terça-feira, 24 de junho de 2008

Cidadania Cultural

Simone Amorim*

Explorar especificamente a idéia de uma cidadania cultural significa adotar a proposta de pensar a cultura pelo viés dos direitos e, como se sabe, demandas sociais são consideradas da ordem dos direitos quando novos desafios são colocados para os homens e já não se pode mais ignorá-los. A contemporaneidade coloca o desafio da criação de uma cidadania total que possa fazer frente às promessas de igualdade social colocadas desde a emergência da modernidade.

Pode-se dizer que a origem da cidadania tenha se dado na polis grega, composta por homens livres que participavam politicamente de seu funcionamento por meio de uma democracia direta. Está relacionada ao surgimento da vida na cidade, ao exercício de direitos e deveres em esfera pública, esta entendida como: ‘uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões; nela os fluxos comunicacionais são filtrados e sintetizados, a ponto de se condensarem em opiniões públicas enfeixadas em temas específicos’[1].

A partir das revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII pela primeira vez na história da humanidade os homens passam a ser vistos como iguais perante a lei. O Estado de Direito passa a significar a ampliação dos direitos (principalmente civis, políticos e sociais) a todos, os chamados direitos de primeira, segunda e terceira gerações, respectivamente.

Com o desenvolvimento do capitalismo e a valorização do trabalho a partir da ascensão da classe burguesa, cuja característica principal é o individualismo, a questão dos direitos passa a ser refém, justamente da garantia por lei dessa igualdade conquistada. Os homens passam a ser iguais apenas perante a lei.

Configuração que permanece desde então, num tempo (capitalismo) em que ser cidadão por vezes se confunde com ser consumidor ou contribuinte, com a manutenção do poder representativo por meio do pagamento de impostos. À idéia inicial de participação ativa em esfera pública, pressuposto básico de existência da cidadania, algumas questões vêm sendo postas no sentido de retomar o discurso sobre a ampliação dos direitos – e deveres – de forma plena.

Uma cidadania cultural, neste sentido retoma a participação nos bens de cultura como um direito de todos; seja de criação, seja de acesso (amplo, efetivo) a bens culturais, seja na preservação de patrimônios culturais (materiais ou imateriais). Extrapolando a ligação cultura x capitalismo, fundada apenas no consumo dos bens culturais e ampliando a noção de cultura para o campo dos direitos: ‘Os direitos culturais incluem a liberdade de se engajar na atividade cultural, falar a língua de sua escolha, ensinar sua língua e cultura a seus filhos, identificar-se com as comunidades culturais de sua escolha, descobrir toda uma variedade de culturas que compreendem o patrimônio mundial, adquirir conhecimento dos direitos humanos, ter uma educação, não deixar representar-se sem consentimento ou ter seu espaço cultural utilizado para publicidade, e ganhar respaldo público para salvaguardar esses direitos’ [2].

Significa que, questões como formação de público, acessibilidade aos bens culturais e garantia de sua circulação, são estratégias interligadas e devem ser pensadas conjuntamente, caso se estabeleça a questão dos direitos plenos como parâmetro de efetividade de políticas públicas para este fim.

Por fim, cabe ressaltar que, embora a noção de cidadania cultural seja uma proposição clara, esta terminologia é nova em termos de cruzamento com as concepções de políticas públicas no Brasil, onde o estudo sistemático de tais fazeres do Estado, aplicado às questões de direito à cultura, ainda não tem sido tão amplamente explorado pelos analistas no país. Justifica-se assim a dificuldade de um inventário histórico que dê conta de mapear o conceito de forma precisa, apresentando diferentes formulações e proposições, ainda mais porque, como expôs George Yúdice: ‘os direitos culturais não são universalmente aceitos e, na maioria dos casos, não são jurisdicionados’ [3].

Uma vez que inerente à questão de cidadania está o refinamento das reivindicações pela garantia dos direitos (e deveres), nos diversos âmbitos da convivência humana, talvez o argumento seja uma pista para uma formulação mais consistente da trajetória dessa concepção da ampliação dos direitos, ligada especificamente à Cultura.

*Simone Amorim é mestranda em “Bens Culturais e Projetos Sociais” no CPDOC – FGV, com pesquisa na área de Políticas Públicas do Livro e da Leitura no Brasil.


Notas

[1] HABERMAS, J. 2003.p.92.(b). Grifos do autor.

[2] Grupo de Friburgo, 1996. citado em: YUDICE, G.2004.p.41.

[3] YÚDICE, J.2006.p.41


Bibliografia

CHAUÍ, Marilena. Cidadania cultural e o direito à cultura. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006.

________________. Cultura e Democracia: o discurso competente e outras falas. 11ª.Ed. São Paulo: Cortez, 2006.

HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública: Investigações quanto a uma categoria da sociedade burguesa. 2ª.Ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. (a)

____________. Direito e Democracia: entre facticidade e validade. 2ª.Ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. (b)

YUDICE, George. A conveniência da cultura na era global. Belo Horizonte: UFMG, 2004.

2 comentários:

Anônimo disse...

Simone acho que vou citar seu artigo na minha dissertação. Adorei. Beijos.
Osvaldo.

Ruth E Soriano de Mello disse...

Muito interessante sua tese. Dependendo do conceito que se dê à cultura, novos ensaios são possíveis e necessários quando se trata do campo de formulação de políticas públicas e dos direitos. Abs, Ruth