quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

Cultura

Cultura é atitude: Responsabilidade Social e Cultura! - final*

Júlia Andrade Ramalho-Pinto**

Em 23 de dezembro de 1991 foi criada a Lei Rouanet, que se tornou um importante incentivo para as empresas investirem em cultura através da destinação de imposto de renda. Através desta lei constata-se uma importante possibilidade de ação de Responsabilidade Social, mas observa-se que muitas empresas desconhecem o alcance das ações possíveis a serem realizadas aproveitando o incentivo fiscal. Neste sentido, é importante que se conheça a lei e se compreenda a importância da cultura para uma sociedade.

A cultura como: Construção da Subjetividade e Democracia.

O conceito de cultura tratado aqui se refere a tudo aquilo que um grupo produz que se reflete na sua identidade, na construção de seus valores e normas, no que é desenvolvido pelo Homem. Mas, conforme já discutido por Walter Benjamim, não se pode tratar a noção de identidade como algo homogenizante e padronizante. Algo que se torna padrão pode muitas vezes se tornar banalizado, universal, mas a cultura não se pretende a ser isto, a fazer sentido para todos. Isto seria mais da ordem do entretenimento, da cultura de massa, que muitas vezes enfoca mais a técnica do que o conteúdo, tornando-se algo repetido e vazio.

Por outro lado, a própria produção cultural pode ser uma forma para lidar com nosso “mal-estar na civilização”, conforme pensado por Freud. Isto é, ela nos permite elaborar, construir novos sentidos, novas “saídas” para nossas angústias. Ela é um elemento importante da construção de nosso mundo interno, da nossa subjetividade. Quanto mais questionadora, quanto mais elaborada simbolicamente, mais rica e complexa, quanto mais diversa, maior a possibilidade de sentidos, mais rico será nosso suporte para construção da subjetividade dos indivíduos. Contrariamente a essa noção de cultura, é o que vemos, por exemplo, na literatura de auto-ajuda.

A literatura de auto-ajuda tende a banalizar a complexidade humana. Mas, nem todo livro de auto-ajuda é ruim, o problema da auto-ajuda é levar o leitor a acreditar que as coisas são muito simples, verdadeiras mágicas. Simplificar, metaforizar, desenhar, ilustrar, sempre é bom para a gente compreender, mas é preciso dialogar com estas formas, criar um sentido próprio, individual e subjetivo, e, ainda, sustentar o que fica sem sentido. O que se percebe hoje é um exagero na exigência de entretenimento e relaxamento. Por isso, muitos dizem “ah não... aquele filme a gente tem que pensar!”, “Ah não gosto de ler livro pesado”, “Gosto de ler tudo aquilo que entendo! Quero ler coisas simples!” E essas coisas, de tão simples, se tornam mágicas e empobrecedoras da subjetividade humana.

Se extrapolarmos isto para a sociedade, podemos dizer que, quanto mais rica a cultura de um país, maior a possibilidade de desenvolvermos a democracia e a cidadania dos indivíduos. Se entendermos por democracia uma forma de convivência entre as pessoas, de maioridade política, em que cada um é emancipado porque é capaz de refletir por si mesmo, permitindo a livre circulação das opiniões e dos interesses, o enfrentamento dos conflitos, a instituir direitos e exercê-los, todos dependendo de uma lei comum, então, poderemos pensar assim, que a cultura fortalece os laços de inserção na sociedade. Quanto mais frágil, mais banal e homogenizante a cultura de uma sociedade, menos suporte simbólico teremos e mais ao sabor dos conflitos que se estabelecem dentro dela ficaremos, podendo nos tornar assim refém desses conflitos, em vez de criamos formas criativas de resolvê-los.

Na sociedade em que vivemos hoje, a chamada Sociedade do Espetáculo, conforme denominada por Debord (1997), ou da Era do Vazio, conforme Lipovetsky (1989) há uma predominância da importância da imagem sobre o objeto, da forma sobre o conteúdo. Há uma busca constante por prazer, e neste contexto a produção cultural, muitas vezes, acaba oferecendo produtos e serviços facilitadores para se manter esse prazer. Temos, assim, esta situação delicada: uma sociedade “sedutora”, que busca a “leveza” do “espetáculo” onde a produção cultural tende a ser uma repetição de padrões, idéias e comportamentos. Onde tudo busca ser tão dócil que não há surpresas e nem non-sense, havendo pouca possibilidade de elaboração simbólica, pouca reflexão e assim, muito da produção cultural se apresenta como dada, pronta para ser docilmente consumida.

A cultura como um dos principais pilares de investimento em ações de responsabilidade social das empresas.

Nesta “sociedade do espetáculo” as empresas vêm investindo em cultura como um de seus principais focos de responsabilidade social. Aí nos resta perguntar se elas estão sabendo em que estão investindo. Refletir se o investimento em cultura muitas vezes acaba sendo feito como instrumento apenas de marketing, de divulgação da marca das empresas, sem se levar em conta o que se pretende com aquele investimento para a sociedade. Neste sentido, pode-se investir muito mais em entretenimento, que já é consagrado e de fácil assimilação pela grande população, ao invés de buscar investimentos que resgatem a identidade de um grupo e de um país. Neste sentido, corremos o risco de não estarmos focando no desenvolvimento sustentável através da cultura, mas, ao contrário, sendo capazes de apenas produzir “do mesmo de uma sociedade”, focando mais o entretenimento e o lazer. Como disse antes, não que eles não sejam importantes; são importantes enquanto possibilidades de fruição, mas a abrangência das ações culturais são mais permanentes e geram possibilidade de construção de identidade cultural forte. Uma vez que as empresas são apontadas como parcerias na solução dos investimentos culturais, elas se tornam responsáveis pelas conseqüências de seus investimentos e deveriam avaliar o desdobramento social de suas ações.

Nesse sentido, para se investir em cultura é preciso discutir constantemente o que seja cultura, para que se possa ter ações mais amplas e duradouras para a sociedade. Além disso, cabe às organizações auxiliarem num aspecto também muito difícil de ser gerenciado no que tange à cultura, que é a acessibilidade. Neste sentido, deve-se atentar para que não se façam apenas ações isoladas, eruditas e para poucas pessoas. Durante a análise de investimento em ações culturais, dever-se-ia procurar entender como o projeto irá atingir as pessoas em geral, quais as maneiras de facilitar a assimilação, a compreensão e o acesso a vários públicos e aos bens culturais.

Por fim, ainda teríamos que pensar que a avaliação ou financiamento de um projeto cultural passa por uma perspectiva ética, já enfocada anteriormente: será que estou fazendo aquilo em que acredito? Como repercute na sociedade este projeto? Quais os seus desdobramentos? Cabe aos empresários fazerem essa reflexão no sentido de orientar seus investimentos para a responsabilidade social cultural, enquanto nós, como agentes de projetos culturais, buscamos a construção de novas formas de acesso e democratização da cultura e, quem sabe, de educação? Nosso papel tem sido o de envolver as pessoas e as empresas para encontrarmos, ou mesmo inventar, novos espaços para a circulação do saber, buscando, além do pensar e falar, uma dimensão ético-política, para que possamos ter uma sociedade mais humana, com cidadãos mais envolvidos com a realidade e com a criação de novas soluções de um bem-estar possível diante das nossas desigualdades.

*Adaptado de "Cultura é atitude: Responsabilidade Social e Cultura!", publicado originalmente em Estação do Saber. Texto integral disponível em Saber.

**Mestre em administração (UFMG), administradora (UFMG) e psicóloga (FUMEC-MG), professora universitária em cursos de graduação e pós-graduação, pesquisadora das ações de ética e responsabilidade social das empresas mineiras e consultora organizacional.


Referências bibliográficas
AKTOUF, O. A Administração entre a tradição e a renovação. São Paulo: Atlas, 1996.
ALIGLERI L. M. e BORINELLI, B. Responsabilidade social nas grandes empresas de Londrina.
ENANPAD, XXV. In: Anais. Campinas : ANPAD, 2001.
ARRUDA, M.C et al. Fundamentos da ética empresarial e econômica. São Paulo: Atlas, 2001.
ASHLEY, P. Ética e responsabilidade social nos negócios. São Paulo: Savaiva, 2002.
CHANLAT, J. F. Ciências sociais e management: reconciliando o econômico e o social. São Paulo: Atlas, 1999.
DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
DE MASI. O Futuro do Trabalho: fadiga e ócio na sociedade pós-industrial. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999.
DUARTE, G. D. DIAS, J.M.A. M. Responsabilidade Social: a empresa hoje. Rio de Janeiro; São
Paulo: LTC; Fundação Assistencial Brahma, 1986.
FIORI, José Luís. Os moedeiros falsos. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.
FREUD, S. “O Mal Estar na civilização.”In: Obras Completas, Vol XVIII Rio de Janeiro: Imago , 1976.
FRIEDMAN, Thomas L. O mundo é plano. Rio de Janeiro: Objetiva, 2007.
JONAS, Hans. O princípio responsabilidade. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed-Puc Rio, 2006
GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
KANAANE, R. Comportamento humano nas organizações: o homem rumo ao século XXI. São Paulo: Atlas, 1999.
LIPOVETSKY, Giles. A era do vazio. Lisboa: Antropos, 1989.
Mc WILLIAMS, A & SIEGEL, D. Corporate social responsibility: a theory of the firm perspective. In: Academy of Management Review. V.26, n. 1., p.117-127, 2001.
MELO-NETO, F. P e FROES, C. Responsabilidade social e cidadania empresarial. Rio de Janeiro: Qualitymark, 1999.
PASTRON, G. Produzindo resultados sociais. IN: HELSSELBEIN et al (Org). A organização do futuro. São Paulo, 1997.
RAMALHO-PINTO, Júlia A. Cidadania e ética no Brasil: Repensando práticas de Gestão. ALAST, 4º Congreso Latino Americano de Sociologia del trabajo In: Anais. Cuba: ALAST, 2003.
SCHERMERHORN Jr., J. R. Administração. Rio de Janeiro: LTC, 1999.
SISTEMA DE INFORMAÇÕES E INDICDORES CULTURAIS: 2003/IBGE, Diretoria de Pesquisa.
R.J: IBGE, 2006.
ZADEK, Simon. Balancing performance, ethics, and accountability. In: Journal of Business Ethics. V.17, n. 13, p. 1421-1441, oct. 1998.

Nenhum comentário: