quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Neoliberalismo e crise


Reflexões sobre a trajetória de hegemonização do capital financeiro no sistema do capital contemporâneo – parte I


Hiran Roedel*

A partir de meados dos anos 60 do século XX – nos EUA –, o sistema do capital começou a configurar um processo de mutação que levaria à afirmação da financeirização da economia em escala mundial. Iniciava-se, ali, a conjuntura em que a ampliação do capital se descolava de sua condição obrigatória da produção e da circulação de mercadorias para a pura e simples transformação de dinheiro em mais-dinheiro (D-D’). Tal situação se consolidaria duas décadas depois quando a transfiguração da riqueza passaria do bem material para o bem financeiro, contaminado não somente o setor privado, como também o setor público, cuja preocupação com a liquidez assumiria a tônica dos discursos macroeconômicos [1].

A conjuntura formada na segunda metade dos anos 60 decorria do déficit no balanço de pagamento norte-americano e do significativo aumento de circulação de dólares no mercado internacional, devido à necessidade de financiamento da dívida da maior economia do mundo. Tendo como imperativo o refinanciamento desta, o tesouro dos EUA passou a lançar títulos no mercado como condição de ampliar a sua liquidez, contrariando, desse modo, as determinações do regime de Bretton Woods que condicionava a circulação monetária ao seu lastro em ouro. A situação obrigou, em agosto de 1971, o governo Nixon romper com a conversibilidade.

Outros dois fatores, no entanto, que também condicionaram as mudanças no sistema do capital encontram-se, igualmente, na década de 1970: as duas crises do petróleo. Entre 1973 e 74, o preço do barril do petróleo quadriplicou e atingiu 12 dólares, o que voltou a ocorrer entre 1979 e 80, quando o barril chegou a 30 dólares. Tais elevações afetaram diretamente as economias dos EUA e da Europa ocidental, ambas fortemente dependentes do petróleo da OPEP, levando a Europa a interromper um processo de recuperação econômica que vinha desde o fim da Segunda Guerra Mundial.

As economias capitalistas vinculadas e/ou dependentes desses dois centros dinâmicos, como decorrência, passaram a conviver com a escalada inflacionária que teve como resposta a elevação internacional da taxa de juros. Tal situação proporcionou ainda mais o agravamento das condições sócio-econômicas dos países do chamado Terceiro Mundo, diante da diminuição da oferta de dólares no mercado internacional para financiar suas economias. Estava posta a necessidade de liquidez em âmbito mundial, cuja resposta foi a associação da elevação da taxa de juros com a adoção da flexibilização das taxas cambiais e o aumento das dívidas dos países periféricos na busca por dólares.
Mas não se pode avançar no diagnóstico das mudanças no sistema do capital, deixando de lado as transformações tecnológicas ocorridas no campo da comunicação.

As experiências do Vale do Silício/EUA, em fins dos anos 1960 e início dos 70, auge da Guerra Fria, geraram inovações tecnológicas no campo da comunicação que permitiram a organização de uma rede de interconexão em tempo real. Uma década depois, em princípio dos anos 1980, essa tecnologia ganha espaço comercial e possibilita, também, o início da conexão em rede das principais praças financeiras do mundo, permitindo a ampliação do fluxo de capitais [2].

Na passagem dos anos 1970 para os 80, a afluência dos petrodólares promovida pela elevação dos preços do petróleo impulsionou a necessidade de se criar novas possibilidades de ampliação do capital gerado por essa elevação, tendo em vista a crise de liquidez que então imperava nas economias centrais. Atrair esses volumes de recursos não mais interessados pela produção, mas sim pela especulação, passou a ser a grande meta. A oferta técnico-comunicacional tornou factível a operação D-D’ em tempo real, permitindo que o capital financeiro assumisse condição preponderante até que se tornasse hegemônico na década seguinte.

A nova conjuntura alterou significativamente a acumulação de capital privado nas economias industriais. De acordo com Belluzo, a taxa de concentração entre 1960 e 1973 evoluía a 5% ao ano, enquanto que em meados dos anos 80 reduziu para 3%, sendo que na indústria manufatureira a redução foi ainda maior, pois caiu de 5,5% para menos de 2% [3]. Somente na Inglaterra, de 1979 a 1989, cresceram em dois terços os investimentos em atividade de distribuição e triplicou no setor financeiro, enquanto o setor produtivo ficou estagnado [4]. Firmava-se, nesse momento, a tendência da transferência do dinamismo no sistema do capital do setor produtivo para o setor financeiro.

Este poderia agora, facilitado pelo aparato técnico-científico informacional, apostar na intensificação das transações em um mercado integrado em rede, o que facilitaria sua mobilidade e, portanto, diminuiria o tempo necessário para a geração de mais-dinheiro. As novas possibilidades surgidas pela expansão da rede incentivaram o combate às proteções de monopólios favorecidos historicamente pelas dificuldades de transportes e de comunicação. Aumentaram, com isso, as pressões para a eliminação de tais barreiras protecionistas aos monopólios sustentados pelas condições geográficas e políticas do passado. A emergência das novas condições históricas, desse modo, é responsável pela intensificação da remodelação da formação monopolística assentada, agora, na ampliação da concorrência [5].

Para se completar a nova configuração de um mercado integrado em nível globalizado, restava ainda a eliminação do entrave do Estado nacional que deveria ser removido. Esta seria, a partir de então, a batalha travada pelo sistema do capital, mas não pela eliminação total do Estado, e sim para a sua reorganização de modo que cuidasse apenas das garantias do capital e transferisse as demandas sociais para o mercado.

*Diretor da Plurimus


Referências

[1] Cf. SOUZA BRAGA, J. Carlos de. Financeirização global – o padrão sistêmico de riqueza do capitalismo contemporâneo. In: TAVARES, Maria da Conceição e FIORI, J. Luís. Poder e dinheiro: uma economia política da globalização. Petrópolis, Vozes, 1997. Sobre o tema, ver também, na mesma obra: BELLUZZO, Luiz Gonzaga de Mello. Dinheiro e as transfigurações da riqueza.
[2] CASTELLS, Manoel. Sociedade em rede (A era da informação: economia, sociedade e cultura), v.I. São Paulo: Paz & Terra, 1999. pp. 58-77.
[3] BELLUZZO, Luiz Gonzaga de Mello. op.cit. p.190.
[4] Idem.
[5] HARVEY, David. A arte de lucrar : globalização, monopólio e exploração da cultura. In: MORAES, Denis de (org.). Por uma outra comunicação – mídia, mundialização cultural e poder. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 148, pp. 139-171.

2 comentários:

José Manuel disse...

Muito bom.
O que eu percebo nos dias de hoje é que o Estado perdeu sua força para as empresas transnacionais, que nos dias de hoje, praticamente se tornaram "estados" independentes, colocando seu capital financeiro como barganha para conseguir todas as benesses em qualquer parte do mundo, para "ajudar" paises com suas crises econômicas, politicas e sociais, mas percebo que no fundo são meros sugadores de capital humano.

josé manuel disse...

Obrigado meu mestre.
Quem sabe me tornarei um bom discipulo.
Abs