quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Cultura


A mentira da cultura*
Monclar Valverde

Experimentamos, atualmente, um verdadeiro fetichismo da “cultura popular”, concebida como reflexo simbólico da identidade comunitária e meio de inclusão social para os que permanecem à margem da sociedade de consumo. De quebra, assistimos também a uma certa demonização da “cultura de elite”, identificada, sem mais, com as práticas de exclusão. Mas o que surpreende é que tais atitudes, apressadamente transformadas em “política cultural”, manifestem-se, simultaneamente, no programa de governo, na pauta midiática, na plataforma universitária e na bandeira de diversas ONGs, sob aplausos entusiásticos dos organismos internacionais de vários tipos. Tanto consenso não deixa de levantar suspeitas…

Há um claro oportunismo político nessa escolha da cultura como válvula de escape para a desigualdade social, especialmente numa situação em que as vias convencionais de inclusão social – habitação, saúde, educação e emprego – estão bloqueadas. Isto é negativo, não só para a cultura, mas para a própria cidadania que se quer promover, além de não alterar nada na estrutura que reproduz aquela situação. Os “socialmente excluídos” são iludidos mais uma vez, com uma espécie de “atalho” que dificilmente os levará de fato àquilo que nunca tiveram: instrução, trabalho e possibilidade de desenvolvimento pessoal. Eles são, além disso, forçados a viver uma segunda vez sua situação de exclusão, encenando-a como espetáculo para uma platéia comovida e bem intencionada. Por outro lado, a própria idéia de “cultura” é amesquinhada com propósitos eleitorais, empresariais ou simplesmente pessoais. Instrumentalizada, ela passa a fazer parte do marketing institucional de governos, empresas e organismos os mais diversos, além de reforçar o curriculum vitae de novos burocratas, futuros candidatos e eternos “líderes comunitários”.

Dessa forma, mesmo que involuntariamente, a idéia de cultura como expressão espontânea da identidade social de um grupo acaba sustentando a apologia do status quo e da homogeneidade. Estimulando os agentes sociais a reiterarem “sua” identidade, como único meio para alcançar o reconhecimento e a aceitação da sociedade, esta política de inclusão os mantém prisioneiros de sua própria cultura e de sua própria situação social. Convoca-os à participação, mas para que permaneçam como estão, ocupados em desempenhar o papel que os outros lhes atribuíram, num espetáculo em que serão eternamente coadjuvantes.

*Extraído de Cultura e Mercado. Para acesso completo clique em Cultura

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