome completo. Quero saber quem
tomou esta decisão que afeta minha vida e a de outras pessoas. Qual o
seu nome completo?
— Meu nome é Vitor. Não vou te dizer meu nome completo. Se não está satisfeita, você pode ligar na reclamação.
— Eu não estou satisfeita mesmo, Vitor. Quero entender como funciona
este sistema em que ninguém é responsável. Quem decide as coisas por
aqui?
— Tem a Celina, que é a gerente.
— Ok. Qual o nome completo da Celina?
— Eu não posso dizer.
— Chama a Celina aqui para eu conversar com ela, por favor?
Depois de uns quinze minutos chega a Celina.
— Qual o seu problema?
Eu explico a minha situação e ela me diz que pode abrir uma exceção.
— Celina, para mim é importante saber quem está tomando decisões que
afetam a minha vida. Você poderia me dizer seu nome completo?
— Não posso te dizer. É Celina e pronto. É isso que está no crachá, veja.
— Tem alguém aqui além de você que é responsável por este cinema e pelas decisões que são tomadas aqui?
— Sim, mas não está hoje.
— Quem é essa pessoa e quando estará?
— Hoje sou eu a responsável. Desculpa, mas o que eu podia fazer já
fiz. Casos como o seu passam por aqui diversas vezes por dia. Preciso
cuidar de outras situações que estão acontecendo. Não posso te dizer o
meu nome completo.
E saiu para cuidar de outros clientes.
Fui procurar uma mesa para sentar e papear com a minha amiga (que
durante esse tempo ficou ao meu lado acompanhando a discussão). Indo em
direção à mesa, me percebi triste e com indignação. Eu quero viver em um
mundo no qual cada um de nós se responsabiliza por suas ações e
atitudes. Se são “ordens superiores”, se “não posso fazer nada”, “não
posso te dizer isso ou aquilo”, quem pode? Como vamos viver e nos
empoderar de nós mesmos e de nossas atitudes e ações no mundo se não
percebemos nossa responsabilidade e poder de escolha?
Se não é o Vitor nem a Celina quem decide pelo cinema, quem é? O
cinema? E quem está sendo o cinema? Penso ser gente, pessoas como eu e
você, a não ser que o cinema tenha virado uma entidade viva. É… uma
estrutura. Estrutura que não está mais nos servindo e que passamos a
servir sem nos dar conta. E sinto muito medo, medo por não confiar (por
experiência própria) que uma sociedade com sistemas assim possibilite
com que eu viva como ser humano e me conecte com outros seres humanos.
Será que o Vitor e a Celina se veem como humanos? Que têm
responsabilidade e escolha? Me parece que nesse momento eles se sentem
inseguros de tomar qualquer decisão em nome próprio e se responsabilizar
por elas. Talvez porque “o sistema”, quer dizer, “o cinema” os possa
punir.
E eu nesta história toda? Me responsabilizei por cuidar de mim e
cuidar da Celina, do Vitor, da minha amiga e do cara da bilheteria? O
que eu fiz? Quando decidi pedir o nome completo foi na tentativa de
mostrar para eles que para mim é importante que cada um de nós se
responsabilize pelo que faz, por suas decisões e escolhas. Foi a
estratégia que encontrei naquele momento para isso.
Agora, em um ponto da conversa eu falei para o Vitor que ia escrever
uma matéria sobre essa situação, e por isso, precisava do seu nome para
colocar como o responsável por aquela decisão. Em outro momento, disse
para ele que ia chamar, então, a polícia para resolver a situação. Sinto
tristeza e decepção porque nos momentos em que fiquei desesperada e sem
saber o que fazer, precisando de ajuda, usei também de poder sobre ele
(sou jornalista e posso te ferrar) e quase permiti que usassem de poder
sobre mim mesma (a polícia consegue decidir e cuidar disso, não eu, nem
você. Olha eu aqui terceirizando minha responsabilidade e escolha,
entregando o poder de ação que tenho).
Meu aprendizado: continuar prestando atenção para investigar formas de poder com e para me libertar do poder sobre ou sob.
*Extraído de Diplo.
** Está investigando as relações entre Educação, Comunicação e Não-Violência.
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